Ou a importância da união na luta.
(pintura de Manuel Cargaleiro)
Primeiro vieram buscar os palestinianos. Mas eu não me
importei. Não sou palestiniano. Porque havia de me importar?
Repito a pergunta: porque me havia de importar com os
problemas dos outros, se eu não sou os outros?
Há diversas formas de abordar esta questão. Uma forma
pragmática, prática, desenvolta, airosa, pós-moderna e consonante com o nosso
estilo de vida é responder simplesmente "quero lá saber". Desde que não
me afecte, tudo bem.
Esta perspectiva baseia-se numa moral egoísta em que o bem e
o mal são medidos em função do modo como as coisas nos afectam. Uma faca
trespassando a minha barriga é mau, trespassando a barriga de um transeunte à
minha frente é menos mau, trespassando a barriga de um desconhecido no outro
lado do mundo é tão pouco mau, que eu nem quero saber.
Foi assim que durante muitos anos se considerou
insignificantemente mau encher a atmosfera de gases de combustão de petróleo e
carvão. Foi preciso começarmos a sentir os efeitos disso na pele,
efeitos que já se anteviam há muitas décadas, para começarmos, paulatinamente, a
considerar isso um bocadito mais mau. E isso foi, convenhamos, muito pouco
inteligente, até porque a inércia deste processo em concreto é enorme e já
poucos acreditam que seja sequer possível reparar o erro, que mais vale começar
já a antecipar as piores consequências.
Se quisermos ser mais inteligentes, teremos de perder algum
tempo e dedicar algum esforço a tentar entender melhor o alcance das nossas
atitudes e comportamentos, não apenas no aqui e no agora, mas também um pouco
mais além no espaço e no tempo.
Como infelizmente não somos iguais (ai que giro que é sermos
tão diferentes!) na capacidade ou no empenho para identificar as consequências
dos nossos actos em períodos e espaços maiores, os que mais se preocupam, que
têm mais ferramentas para ver mais além, que se dedicam mais a isso, carregam a
cruz de perceberem em primeira mão a asneira, de a tentarem demonstrar aos
demais, de sofrerem represálias à conta disso. Quando alguém não se interessa,
o fardo acaba sempre por recair noutros. E quantas vezes esse fardo inclui
ansiedade e depressão?
Que a tentativa de perceber as consequências mais afastadas
das nossas acções é um sinal de inteligência, talvez não seja muito polémico.
Apesar disso, muitos defendem hoje a produção de energia eléctrica a partir da
cisão dos átomos em centrais nucleares, inclusivamente como medida para tentar
mitigar o problema do recurso aos combustíveis fósseis e consequente
aquecimento global, sem quererem entender, ou entendendo, sem o quererem assumir,
que isso é apenas uma maneira de trocar um problema gravíssimo por outro
problema possivelmente ainda mais grave, mas cujas consequências só se farão
sentir mais adiante.
Dentro desta lógica, os mais preocupados auto-incumbem-se de
tentar mostrar aos demais porque é importante travarmos o genocídio em Gaza, ou
impedirmos qualquer outra guerra, indo directos ao âmago egoísta de cada um: é
bom que te preocupes quando vêm buscar os judeus, porque a seguir podes ser tu.
E é uma tristeza que a nossa moral airosa se fique por aqui.
Estudamos história. Quanto mais estudamos, mais aterrados
ficamos (ou devemos ficar) com o que o ser humano foi capaz de fazer a outros da mesma espécie
(para não falar das outras espécies). Basta estudar um pouquinho, uma coisinha
de nada, para deixar de ter qualquer tipo de ilusão acerca da benevolência da
nossa espécie, quer enquanto espécie, quer enquanto seres individuais. Bastará
também estudar um poucochinho de história para perceber que esta ideia de a
Europa ser guardiã de valores fundamentais da liberdade, de democracia e de
progresso não passa de uma piada de profundo mau gosto com que tentam, e
infelizmente conseguem, moldar o pensamento de tantos de nós.
Mas quê? A nossa preocupação não pode ser assim tão
profunda. Que nos interessa a barbárie da história da colonização dos povos, se
isso foi no passado? Foi no passado, já passou, já não há nada a fazer, nem
vale a pena ficarmos tristes com isso! E bota mais um pouco de fast-food, fast-fashion, fast-furniture,
fast-fuck e fast-ethics.
É uma tristeza, digo eu, que gostaria de conviver com uma
humanidade convicta de outros valores, como por exemplo a salvaguarda da vida, ontem,
hoje, amanhã, aqui, ali, acolá. Mas isso é outro tema, que por ora omito.
Há quase duzentos anos alguns indivíduos disseram e
escreveram: proletários de todos os países, uni-vos!
Mas porque é que eu me hei-de preocupar com o despedimento
de 222 trabalhadores da fábrica de calçado Gabor, se eu não trabalho lá, nem os
conheço, e a fábrica fica em Barcelos quando eu vivo nos Açores?
E lá vêm os poucos ansiosos e deprimidos, porque mais
preocupados, porque mais informados, tentar elucidar-me que o mesmo capital que
está investido naquela fábrica estará de seguida investido na minha terra, onde
irá "oferecer-me" trabalho, e as mesmas regras que esse capital dita
lá fora, irá impor também aqui, e se eu não tomar partido já, é muito provável
que no futuro venha a ser eu mesmo a sofrer as mesmas represálias. E ainda me
explicam mais: que o despedimento doutros trabalhadores poderá ter efeitos na
economia local, os quais por sua vez acabam por se repercutir nas economias com
ela relacionadas; que os desempregados irão precisar de subsídios que irão ser
pagos com os meus impostos; que alguns deles poderão necessitar de outro tipo
de apoios do Estado, entre os quais assistência na saúde ou na habitação.
Enfim, mostram-me, a custo, e apelando ao meu egoísmo, que quando outros
trabalhadores sofrem, isso também coloca em risco a minha posição. Tentam
fazer-me ver um pouco mais além, nas consequências das minhas acções e omissões.
Em troca, eu digo que esses activistas são uns frustrados, que deviam era ir
para as suas casas tratar dos seus assuntos, que a minha vida é só comigo e
ninguém tem nada com isso, que eles são propagandistas, que são partidários,
que só querem é tachos e mamar.
É preciso um esforço tremendo para chamar para uma luta
global todas as pessoas que estão em situações de relativa fragilidade,
sobretudo quando há tanto sofrimento, tanta sede de prazer, tantas distracções
e fontes de prazer imediato, tanto cansaço e falta de pachorra para abordar
assuntos sérios e deprimentes, tanta falta de conhecimento, tantas vezes
intencional, ignorância essa que num mundo cada vez mais sofisticado e complexo
vai crescendo em termos relativos, mesmo com todos os investimentos colectivos
que fazemos na formação dos nossos jovens, a qual visa quase exclusivamente o
"mercado de trabalho".
Nesse esforço de apelo à luta, num contexto de moralidade
egoísta, é da maior importância a explicitação dos elos que nos unem, que unem
isto tudo cá por dentro e à nossa volta.
Isto anda tudo ligado, ouvimos de vez em quando alguém
dizer. Pode ser um chavão, mas não é de chave na mão, permitam-me a chalaça,
porque não é nada fácil entender o modo como isto anda tudo ligado. Se eu até
consigo perceber, enquanto trabalhador assalariado, que o despedimento de 222
trabalhadores assalariados na Gabor pode ter um impacto indirecto na minha
vida, mais difícil será perceber o impacto que terá na minha vida as agressões
racistas ocorridas em Lisboa, quando eu sou branco e vivo nos Açores, ou a
violência doméstica contra mulheres, quando eu sou homem, ou o massacre dos
palestinianos quando eu não tenho nada a ver com eles.
Uma forma de esclarecer, de trazer à tona, e à mostra, a
estrutura dos problemas, é generalizá-los.
Todas as generalizações são perigosas, incluindo esta.
Generalizar é aplicar a um universo mais estendido as conclusões retiradas da
observação de apenas uma amostra. É passar dos casos isolados
para o conjunto de casos, e daí para o todo. E o risco neste processo deve ser
evidente: se eu vejo um homem a agredir uma mulher, talvez não deva
precipitar-me para a conclusão de que todos os homens agridem as mulheres.
Apesar do grande risco associado às generalizações, elas são
essenciais na aprendizagem, na apreensão da realidade, no avanço do nosso
conhecimento. Quando eu escolho uvas, eu aprecio a sua textura, a sua cor, o
seu cheiro, o seu tamanho... na tentativa de achar algum padrão que me permita
saber de antemão se elas são doces ou não sem ter de as provar. Eu só aprendo a
escolher uvas quando consigo identificar um tal padrão e quando repetidas
experiências demonstram que esse padrão é efectivamente útil na selecção das
uvas doces. Se eu não for capaz de generalizar, nunca poderei aprender a
escolher uvas.
O que é que há em comum entre, por exemplo, o genocídio em
Gaza e os despedimentos na Gabor? Ou entre isso e a violência doméstica ou o
assédio no local de trabalho ou a exploração mineira na Argentina ou o trânsito
automóvel ou o aquecimento global ou a venda de armas? Será que existe uma luta
comum na base de todos estes problemas? Se sim, será importante colocar essa
comunhão em evidência?
Será que em todos esses problemas, e tantos outros de que a
humanidade é prolixa, podemos identificar agressores e agredidos, relações de
poder, estruturas que incluem instituições, culturas, modos de agir e pensar,
ideologias que permitem a perpetuação dessas relações?
No entender de muitos desses preocupados mentais, entre os
quais me incluo, a institucionalização da opressão é global e recorre a estratégias
e mecanismos globais. E só conhecendo esses mecanismos globais, só apreendendo
o modo como isto anda tudo ligado, é que estaremos em condições de decidir o
que é melhor em termos de acção local. Por isso é tão importante pôr em cima da
mesa, a nu, essas linhas que unem todos estes problemas. Por isso vale a pena o
tremendo esforço que é o de compreender o que é que umas coisas têm a ver com
as outras, de forma clara, para que todos possamos estar igualmente empenhados
numa luta que, bem vistas as coisas, é de todos.
E é neste contexto, com este enquadramento, imbuído deste
espírito, que vejo com muita preocupação, e desde há tanto tempo, o empenho que
tantos colocam em lutas mais pequenas, mais circunscritas, sem dedicarem o
mesmo empenho à união de todos os que, noutros formatos, são vítimas da mesma
violência global.
Tomemos o caso dos bancos alimentares contra a fome. É claro
que a fome é um problema sério que merece medidas urgentes para a sua
mitigação. Também devia ser claro que essas medidas não deviam basear-se na
caridade, mas sim em sistemas mais justos decididos pela sociedade como um
todo. O que infelizmente parece ser ainda menos claro é que tão ou mais
importante do que combater a fome, é reformar ou mesmo destruir o sistema que
produz a fome!
Se eu confrontar os voluntários dos bancos alimentares
contra a fome com esta questão, tenho poucas dúvidas de que todos estarão de
acordo comigo. No entanto, finalizada a campanha, nada é feito até à campanha
seguinte. E assim lá vamos seguindo, de campanha em campanha, ao longo dos anos
e das décadas. E, qual cereja no topo do bolo, no final de cada uma ainda nos
vangloriamos na medida da quantidade de fome que conseguimos adiar.
Cada pessoa que sofre directa ou indirectamente com uma
agressão, e que abraça a luta contra esse tipo de agressão, sente-se
identificada com isso, com a luta, com a própria agressão, como se isso fosse
uma parte de si, como se isso fosse em certa medida sua pertença. Algumas
pessoas são capazes de levar este sentimento tão longe, ou tão profundamente,
que expulsam da sua luta as pessoas que consideram "não ter nada a ver com
isso". Como se uma manifestação pela defesa dos direitos da Palestina
fosse pertença apenas de palestinianos e só esses nela pudessem participar.
Como se apenas as mulheres pudessem lutar contra a violência sobre as mulheres.
Como se apenas os desalojados pudessem reivindicar políticas justas de
habitação.
Mas esses serão casos extremos. Na maioria dos casos quem
luta por uma causa sentir-se-á melhor se outras pessoas aderirem a essa luta,
mesmo que essas pessoas não sofram directamente do respectivo problema.
No entanto, em qualquer caso, a referida sensação de
identificação e propriedade sobre o problema pode gerar sentimentos negativos
face a discursos que tentam comparar problemas, que relativizam, que
generalizam. De algum modo, é como se aquele problema concreto deixasse de ser
o centro das atenções, deixasse de ser a coisa mais importante no universo, o
que tantas vezes é o caso para as suas vítimas directas.
Talvez requeira alguma generosidade, alguma abnegação,
alguma capacidade de refrear a sensação de urgência, para permitir que o nosso
problema deixe de ser o verdadeiro problema, para passar a ser uma peça, em
conjunto com tantas outras, num problema maior que a todos abarca. Certo é que
não só muitas vítimas não se empenham na extracção dos pontos em comum com
outros tipos de agressão, como por vezes reagem mal perante quem o tenta fazer.
Haverá certamente muitas outras razões para a inexistência
do que considero ser a indispensável união na luta contra as agressões a nível
global.
Nos últimos anos tenho assistido à proliferação de tipos de
luta muito específicos. Não tenho dúvidas de que é bom e importante que a luta
de um homossexual pelo reconhecimento dos seus direitos, da sua plena e igual
legitimidade, seja feita em conjunto com outras pessoas na mesma condição e em
todas as circunstâncias. Ainda bem que assim é. No entanto, e insistindo na
necessidade de expor o funcionamento da máquina global de opressão, não posso
deixar de ficar preocupado perante a falta de união que me parece existir entre
as lutas das mulheres, dos pobres, dos desalojados desta ou daquela cidade, dos
emigrantes deste ou daquele país, dos deficientes de um ou outro tipo, dos
doentes de uma ou outra maleita, dos idosos, dos jovens, dos estudantes, dos
estagiários, dos bolseiros, dos desempregados desta ou daquela empresa, dos
transexuais, dos que se opõem à construção da incineradora na sua aldeia, dos
que se preocupam com o fecho das urgências dos hospitais, ou das escolas, dos
que são contra as portagens, dos que reivindicam horários de trabalho menores,
etc., etc., etc., etc., etc., etc., etc., etc.
Por vezes, ao contrário de ver as pessoas empenhadas nessa
união, vejo pessoas empenhadas precisamente no oposto, isto é, na clara
demarcação entre as lutas, na identificação das suas diferenças, de modo a que
não haja confusões, e cada macaco no seu galho.
Para quem é vítima de uma dessas lutas, poderá haver o tal
sentimento de pertença, de identificação ou até de posse. Para quem não é
vítima, poderá haver uma sensação de conhecimento mais profundo, e talvez por
aí uma melhor posição para a luta, ou uma maior capacidade empática para com as
vítimas. Certamente existirão outras razões que eu não consigo identificar para
este comportamento de atomização das lutas e, por vezes, de desconforto ou
mesmo de ataque a quem tenta destruir essa atomização, salientando os aspectos
comuns com outras lutas em vez de realçar as particularidades de cada uma.
Regresso à minha analogia com os bancos alimentares contra a
fome. A fome existe. Cada caso é um caso. São necessárias medidas urgentes para
atacar cada um dos casos individuais. Isso é um ponto assente. Mas também devia
ser um ponto assente que é necessário compreender o mecanismo que produz gente
com fome, por mais complexo que seja, para o poder atacar sistemicamente. Só
assim podemos almejar a um futuro sem fome. Não há outro modo!
Reconheço, portanto, a existência de cada problema concreto
e a importância da acção para a sua eliminação. Mas, se compreendo que
"primeiro vieram buscar os palestinianos" é um grito de alerta
urgente e de extrema importância para todos nós, palestinianos e não
palestinianos, então não posso deixar de expressar a minha vontade de que o
empenho nas lutas individuais seja acompanhado de um empenho de igual grandeza
na luta global.
Que luta é essa? Pois vamos tratar de identificá-la.
No caminho com Maiakovski
de Eduardo Alves da Costa
Assim como a criança
humildemente afaga
a imagem do herói,
assim me aproximo de ti, Maiakovski.
Não importa o que me possa acontecer
por andar ombro a ombro
com um poeta soviético.
Lendo teus versos,
aprendi a ter coragem.
Tu sabes,
conheces melhor do que eu
a velha história.
Na primeira noite eles se aproximam
e roubam uma flor
do nosso jardim.
E não dizemos nada.
Na Segunda noite, já não se escondem:
pisam as flores,
matam nosso cão,
e não dizemos nada.
Até que um dia,
o mais frágil deles
entra sozinho em nossa casa,
rouba-nos a luz, e,
conhecendo nosso medo,
arranca-nos a voz da garganta.
E já não podemos dizer nada.
Nos dias que correm
a ninguém é dado
repousar a cabeça
alheia ao terror.
Os humildes baixam a cerviz;
e nós, que não temos pacto algum
com os senhores do mundo,
por temor nos calamos.
No silêncio de meu quarto
a ousadia me afogueia as faces
e eu fantasio um levante;
mas amanhã,
diante do juiz,
talvez meus lábios
calem a verdade
como um foco de germes
capaz de me destruir.
Olho ao redor
e o que vejo
e acabo por repetir
são mentiras.
Mal sabe a criança dizer mãe
e a propaganda lhe destrói a consciência.
A mim, quase me arrastam
pela gola do paletó
à porta do templo
e me pedem que aguarde
até que a Democracia
se digne a aparecer no balcão.
Mas eu sei,
porque não estou amedrontado
a ponto de cegar, que ela tem uma espada
a lhe espetar as costelas
e o riso que nos mostra
é uma tênue cortina
lançada sobre os arsenais.
Vamos ao campo
e não os vemos ao nosso lado,
no plantio.
Mas ao tempo da colheita
lá estão
e acabam por nos roubar
até o último grão de trigo.
Dizem-nos que de nós emana o poder
mas sempre o temos contra nós.
Dizem-nos que é preciso
defender nossos lares
mas se nos rebelamos contra a opressão
é sobre nós que marcham os soldados.
E por temor eu me calo,
por temor aceito a condição
de falso democrata
e rotulo meus gestos
com a palavra liberdade,
procurando, num sorriso,
esconder minha dor
diante de meus superiores.
Mas dentro de mim,
com a potência de um milhão de vozes,
o coração grita - MENTIRA!