quinta-feira, 20 de fevereiro de 2025

Thatcher e o Banco Central Europeu...

Este é um excerto do livro "And the weak suffer what they must?" de Yanis Varoufakis. Nem ele, nem eu, temos a Thatcher em muito boa conta. Ela fez parte de um grupo de políticos que a nível mundial instalaram, à lei da bala, o sistema económico que hoje temos onde cada vez mais só o dinheiro conta. Não me esqueço, por exemplo, da sua amizade com Pinochet, a quem ela deu guarida na sua velhice, protegendo-o inclusivamente de um mandado de prisão internacional. Mas, mesmo tendo sido a Thatcher uma política de direita que governou a favor dos oligarcas capitalistas, até ela foi capaz de identificar que um Banco Central Europeu não democrático, como o que hoje temos, seria uma péssima opção.

Ao contrário do que alguns poderão pensar, o sistema económico que temos é tudo menos natural. Ele foi construído à revelia da vontade da população (por exemplo: foi você que pediu um BCE?) para promover um determinado tipo de economia.

O que aconteceu no ano da pandemia em que a actividade económica foi tremendamente reduzida, e em que consequentemente foi lançado um "plano de recuperação e resiliência" com biliões de euros a surgirem sabe-se lá de onde, ao mesmo tempo que as dívidas públicas de quase todos os países europeus se mantinham inalteradas, pagando anualmente juros que seriam mais do que suficientes para, por exemplo, colocar os sistemas nacionais de saúde em ordem, é um exemplo flagrante de como a governação é feita em favor de quem tem o poder económico e não em favor da generalidade da população.

Apesar disso ser flagrante e de ter impactos determinantes na vida de todos nós, a ponto de eu arriscar dizer que não há nada mais importante na condução da nossa vida material, todos seguimos impávidos e serenos na nossa ignorância acerca de onde o dinheiro surge e como desaparece. Já era tempo de mudar isso!

Excerto, com descuidada tradução minha:

"Que boa ideia!" respondeu Thatcher, depois de uma grande alegria ter enchido a Casa [dos Comuns]. E seguiu dizendo, em tom de brincadeira, "não tinha pensado nisso. Mas se pensasse, não haveria um banco central europeu que não presta contas a ninguém, muito menos aos parlamentos nacionais. Porque com um banco central desse tipo não haveria democracia, [e o banco central estaria] retirando os poderes de todos os parlamentos e tendo uma só moeda e uma política monetária e uma política de taxa de juro que nos retiraria a todos poder político."

Foi possivelmente a primeira e a última vez que o primeiro ministro de uma potência europeia acertou em cheio relativamente à natureza da união monetária da Europa. A noção de que o dinheiro pode ser administrado apoliticamente, apenas por meios técnicos, é uma loucura da maior perigosidade. A fantasia do dinheiro apolítico foi o que transformou o padrão do ouro do período entre guerras num sistema primitivo, cujo inevitável colapso impulsionou o fascismo e o nazismo com os efeitos que todos conhecemos e lamentamos.

O padrão do ouro baseava-se na ideia de despolitizar o dinheiro através da associação da sua quantidade à quantidade de ouro - um metal que os políticos não podiam criar do nada, uma vez que é fornecido exogenamente pela natureza. Hoje, a mesma fantasia do dinheiro apolítico pode ser encontrada não apenas na construção de um banco central europeu que não responde perante nenhum parlamento (como Thatcher tinha avisado) mas também nas modernas moedas digitais como o Bitcoin, cuja imagem de marca é precisamente a de não ter uma autoridade política a dirigi-lo. A ideia preciosa de Margaret Thatcher foi que o controlo das taxas de juro e da oferta de moeda é uma actividade política quintessencial que, se removida do controlo de um parlamento democraticamente eleito, origina uma descida inexorável para o autoritarismo.


 

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2025

De que nos serve a barbárie?...

The Fourth Beast: Is Donald Trump the Antichrist? : Moelhauser, Lawrence  R.: Amazon.co.za: Books 

Até me dá vontade de agradecer a Trump por trazer à luz do dia, escancaradamente, aquilo que todos os presidentes anteriores foram fazendo às escondidas. Erguer muros contra os pobres dos outros países e dificuldades contra os pobres do próprio país, dar mais força aos mercados desregulados, legislar a favor dos grandes interesses económicos, gastar mais em armas, fazer guerras em nome do negócio... nada disso é novo. Mas finalmente os campeões da propaganda enraizada desde as escolas primárias às universidades, desde os canais televisivos às redes sociais, desde as distracções aos locais de trabalho, perceberam que não precisam de esconder nada.

Podia ser que agora, finalmente, as pessoas começassem a abrir os olhos!

Mas não. Não sejamos ingénuos. Aqueles que abrirem os olhos irão ficar ofuscados com tanta luz, e deixá-los-ão apenas entreabertos o suficiente para distinguir no Trump um crápula. Talvez que esse amor generalizado à imagem que têm dos Estados Unidos como o país da democracia, da liberdade, da igualdade, onde todos têm os mesmos direitos e podem concretizar os seus sonhos, o país que pugna por esses valores no mundo inteiro, não olhando a meios para combater os hereges autocratas e inimigos do livre arbítrio, talvez o amor generalizado a isso tudo possa ser posto em causa por algumas pessoas, à luz dos acontecimentos com que Trump faz o favor de nos brindar quase diariamente.

Muitos resistirão ainda assim, ancorando o seu amor à terra dos livres na evidência histórica da ausência de alternativas. Irão explicar-nos, pela milionésima vez, que apesar de tudo não há melhor país do que aquele, que os outros – este, aquele, aqueloutro e mais algum – são horríveis, como toda a gente sabe. Irão, desse modo, agarrar-se à discussão básica que a propaganda, de todos os lados, e esta sim, papagueada desde há séculos, tratou tão bem de inculcar nas cabecinhas de todos enquanto liam (para se educarem), viam filmes (para serem mais cultos), trabalhavam (para serem úteis à sociedade) e se comportavam como deve ser (para serem respeitáveis): a discussão sobre quem ou o quê é que devemos seguir.

Devemos nós pertencer ao clube dos que gostam dos EUA, ou ao clube dos que gostam da Rússia? Ao clube dos que gostam do capitalismo ou do comunismo? Ao clube dos que gostam de Trump ou dos que gostam do... olha, já me esqueci!... do Biden? Ao clube dos que votam PS ou ao clube dos que votam PSD? Oh! Como é difícil com tantos caminhos saber qual deles seguir! Como é difícil compreender o que nos querem dizer de um lado e do outro! Por favor, ajudem-nos! Dêem-nos uma pista que seja: quem é que deveremos apoiar? Em quem deveremos depositar nós a confiança de nos guiar neste mundo tão complexo e tão cheio de poderes que nos transcendem?

Não. A discussão nunca devia ter sido essa. A discussão devia ter sido sempre sobre como nos amarmos, sobre como tocarmos o acordeão e dançarmos à volta da fogueira, apreciando os frutos que a natureza tem de sobeja para todos nós. A discussão devia sempre ter sido sobre como impedir que os outros nos roubem a alegria, nos roubem da nossa justa parte do todo que é produzido, como impedir que haja sempre uma meia dúzia de espertalhaços que ganham com o trabalho dos outros mais do que eles todos juntos. A discussão devia ser sobre como construir jardins e impedir guerras. Sobre como proibir a construção de armas e garantir essa proibição, em vez de as produzir alegando que servem para a paz. A discussão devia sempre ter sido sobre o amor e a sua protecção acima de todas as coisas más que nos afligem a todos, mais tarde ou mais cedo, num dado momento: invejas, egoísmos, raivas, megalomanias. A discussão devia sempre ter sido sobre como encontrar relações mais harmoniosas entre todos nós, e entre nós e a natureza. Sobre como viver bem minimizando o sofrimento de todos os seres vivos e mantendo as relações ecológicas delicadas que a natureza criou ao longo de milhões de anos. Sobre como crescer, cá dentro, sobre como desenvolver a nossa capacidade de ver o belo, e de o aumentar, e a nossa capacidade de discernir o feio, e de o prevenir ou isolar.

A discussão devia ter sido sobre valores morais, ou éticos, como lhes queiram chamar. Nunca devíamos ter desistido disso. Historicamente levamos com a moral dos outros em cima até ao ponto em que nos rebelámos e pudemos finalmente gritar liberdade!... Só que nesse momento mandamos a moral toda às urtigas. Depois ficámos à nora. Agarrámo-nos por fim às crenças antigas, acreditando que quanto mais antigas mais verdadeiras e logo melhores, e às crenças modernas, como a crença cega nas capacidades da ciência resolver todos os problemas do planeta. Enfim, agarrámo-nos a qualquer coisa que nos permitisse a mínima noção de chão, de substrato, de fundamento, neste oceano muito fluido de complexidade que nos ameaça de afogamento a toda a hora.

Não discutimos nada. Agarrámo-nos simplesmente a qualquer coisa que nos parecesse uma nesga de fundamento. E quando olhámos para o lado, o do lado tinha-se agarrado a outra coisa qualquer. E logo o acusámos de fundamentalismo!... Quando devíamos era ter discutido. O que é melhor aqui e agora pode não o ser ali ou noutro tempo. O que é melhor para ti pode não o ser para mim. Mas, se numa esperança infundada de vislumbre, pudéssemos ser um pouco menos individualistas, autárcicos, até narcisistas, se pudéssemos ser um pouco mais humildes para connosco mesmos, saberíamos que nem nós sabemos bem o que é melhor para nós. Estamos sempre a aprender. E temos todos muito a aprender uns com os outros. Não devíamos nunca ter deixado de falar uns com os outros, sobretudo acerca do que consideramos melhor para todos nós.

E agora chegámos a um ponto em que cada um está tão arreigado na sua estabilidadezinha, tão cioso dela, tão pronto a defendê-la dos ataques dos outros, que já não conseguimos colocar-nos em causa e impedimos qualquer tipo de diálogo profundo com quem nos seja um bocadinho diferente.

Do que se trata aqui não é de saber se devemos amar os EUA ou outro país qualquer. Trata-se, isso sim, de perceber que esse tipo de amores são propagandeados para que seja mais fácil aos pastores conduzirem o rebanho. Devíamos rejeitar as bandeiras, todas elas! E os presidentes, todos eles! Do que se trata é de sermos capazes de ter um espírito crítico e de mantermos a energia suficiente para nunca termos de o desligar. E ufff!... que depois de um longo dia a trabalhar às ordens de outros, a aturar tarefas chatas e pessoas indelicadas, para atingir objectivos que não são os nossos... é difícil manter essa energia. Pois é.

Tenho a esperança que as barbaridades do Trump terminem rapidamente (e que o Trump, desprovido dessas barbaridades, e reencontrado como ser humano, sentado na sanita, com saudades da mamã, possa seguir a sua vidinha). Tenho esperança que estas barbaridades possam beliscar os facciosismos de alguns aficionados. Mas não tenho muita esperança que os possa levar a centrar a discussão naquilo que verdadeiramente importa. Para isso o trabalho deve ser outro. Feliz ou infelizmente, antes ou depois do Trump, a questão continua a ser outra.

 

quinta-feira, 30 de janeiro de 2025

Como o fascismo cá chegou...

 

“Quanto pior a realidade se torna, menos uma população sitiada quer ouvir falar dela e mais se distrai com pseudoeventos sórdidos de colapsos de celebridades, mexericos e trivialidades. Estas são as folias depravadas de uma civilização moribunda."

Este texto de Chris Hedges, que traduzi com a ajuda de ferramentas online, foi publicado no seu portal, em inglês, no dia 23 do passado Dezembro. Ele ilustra bem, e só mais uma vez, que como dizia o Almada Negreiros, todas as frases que podem salvar o mundo já estavam escritas quando eu nasci... agora só falta mesmo é salvar o mundo.

Quanto mais o mundo se afunda, perdão, quanto mais afundamos o mundo connosco lá dentro, mais queremos a evasão mental de um qualquer divertimento. Vamo-nos divertindo até à morte, conforme documentou muito bem Neil Postman, num livro com esse mesmo título, que nunca é demais recomendar.

O que é preciso fazer então para acabar com esta folia e começar a construir um mundo melhor? É simples. Basta, sem o recurso a poderosíssimas tecnologias de difusão de informação, e contra elas, alertar a maioria da população para algo que ela deseja ignorar. Tem tudo para resultar!

Pessoalmente creio que, aqui chegados, é uma questão de consciência que fica ao critério de cada um: ir na onda e contribuir alegremente para a decadência total, ou aderir a uma luta inglória onde os sacrifícios parecem dar em nada. Pessoalmente também, eu sei o que quero: conforme dizia o próprio Chris Hedges, eu combato os fascistas não porque vou ganhar, mas porque eles são fascistas.

Deixo-vos o texto. Ele foi escrito no contexto dos EUA, mas com as devidas adaptações, e infelizmente, pode servir a muitos outros países. Leitura de 10 minutos.

---------

Durante mais de duas décadas, eu e um punhado de outros — Sheldon Wolin, Noam Chomsky, Chalmers Johnson, Barbara Ehrenreich e Ralph Nader — alertámos para o facto de a crescente desigualdade social e a constante erosão das nossas instituições democráticas, incluindo os meios de comunicação social, o Congresso, os sindicatos, a academia e os tribunais, conduziriam inevitavelmente a um Estado autoritário ou fascista cristão. Os meus livros – “Fascistas americanos: a direita cristã e a guerra contra a América” (2007), “Império da ilusão: o fim da literacia e o triunfo do espectáculo” (2009), “A morte da classe liberal” (2010) , “Days of Destruction, Days of Revolt” (2012), escrito com Joe Sacco, “Wages of Rebellion” (2015) e “America: The Farewell Tour” (2018) foram uma sucessão de apelos apaixonados para levar a sério a decadência. Não tenho prazer em ter razão.

“A raiva dos abandonados pela economia, os medos e preocupações de uma classe média sitiada e insegura, e o isolamento entorpecedor que é originado pela perda da comunidade, seriam o combustível para um perigoso movimento de massas”, escrevi em “Fascistas americanos” em 2007. “Se estes desapossados não fossem reincorporados na sociedade dominante, se eventualmente perdessem toda a esperança de encontrar bons e estáveis empregos e oportunidades para si e para os seus filhos — em suma, a promessa de um futuro mais risonho — o espectro do fascismo assolaria a nação. Este desespero, esta perda de esperança, esta negação de um futuro, levou os desesperados para os braços daqueles que prometiam milagres e sonhos de glória apocalíptica.”

O presidente eleito Donald Trump não anuncia o advento do fascismo. Anuncia o colapso do verniz que mascarava a corrupção no seio da classe dominante e a sua ilusão de democracia. Ele é o sintoma, não a doença. A perda das normas democráticas básicas começou muito antes de Trump, abrindo o caminho ao totalitarismo americano. Desindustrialização, desregulação, austeridade, empresas predatórias não reguladas, incluindo a indústria da saúde, vigilância generalizada de todos os americanos, desigualdade social, um sistema eleitoral minado por subornos legalizados, guerras intermináveis e fúteis, a maior população prisional do mundo, mas acima de tudo os sentimentos de traição, estagnação e desespero são uma mistura tóxica que culmina num ódio incipiente à classe dominante e às instituições que ela deformou para servir exclusivamente os ricos e poderosos. Os democratas são tão culpados como os republicanos [1].

“Trump e o seu séquito de bilionários, generais, idiotas, fascistas cristãos, criminosos, racistas e indivíduos com comportamentos moralmente desviantes desempenham o papel do clã Snopes em alguns dos romances de William Faulkner”, escrevi em “America: The Farewell Tour”. “Os Snopes preencheram o vazio de poder do decadente Sul e tomaram implacavelmente o controlo das elites aristocráticas degeneradas, anteriormente esclavagistas. Flem Snopes e a sua família alargada – que inclui um assassino, um pedófilo, um bígamo, um incendiário, um homem com deficiência mental que copula com uma vaca e um parente que vende bilhetes para testemunhar a bestialidade – são representações fictícias da escumalha agora elevada ao mais alto nível do governo federal. Personificam a podridão moral desencadeada pelo capitalismo desenfreado.”

“A referência habitual à ‘amoralidade’, embora precisa, não é suficientemente distintiva e por si só não nos permite colocá-los, como deveriam ser colocados, num momento histórico”, escreveu o crítico Irving Howe sobre os Snopes. “Talvez o mais importante a dizer é que eles são o que vem depois: as criaturas que emergem da devastação, com o lodo ainda nos lábios.”

“Que um mundo entre em colapso, no Sul ou na Rússia, e apareçam figuras de ambição grosseira a abrir caminho desde o fundo da sociedade, homens para quem as reivindicações morais não são tanto absurdas como incompreensíveis, filhos de mercenários ou mujiques [2] vadiando desde lado nenhum e assumindo o poder simplesmente através da sua despudorada força monolítica”, escreveu Howe. “Tornam-se presidentes de bancos locais e de secções regionais de partidos e, mais tarde, um pouco mais elegantes, abrem caminho pela força no Congresso ou no Politburo. Necrófagos desinibidos, não precisam de acreditar no decadente código da sua sociedade; só precisam de aprender a imitar os seus sons.”

O filósofo político Sheldon Wolin chamou ao nosso sistema de governação “totalitarismo invertido”, um sistema que manteve a antiga iconografia, símbolos e linguagem, mas entregou o poder às corporações [3] e aos oligarcas. Agora, mudaremos para a forma mais reconhecível do totalitarismo, dominada por um demagogo e por uma ideologia baseada na diabolização do outro, na hipermasculinidade e no pensamento mágico.

O fascismo é sempre o filho bastardo de um liberalismo falhado.

“Vivemos num sistema jurídico de dois níveis, onde os pobres são perseguidos, presos e encarcerados por infracções absurdas, como vender cigarros avulsos – o que levou Eric Garner a ser estrangulado até à morte pela polícia da cidade de Nova Iorque em 2014 – enquanto crimes de magnitude assustadora cometidos por oligarcas e corporações, desde derrames de petróleo a fraudes bancárias de centenas de milhares de milhões de dólares, que destruíram 40 por cento da riqueza mundial, são tratados através de suaves controlos administrativos, multas simbólicas e controlo civil que na prática dão a estes ricos perpetradores imunidade contra processos criminais”, escrevi em “America: The Farewell Tour”.

A ideologia utópica do neoliberalismo e do capitalismo global é uma grande farsa. A riqueza global, em vez de ser distribuída de forma equitativa, como prometiam os defensores do neoliberalismo, foi canalizada para as mãos de uma elite oligárquica e voraz, alimentando a pior desigualdade económica desde a era dos barões-ladrões [4]. Os trabalhadores pobres, que foram espoliados dos seus sindicatos e dos seus direitos e cujos salários estagnaram ou diminuíram nos últimos 40 anos, foram lançados na pobreza crónica e no subemprego. As suas vidas, como Barbara Ehrenreich relatou em “Nickel and Dimed”, são uma longa emergência conduzida pelo stress. A classe média está a evaporar-se. Cidades que antes fabricavam produtos e ofereciam emprego em fábricas são agora terrenos abandonados e vedados. As prisões estão sobrelotadas. As corporações orquestraram a destruição de barreiras comerciais, permitindo-lhes arrecadar 1,42 biliões de dólares [5] em lucros em bancos estrangeiros para evitar o pagamento de impostos.

O neoliberalismo, apesar da sua promessa de construir e disseminar a democracia, rapidamente destruiu regulamentos e esvaziou os sistemas democráticos, transformando-os em leviatãs [6] corporativos. Os rótulos “liberal” e “conservador” não têm qualquer significado na ordem neoliberal, conforme é evidenciado por um candidato presidencial democrata que se gabou do apoio de Dick Cheney, um criminoso de guerra que deixou o cargo com uma taxa de aprovação de 13% [7]. O atractivo de Trump é que, embora vil e fanfarrão, troça da falência da farsa política.

“A mentira permanente é a apoteose do totalitarismo”, escrevi em “America: The Farewell Tour”:

Já não importa o que é verdade. Importa apenas o que é "correcto". Os tribunais federais estão a ficar apinhados de juízes imbecis e incompetentes que servem a ideologia "correcta" do corporativismo e os rígidos costumes sociais da direita cristã. Desprezam a realidade, incluindo a ciência e o Estado de direito. Procuram banir aqueles que vivem num mundo baseado na realidade, definido pela autonomia intelectual e moral. O regime totalitário exalta sempre os brutos e os estúpidos. Estes idiotas reinantes não têm qualquer filosofia ou objectivos políticos genuínos. Utilizam clichés e slogans, muitos dos quais são absurdos e contraditórios, para justificar a sua ganância e sede de poder. Isto é tão verdade para a direita cristã como para os corporativistas que pregam o mercado livre e a globalização. A fusão dos corporativistas com a direita cristã é o casamento de Godzilla com Frankenstein.

As ilusões impingidas nos nossos ecrãs – incluindo a persona fictícia criada para Trump no filme "O Aprendiz" – substituíram a realidade. A política é burlesca, como ilustrou a campanha insípida e repleta de celebridades de Kamala Harris. É uma ilusão criada pelo exército de agentes, publicitários, departamentos de marketing, procuradores, argumentistas, produtores de televisão e cinema, técnicos de vídeo, fotógrafos, guarda-costas, consultores de imagem, personal trainers, técnicos de sondagens, locutores e personalidades do noticiário televisivo. Somos uma cultura inundada em mentiras.

“O culto do eu domina a nossa paisagem cultural”, escrevi em “Empire of Illusion”:

Este culto tem em si os traços clássicos dos psicopatas: charme superficial, grandiosidade e auto-importância; uma necessidade de estimulação constante, uma propensão para a mentira, a ilusão e a manipulação, e a incapacidade de sentir remorso ou culpa. Esta é, naturalmente, a ética promovida pelas corporações. É a ética do capitalismo desenfreado. É a crença errada de que o estilo pessoal e o desenvolvimento pessoal, confundidos com o individualismo, são a mesma coisa que a igualdade democrática. De facto, o estilo pessoal, definido pelos bens que compramos ou consumimos, tornou-se uma compensação pela nossa perda de igualdade democrática. Temos o direito, no culto do eu, de obter tudo o que desejamos. Podemos fazer qualquer coisa, até menosprezar e destruir aqueles que nos rodeiam, incluindo os nossos amigos, para ganhar dinheiro, sermos felizes e nos tornarmos famosos. Uma vez alcançada a fama e a riqueza, elas tornam-se a sua própria justificação, a sua própria moralidade. Como se chega lá é irrelevante. Quando se chega lá, essas perguntas já não são feitas.

O meu livro “Empire of Illusion” começa no Madison Square Garden numa digressão da World Wrestling Entertainment [WWE]. Eu compreendia que o wrestling profissional era o modelo para a nossa vida social e política, mas não sabia que iria produzir um presidente.

“As lutas são rituais estilizados”, escrevi, no que poderia ter sido uma descrição de um comício de Trump:

São expressões públicas de dor e de um desejo ardente de vingança. As sagas espalhafatosas e detalhadas associadas a cada combate, e não os combates em si, são o que leva o público ao delírio. Estas batalhas ritualizadas proporcionam aos que estão nas arenas um alívio temporário e inebriante da vida mundana. O fardo dos problemas reais é transformado em material para uma energética pantomima.

Não vai melhorar. As ferramentas para acabar com a dissidência foram consolidadas. A nossa democracia entrou em colapso há anos. Estamos sob o domínio daquilo a que Søren Kierkegaard chamou a “doença mortal” – o entorpecimento da alma pelo desespero que conduz à degradação moral e física. Tudo o que Trump precisa de fazer para estabelecer um estado policial escancarado é carregar num botão. E ele vai fazê-lo.

“Quanto pior a realidade se torna, menos uma população sitiada quer ouvir falar dela”, escrevi na conclusão de “Empire of Illusion”, “e mais se distrai com pseudoeventos sórdidos de colapsos de celebridades, mexericos e trivialidades. Estas são as folias depravadas de uma civilização moribunda.”

---

Notas do Tradutor:

1 - O mesmo pode ser dito de muitos outros partidos em muitos outros países com sistemas essencialmente bipartidários, como é o caso de Portugal.

2 - Camponeses pobres, da língua russa.

3 - Corporações devem ser entendidas, neste contexto, como grandes empresas ou grupos empresariais privados. As palavras da mesma família devem ter a mesma interpretação, mutatis mutandis.

4 - Barão-ladrão é um termo que foi utilizado sobretudo no final do século XIX, nos EUA, para designar os ricos sem escrúpulos.

5 - 1,42 x 10^12 , um trilião, segundo a nomenclatura norte-americana, um bilião, segundo a nomenclatura portuguesa.

6 - Leviatã é um monstro referido na bíblia que vive nos oceanos.

7 - Taxa de aprovação calculada com base em sondagens à população.

quarta-feira, 18 de dezembro de 2024

Não foi Cristo que fundou o cristianismo...

"É em vão que se tentará extrair desta desordenada mitologia uma qualquer tradição histórica. Torna-se até difícil perceber como é que qualquer história se poderia alguma vez enredar em tais ficções.

Esta observação não se aplica apenas ao vidente de Patmos. Aplica-se também ao autor anónimo da carta aos hebreus, ao apóstolo Paulo, aos nossos evangelistas. Ao que parece, nenhum deles deverá ter colhido recordações vívidas a respeito de Jesus. Alguma coisa delas teria ficado na sua obra, capaz de lhe conferir aquela sensação de real que lhe falta sempre. Não deixa de ser estranho que um homem de temperamento suficientemente vigoroso para fundar uma nova e grande religião não tivesse deixado na memória dos seus discípulos nenhuma imagem precisa capaz de nos revelar os seus traços, nenhum eco do que pode ter sido o seu sotaque, nenhum sinal claro da sua actividade, nenhum rasto da sua passagem. O carácter fictício das informações que nos são fornecidas sobre ele, pelas suas primeiras testemunhas, leva-nos a pensar que a sua personalidade não passa de um mito.

A conclusão pareceria simples e decisiva se fossem Átis ou Mitra que estivessem em questão. Como se trata de Cristo, os espíritos mais livres têm dificuldade em aceitá-la. Não só porque um fardo enorme de hábitos e de preconceitos milenares continua a pesar sobre todos nós, mas também porque não obstante os exemplos fornecidos pelas outras religiões, é difícil compreender que um mito desta natureza se tenha podido formar e ganhar consistência ao ponto de se impor durante tantos séculos a milhões de adeptos.

Os cristãos simplesmente acreditavam em Cristo na medida em que, no que se dizia sobre ele, entreviam uma resposta às suas íntimas preocupações, um remédio para os seus males. Ora, todos os evangelhos, fossem eles de Marcos, de Lucas, de Mateus ou de João, apresentavam-no sob o ângulo mais favorável. Em todos eles Jesus aparecia como um deus muito grande e muito bom, que se fez semelhante aos homens para pôr termo aos seus sofrimentos, que sabia ler os corações e que com uma só palavra podia curar as piores enfermidades. Havia sido visto a ter compaixão pela multidão e a multiplicar pães no deserto para alimentar. Aos seus discípulos pedia apenas que acreditassem nele. Em troca desta fé, garantia-lhes uma vida eterna de felicidade. Como poderia a massa de pobres, esmagada pela miséria e corroída por preocupações, não ser atraída por ele entregando-lhe a sua confiança. Portanto, o sucesso que obtiveram os missionários de Jesus, não é mais singular do que o dos representantes de outros deuses salvadores. É da mesma ordem e decorre das mesmas causas. Explica-se muito facilmente, sem necessidade do surgimento repentino de um homem sobreeminente, pelo trabalho árduo de operários anónimos que deram uma forma concreta ao ideal místico da massa crente. 

Não foi Cristo que fundou o cristianismo. Antes foi o cristianismo que progressivamente elaborou a imagem de Cristo."

in "As origens sociais do cristianismo - Estudos sobre a história dos dogmas" de Prosper Alfaric.

(imagem de Quino)


E assim fez Homem um Deus à sua imagem.

sábado, 14 de dezembro de 2024

Voyager 1 no reino de Deus...

Deus e o mal. Se Deus é omnipotente e omnisciente e bondoso, como pode o mal existir? Este problema aflige ou simplesmente espicaça a mente dos seres humanos, de alguns seres humanos, desde há milhares de anos. Se nunca pensou no assunto, tire uns segundos para o efeito e junte-se ao clube. Verá que não há resposta satisfatória para o problema.

Muito foi discutido e escrito acerca deste assunto. Personagens, livros, datas, afirmações, posições, interpretações... Bom, talvez seja tempo de eu também me juntar a estoutro clube.

Deus existe? Como é que podemos saber se ele existe ou não? Também já muita tinta correu sobre o assunto. A certa altura, um sujeito pragmático concluiu: por via das dúvidas, não vá Deus existir mesmo e ser vingativo, o melhor é mesmo acreditar que existe! Sem dúvida um argumento sólido. (ironia)

Se Deus quisesse ter a certeza que acreditávamos nele, não nos daria ele provas irrefutáveis da sua existência?... Também essa questão já foi levantada e respondida de várias formas.

Mas, será que o mal existe?... Alguns disseram: o mal é a ausência do bem. Outros disseram outras coisas. Muita gente disse muita coisa.

Pergunto eu agora: se são as pessoas a discutir e a decidir sobre a existência ou inexistência do mal, como pode isso servir de critério para aferir a existência ou inexistência de Deus?

Bem e mal... Nós, seres humanos, definimos cada um deles por oposição ao outro. Saramago fez Jesus sentar-se num barquito no meio do nevoeiro do mar, juntamente com Deus e o Diabo. Aí, estes dois delinearam o plano que iria espalhar a respectiva adoração pelo mundo. Esse plano incluía a lista de atrocidades que desde então a humanidade perpetrou. É a vidinha!... Não se espalha a noção de bondade sem a de maldade!

Quem disse, afinal, que Deus tinha de ser bom? Foi o Homem.

Quem disse, afinal, que Deus tinha de ser perfeito? Foi o Homem.

Quem disse, afinal, que ser bom implica não ser mau? Foi o Homem.

Quem disse, afinal, que ser mau é não ser bom, ou fazer coisas más, coisas que não são boas, porque são más, porque são feitas com maldade, porque a maldade é o que está nas coisas más, que não são boas? Foi o Homem.

Quem disse, afinal, que Deus existe? Foi o Homem. E que Deus não existe? Foi o Homem. E que não há forma de saber se existe ou não existe? Foi o Homem. Quem disse o Homem, quem o leu, quem o citou, quem discutiu com ele? Foi o Homem.

Quando as câmaras fotográficas da sonda Voyager 1 estavam prestes a tornar-se inúteis, isto é, quando a sonda estava já tão longe de qualquer astro do Sistema Solar que os seus planetas apareciam apenas como um pixel na imagem, e não se prevendo a aproximação de qualquer outro corpo celeste durante os próximos milhares de anos (sendo que a vida útil da sua fonte energética seria de apenas algumas décadas), a equipa responsável por ela (da qual fazia parte Carl Sagan) tomou a decisão de orientar as câmaras para o Sol e fotografar, pela última vez, todos os planetas visíveis. A fotografia da Terra tornou-se famosa. Esta mesma, tirada a 14 de Fevereiro de 1990, a mais de 6 mil milhões de quilómetros de distância (hoje a Voyager 1 continua a afastar-se de nós a cerca de 17 km por segundo, encontrando-se já a uns 24 mil milhões de quilómetros de distância):

https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/7/73/Pale_Blue_Dot.png

Os raios visíveis na fotografia resultam da incapacidade da sonda Voyager 1 em bloquear totalmente a luz directa do Sol. No raio mais à direita, quase a meia altura, pode ver-se um pontinho mais claro. É a Terra!

A propósito, Carl Sagan escreveu o seguinte (tradução minha):

"A esta distância, a Terra pode não parecer ter qualquer interesse especial. Mas para nós é diferente. Considere novamente aquele ponto. É aqui. É a nossa casa. Somos nós. Nele, todos os que ama, todos os que conhece, todos os de que alguma vez ouviu falar, todos os seres humanos que jamais existiram, viveram as suas vidas. Todas as nossas alegrias e sofrimentos, milhares de confissões religiosas, ideologias e doutrinas económicas, todos os caçadores e recolectores, todos os heróis e cobardes, todos os criadores e destruidores de civilização, todos os reis e camponeses, todos os casais jovens apaixonados, todas as mães e todos os pais, crianças esperançosas, inventores e exploradores, todos os professores de moral, todos os políticos corruptos, todas as superestrelas, todos os líderes supremos, todos os santos e pecadores da história da nossa espécie viveram aí - nesse grão de pó suspenso num raio de luz do Sol.

A Terra é um palco minúsculo numa vasta arena cósmica. Pense nos rios de sangue derramados por todos aqueles generais e imperadores para que, em glória e triunfo, pudessem tornar-se momentaneamente mestres de uma fracção de um ponto. Pense nas intermináveis crueldades infligidas pelos habitantes de um canto deste pixel nos quase indistinguíveis habitantes de outro canto qualquer, quão frequentes os seus desentendimentos, quão desejosos de se matarem mutuamente, quão fervorosos dos seus ódios.

As nossas posturas, as nossas imaginadas auto-importâncias, a ilusão de que temos uma posição privilegiada no Universo, são postas em causa por este ponto de luz pálida. O nosso planeta é uma partícula solitária numa enorme envolvência de escuro cósmico. Na nossa obscuridade, em toda esta imensidão, não há vestígio que indique que ajuda virá de fora para nos salvar de nós mesmos.

A Terra é o único mundo conhecido até agora a albergar vida. Não há nenhum outro sítio, pelo menos no futuro próximo, para onde a nossa espécie possa migrar. Visitar, sim. Ficar, ainda não. Goste-se ou não, por agora a Terra é onde nos mantemos de pé.

Já foi dito que a astronomia é uma experiência humilde e que ajuda a construir o carácter. Possivelmente não há melhor demonstração da loucura do orgulho e preconceito humanos do que esta imagem distante do nosso minúsculo mundo. Para mim, ela enfatiza a nossa responsabilidade de lidarmos mais delicadamente uns com os outros, e de preservarmos e estimarmos o ponto azul claro, a única casa que alguma vez conhecemos."


Lá estão, nesse pontinho minúsculo, os doutos senhores discutindo a existência de Deus, a sua bondade, a bondade dos seres humanos, a bondade em si mesma, tudo e mais alguma coisa.

Cá fora, aqui ao lado da Voyager 1, silêncio e escuridão. Umas parcas partículas, umas ondas, uns fraquitos campos... Escuridão quase tudo, e cloreto de sódio?, nem vê-lo, nem na espectrofotometria. Nem bem, nem mal. Uma lata a deambular no nada. Deus?... Quem sabe?...

Afinal, disse alguém, 'Deus quer, o Homem sonha, a obra nasce'. Portanto, vamos lá de novo:

Quem disse, afinal, que Deus tinha de ser bom? Foi o Homem, porque Deus quis.

Quem disse, afinal, que Deus tinha de ser perfeito? Foi o Homem, porque Deus quis.

Quem disse, afinal, que Deus existe? E que não existe? E que não há forma de saber se existe ou não existe? Foi o Homem, porque Deus quis.

Daqui, deste ponto de vista, a milhares de milhões de quilómetros de distância, os seres humanos são animais que resolveram divertir-se com o cérebro que têm, e andam às voltas, em círculos, a correr atrás de si mesmos, das suas próprias ideias, citando-se uns aos outros sem sair do sítio, como cães desvairados a correr atrás da própria cauda.

Agora vejam eu, a correr atrás da minha própria cauda:

Deus está onde está o mistério. Deus é mistério, é magia. Deus explica tudo o que desconhecemos. Se tudo tem antecedente e consequente, Deus, este Deus que agora defino, não tem. Ele é. E isso é porreiro. Antes era Deus, depois Deus fez e disse e quis e nós sonhámos e tal, e depois nós kaput, e depois Deus. Já está. Nesta linha, Deus faz as vezes do telómero que fecha o cromossoma daquilo que podemos explicar. E, de cada vez que conseguimos explicar mais alguma coisa, Deus permanece lá, na extremidade, a explicar o resto, o inexplicado. Saber mais ou menos, explicar mais ou menos, não altera nada disto. Venha a ciência toda que pudermos inventar, e Deus estará sempre lá, antiquado vanguardista, na fronteira do conhecimento.

Ou não. Só depende de nós. Tal como o bem e o mal.

E agora voltem a olhar para o pequeno pixel que é o nosso planeta Terra..., ..., ..., e ponham-se a mexer. Não para correr atrás de novas caudas, próprias ou alheias, mas porque aquilo que aqui fazemos é da nossa responsabilidade, e há imenso por fazer!

(Vá, larga as caudas, os cus, as citações, as ondas... Não te prendas a uma onda qualquer, que a teus pés venha morrer. Ondas há muitas! Como os deuses! Pensa tu. Faz tu. É melhor não esperar pelos deuses.)


quinta-feira, 12 de dezembro de 2024

Da barbárie e do amor...

Ontem mesmo, numa qualquer rede social perto de si, uma pessoa disse que os Estados Unidos da América foram o único país a utilizar bombas nucleares contra outros países. A afirmação era ainda mais contundente, na verdade, porque dizia que a lista de países que o haviam feito continha neste momento apenas uma entrada, a desse país, o que deixa em aberto a possibilidade, infelizmente cada vez mais verosímil, de outro país ser adicionado à lista.

Quando era jovem e passeava tanto quanto podia pelos vales e cumes, pelos bosques, rios e ribeiras, florestas, prados e cascalheiras, perguntava-me porque é que era sempre tão difícil encontrar mais pessoas interessadas nesses passeios, quando afinal havia tantas pessoas a gostar de florestas e rios e ribeiros. Cedo percebi que as pessoas não fazem necessariamente aquilo de que gostam, mas sim e apenas aquilo que colocam à cabeça da sua lista de prioridades.

Eu comentei a afirmação sobre as bombas nucleares expressando a minha tristeza, ainda para mais sabendo que os Estados Unidos não lançaram apenas uma bomba, mas duas, e não o fizeram num sítio ermo, mas sim no centro de cidades populosas. Outra pessoa sentiu vontade de rir ao ler o meu comentário, e logo comentou, e não ficou sozinho nesse seu comentário, que os Estados Unidos fizeram isso mas conseguiram acabar com a guerra.

Os últimos anos têm sido para mim uma revelação muito desagradável da desumanidade que vai dentro de tantos corações e tantas cabeças. As cabeças munem-se de douta argumentação e partem a realidade aos bocados. Os corações escolhem um bocado em detrimento dos demais. Cabeças e corações unem-se então na idolatria do "nós" e no achincalhamento do "outros" e constroem paulatinamente uma impenetrável blindagem de pedaços de verdades descontextualizadas, de mentiras bem fundamentadas, de todos os pedacinhos da realidade que convêm, tudo bem unido numa matriz de grande necessidade de justiça, de identificação, de construção de um mundo melhor. Para o "nós".

A barbárie constrói-se assim. O mal, essa banalidade, resulta não apenas do silêncio conivente da maioria da população, mas também desta incapacidade de colocar o amor à frente na lista das prioridades. O amor, daquele tipo de amor que supostamente deveríamos festejar daqui a uns dias, quase no final de Dezembro, e que tanto é apregoado por tantas religiões neste planeta e ao longo da história. Ama o próximo. Ama o longínquo. Ama.

Sim, os bárbaros amam. Os bárbaros, os guerreiros, não gostam da guerra, não querem a guerra, estão dispostos a tudo para acabar com a guerra, inclusive lançar bombas nucleares sobre os inimigos. Mais dificilmente estarão dispostos a ceder ou a ver nos seus inimigos seres humanos iguais a eles mesmos.

Nos últimos anos fiquei a saber que assassinar os genes palestinianos é mau, mas justifica-se se desse modo conseguirmos finalmente paz no Médio Oriente. Fiquei a saber que arrasar a Ucrânia e a sua população é mau, mas justifica-se se desse modo pudermos dar uma lição ao Putin. Fiquei a saber que arrasar cidades inteiras, matando centenas de milhares de inocentes numa fracção de segundo, justifica-se se for para ganhar uma guerra. Fiquei a saber que promover o terror à escala global, alterando regimes em países estrangeiros como se fossem sua pertença, produzindo e vendendo armas, acicatando divisões nas populações e promovendo activamente a criação de grupos armados, começando e acabando guerras de botões e sangue com telefonemas, tudo isso se justifica, e é bom, se em troca pudermos instalar no mundo uma "democracia" à nossa moda.

Os fins justificam os meios, portanto. A barbárie. Defendida a dólares, euros, balas e explosivos por todos os "democratas" que se esforçam por terminar todas as guerras, pertencentes ao "nós" ou ao "outros".

Eles gostam de florestas, rios e ribeiras. Simplesmente há outras prioridades.

Mas a floresta humana precisa de nós. A floresta que começa dentro de nós. Nós não somos bárbaros! Somos gente! Iguais a toda a gente que há e que alguma vez houve na nossa capacidade de amar, de amar familiares, amigos, vizinhos, os outros, os animais e as plantas, a música, a dança, a comida, a bebida, as roupas, as palavras, os desenhos, as pinturas, os corpos, as aventuras, o calor, a segurança e o conforto dum ninho. Essa floresta partilhada por todos nós e de que tanto precisamos constrói-se com amor.

É preciso mudar as prioridades. É preciso o amor! É preciso aprender a amar quem odiamos e quem nos odeia. Não podemos mais justificar o nosso mal com o mal dos outros. A única bomba boa que há é a que nunca existiu.

Vem-me à memória o discurso de Chaplin no "o grande ditador".

Vem-me à memória este excerto do "escuta, zé ninguém" de Wilhelm Reich.

Vem-me à memória o Zizek a dizer que não deve ser necessário entender o outro para que possamos viver em paz. O mundo é muito complexo, não temos tempo para entender tudo, temos de ser capazes de viver em paz mesmo sem entender tudo.

Vem-me à memória tanta coisa... a certeza do Almada de que já estava tudo escrito quando nasci, só faltava mesmo mudar o mundo. Até o barbudo alemão já dizia que os filósofos interpretavam tudo, só ficava a faltar mudar o mundo.

"Há tanta coisa que fazer, meu Deus! E esta gente distraída em guerras!" (Cena do ódio, Almada Negreiros)

terça-feira, 3 de dezembro de 2024

Da esquerda e da direita...

Já dizia o alemão barbudo, e muitos depois dele, inclusivamente o Fernando Rosas, cujas palavras seguintes podem ser escutadas na parte final do filme "25 anos de paciência impaciente", PSR, 1998, disponível na Internet.

Não posso deixar de considerar,
por muito antiquado que isso pareça,
que o grande separador de águas em termos teóricos e práticos
entre esquerda e direita
continua sendo a atitude que se toma face à iniquidade básica
em que repousa o sistema capitalista,
ou seja, em relação àquela relação social fundamental
mediante a qual parte do produto de quem trabalha
é expropriada por quem não o faz.
A resposta que se dá em termos teóricos e práticos a esta questão
continua a ser o que divide a direita e a esquerda,
por muito que um certo discurso ideológico
tente hoje descentrar esta questão
e mesmo negar a actualidade da dicotomia.
É bem certo que esta matriz fundamental do pensamento socialista
deu origem a duas grandes ordens de equívocos, historicamente,
o do socialismo digamos que ocidental,
que se transformou numa pura gestão do sistema capitalista,
e de um socialismo dito real,
que se transformou, ele próprio, numa reprodução
de um sistema capitalista
tão injusto e odioso como o tradicional.
O que significa que o grande desafio que se coloca à esquerda
em termos modernos, continua a ser o de se reencontrar
através da crítica das experiências históricas do socialismo
ou seja, que sistema há-de ser esse,
que organização há-de ser essa
que seja o princípio do fim do Estado,
e não a reprodução do sistema capitalista de outras formas,
que organização há-de ser essa
que permita simultaneamente o progressivo esvaziamento
das discriminações tradicionais entre sexos,
entre o trabalho manual e o intelectual,
entre a cidade e o campo,
e que permita também o maior progresso
económico, social, material, intelectual
a maior criatividade,
como compatibilizar isso,
nomeadamente com certos mecanismos de economia de mercado,
ou como superar o pluralismo limitado que hoje existe
dominado pelas oligarquias partidárias tradicionais
com um novo pluralismo mais amplo
que permita a intervenção participativa
das organizações de cidadãos
na vida da colectividade.
Tudo isto são utopias, dirão alguns,
mas eu pergunto
o que é que é intelectualmente mais sério:
se perseguir a luta por uma sociedade mais justa
ainda que assumindo o prolongado da jornada
ou se, pelo contrário,
satisfazermo-nos com essa espécie de letargia digestiva
que algumas pessoas empanturradas de bom-senso
nos aconselham
elogiando as virtudes de um sistema
que hoje elogiam com tanto zelo
como exactamente ontem atacavam.
Para mim,
que não tenho actualmente nenhuma filiação partidária,
nem estou particularmente inclinado
para esse tipo de actividade,
talvez que ser de esquerda seja, ao menos,
ter o pudor de não dar tal espectáculo.

-------

Ou, como questionava o José Mário Branco:

quantas vezes já tentámos nós?  914? ainda não. 606? ainda não. mas talvez quem sabe 10, 20?... qual é o preço da esperança?... acordai! acordai homens que dormis a embalar a dor dos silêncios vis!

Ser de esquerda hoje...

Ser de esquerda hoje

é não ter medo da palavra esquerda
e não a deslocar ao sabor do centro
é não ter vergonha
das coisas vividas e dos textos lidos
que nos puseram a pensar como pensamos
é não pôr entre parêntesis
os pressupostos do que fazemos.
A emancipação dos trabalhadores
será obra dos próprios trabalhadores
ou então não será.
É não perder a memória
e não permitir que a direita
se cubra dos louros das nossas vitórias
e seja opressor em nome da liberdade
é não entregar a política aos políticos
a arte aos artistas
o saber aos sábios
é não fazer do mal-estar
uma desculpa para não estar
é uma maneira de viver
onde o autoritarismo não cabe
e onde a aventura tem lugar
é sentir-se estranho
onde não há espaço para propor, decidir, imaginar
é preferir trabalhar com os outros
do que fechado num quarto
é gostar de estar onde alguma coisa mexe
e ser solidário nas pequenas novidades que despontam
é ter que tomar partido
contra as repressões e explorações diárias
uma luta contínua contra os lugares comuns
desta sociedade de consumos vários
é admitir a subversão
é assumir a diferença
é ter curiosidade pela realidade
e acreditar que a podemos transformar
é saber que nada acontece por acaso
é a crítica permanente dos poderes
é a desconfiança das máscaras todas
tecnocracias, burocracias, pragmatismos
dos apolíticos e dos neutros
é viver com uma utopia dentro da cabeça e da vontade
e duvidar do chamado realismo
é perceber que a alegria é possível
e que não vem nas embalagens de champô
é achar que vale a pena.
É isto tudo ao mesmo tempo
e é tentar não cortar a nossa vida às fatias
para pôr uma razão diferente em cada uma
e é gostar dos riscos que corremos.
 
Retirado do filme "25 anos de paciência impaciente", PSR, 1998, disponível na Internet, entre os minutos 33 e 35.

quarta-feira, 20 de novembro de 2024

A verdade na política internacional - discurso de Harold Pinter...

Se não tem vontade para avaliar a veracidade da informação que lhe chega, talvez se sinta mais confortável deixando esse papel a outros, nomeados e renomeados. Neste caso, temos o discurso proferido por Harold Pinter na sequência da atribuição do prémio Nobel de literatura de 2005, com a chancela dos escandinavos que aparentemente têm um discernimento que escapa ao comum dos mortais. Harold Pinter, inglês, não foi um terrorista. Na entrada da wikipedia em português diz que ele foi actor, director, poeta, roteirista e "certamente um dos grandes dramaturgos do século XX, além de destacado e incómodo activista político". Creio que uma propriedade intrínseca dos "activistas" é serem incómodos. O Saramago também escrevia para desassossegar. O que, numa sociedade onde sopram fortes os ventos do hedonismo, daria pano para mangas. Mas adiante.

Fica o discurso, em inglês, proferido pelo mesmo, e que merece ser escutado até ao fim.

https://www.nobelprize.org/prizes/literature/2005/pinter/lecture/

In 1958 I wrote the following:

‘There are no hard distinctions between what is real and what is unreal, nor between what is true and what is false. A thing is not necessarily either true or false; it can be both true and false.’

I believe that these assertions still make sense and do still apply to the exploration of reality through art. So as a writer I stand by them but as a citizen I cannot. As a citizen I must ask: What is true? What is false?

Truth in drama is forever elusive. You never quite find it but the search for it is compulsive. The search is clearly what drives the endeavour. The search is your task. More often than not you stumble upon the truth in the dark, colliding with it or just glimpsing an image or a shape which seems to correspond to the truth, often without realising that you have done so. But the real truth is that there never is any such thing as one truth to be found in dramatic art. There are many. These truths challenge each other, recoil from each other, reflect each other, ignore each other, tease each other, are blind to each other. Sometimes you feel you have the truth of a moment in your hand, then it slips through your fingers and is lost.

I have often been asked how my plays come about. I cannot say. Nor can I ever sum up my plays, except to say that this is what happened. That is what they said. That is what they did.

Most of the plays are engendered by a line, a word or an image. The given word is often shortly followed by the image. I shall give two examples of two lines which came right out of the blue into my head, followed by an image, followed by me.

The plays are The Homecoming and Old Times. The first line of The Homecoming is ‘What have you done with the scissors?’ The first line of Old Times is ‘Dark.’

In each case I had no further information.

In the first case someone was obviously looking for a pair of scissors and was demanding their whereabouts of someone else he suspected had probably stolen them. But I somehow knew that the person addressed didn’t give a damn about the scissors or about the questioner either, for that matter.

‘Dark’ I took to be a description of someone’s hair, the hair of a woman, and was the answer to a question. In each case I found myself compelled to pursue the matter. This happened visually, a very slow fade, through shadow into light.

I always start a play by calling the characters A, B and C.

In the play that became The Homecoming I saw a man enter a stark room and ask his question of a younger man sitting on an ugly sofa reading a racing paper. I somehow suspected that A was a father and that B was his son, but I had no proof. This was however confirmed a short time later when B (later to become Lenny) says to A (later to become Max), ‘Dad, do you mind if I change the subject? I want to ask you something. The dinner we had before, what was the name of it? What do you call it? Why don’t you buy a dog? You’re a dog cook. Honest. You think you’re cooking for a lot of dogs.’ So since B calls A ‘Dad’ it seemed to me reasonable to assume that they were father and son. A was also clearly the cook and his cooking did not seem to be held in high regard. Did this mean that there was no mother? I didn’t know. But, as I told myself at the time, our beginnings never know our ends.

‘Dark.’ A large window. Evening sky. A man, A (later to become Deeley), and a woman, B (later to become Kate), sitting with drinks. ‘Fat or thin?’ the man asks. Who are they talking about? But I then see, standing at the window, a woman, C (later to become Anna), in another condition of light, her back to them, her hair dark.

It’s a strange moment, the moment of creating characters who up to that moment have had no existence. What follows is fitful, uncertain, even hallucinatory, although sometimes it can be an unstoppable avalanche. The author’s position is an odd one. In a sense he is not welcomed by the characters. The characters resist him, they are not easy to live with, they are impossible to define. You certainly can’t dictate to them. To a certain extent you play a never-ending game with them, cat and mouse, blind man’s buff, hide and seek. But finally you find that you have people of flesh and blood on your hands, people with will and an individual sensibility of their own, made out of component parts you are unable to change, manipulate or distort.

So language in art remains a highly ambiguous transaction, a quicksand, a trampoline, a frozen pool which might give way under you, the author, at any time.

But as I have said, the search for the truth can never stop. It cannot be adjourned, it cannot be postponed. It has to be faced, right there, on the spot.

Political theatre presents an entirely different set of problems. Sermonising has to be avoided at all cost. Objectivity is essential. The characters must be allowed to breathe their own air. The author cannot confine and constrict them to satisfy his own taste or disposition or prejudice. He must be prepared to approach them from a variety of angles, from a full and uninhibited range of perspectives, take them by surprise, perhaps, occasionally, but nevertheless give them the freedom to go which way they will. This does not always work. And political satire, of course, adheres to none of these precepts, in fact does precisely the opposite, which is its proper function.

In my play The Birthday Party I think I allow a whole range of options to operate in a dense forest of possibility before finally focussing on an act of subjugation.

Mountain Language pretends to no such range of operation. It remains brutal, short and ugly. But the soldiers in the play do get some fun out of it. One sometimes forgets that torturers become easily bored. They need a bit of a laugh to keep their spirits up. This has been confirmed of course by the events at Abu Ghraib in Baghdad. Mountain Language lasts only 20 minutes, but it could go on for hour after hour, on and on and on, the same pattern repeated over and over again, on and on, hour after hour.

Ashes to Ashes, on the other hand, seems to me to be taking place under water. A drowning woman, her hand reaching up through the waves, dropping down out of sight, reaching for others, but finding nobody there, either above or under the water, finding only shadows, reflections, floating; the woman a lost figure in a drowning landscape, a woman unable to escape the doom that seemed to belong only to others.

But as they died, she must die too.

Political language, as used by politicians, does not venture into any of this territory since the majority of politicians, on the evidence available to us, are interested not in truth but in power and in the maintenance of that power. To maintain that power it is essential that people remain in ignorance, that they live in ignorance of the truth, even the truth of their own lives. What surrounds us therefore is a vast tapestry of lies, upon which we feed.

As every single person here knows, the justification for the invasion of Iraq was that Saddam Hussein possessed a highly dangerous body of weapons of mass destruction, some of which could be fired in 45 minutes, bringing about appalling devastation. We were assured that was true. It was not true. We were told that Iraq had a relationship with Al Quaeda and shared responsibility for the atrocity in New York of September 11th 2001. We were assured that this was true. It was not true. We were told that Iraq threatened the security of the world. We were assured it was true. It was not true.

The truth is something entirely different. The truth is to do with how the United States understands its role in the world and how it chooses to embody it.

But before I come back to the present I would like to look at the recent past, by which I mean United States foreign policy since the end of the Second World War. I believe it is obligatory upon us to subject this period to at least some kind of even limited scrutiny, which is all that time will allow here.

Everyone knows what happened in the Soviet Union and throughout Eastern Europe during the post-war period: the systematic brutality, the widespread atrocities, the ruthless suppression of independent thought. All this has been fully documented and verified.

But my contention here is that the US crimes in the same period have only been superficially recorded, let alone documented, let alone acknowledged, let alone recognised as crimes at all. I believe this must be addressed and that the truth has considerable bearing on where the world stands now. Although constrained, to a certain extent, by the existence of the Soviet Union, the United States’ actions throughout the world made it clear that it had concluded it had carte blanche to do what it liked.

Direct invasion of a sovereign state has never in fact been America’s favoured method. In the main, it has preferred what it has described as ‘low intensity conflict’. Low intensity conflict means that thousands of people die but slower than if you dropped a bomb on them in one fell swoop. It means that you infect the heart of the country, that you establish a malignant growth and watch the gangrene bloom. When the populace has been subdued – or beaten to death – the same thing – and your own friends, the military and the great corporations, sit comfortably in power, you go before the camera and say that democracy has prevailed. This was a commonplace in US foreign policy in the years to which I refer.

The tragedy of Nicaragua was a highly significant case. I choose to offer it here as a potent example of America’s view of its role in the world, both then and now.

I was present at a meeting at the US embassy in London in the late 1980s.

The United States Congress was about to decide whether to give more money to the Contras in their campaign against the state of Nicaragua. I was a member of a delegation speaking on behalf of Nicaragua but the most important member of this delegation was a Father John Metcalf. The leader of the US body was Raymond Seitz (then number two to the ambassador, later ambassador himself). Father Metcalf said: ‘Sir, I am in charge of a parish in the north of Nicaragua. My parishioners built a school, a health centre, a cultural centre. We have lived in peace. A few months ago a Contra force attacked the parish. They destroyed everything: the school, the health centre, the cultural centre. They raped nurses and teachers, slaughtered doctors, in the most brutal manner. They behaved like savages. Please demand that the US government withdraw its support from this shocking terrorist activity.’

Raymond Seitz had a very good reputation as a rational, responsible and highly sophisticated man. He was greatly respected in diplomatic circles. He listened, paused and then spoke with some gravity. ‘Father,’ he said, ‘let me tell you something. In war, innocent people always suffer.’ There was a frozen silence. We stared at him. He did not flinch.

Innocent people, indeed, always suffer.

Finally somebody said: ‘But in this case “innocent people” were the victims of a gruesome atrocity subsidised by your government, one among many. If Congress allows the Contras more money further atrocities of this kind will take place. Is this not the case? Is your government not therefore guilty of supporting acts of murder and destruction upon the citizens of a sovereign state?’

Seitz was imperturbable. ‘I don’t agree that the facts as presented support your assertions,’ he said.

As we were leaving the Embassy a US aide told me that he enjoyed my plays. I did not reply.

I should remind you that at the time President Reagan made the following statement: ‘The Contras are the moral equivalent of our Founding Fathers.’

The United States supported the brutal Somoza dictatorship in Nicaragua for over 40 years. The Nicaraguan people, led by the Sandinistas, overthrew this regime in 1979, a breathtaking popular revolution.

The Sandinistas weren’t perfect. They possessed their fair share of arrogance and their political philosophy contained a number of contradictory elements. But they were intelligent, rational and civilised. They set out to establish a stable, decent, pluralistic society. The death penalty was abolished. Hundreds of thousands of poverty-stricken peasants were brought back from the dead. Over 100,000 families were given title to land. Two thousand schools were built. A quite remarkable literacy campaign reduced illiteracy in the country to less than one seventh. Free education was established and a free health service. Infant mortality was reduced by a third. Polio was eradicated.

The United States denounced these achievements as Marxist/Leninist subversion. In the view of the US government, a dangerous example was being set. If Nicaragua was allowed to establish basic norms of social and economic justice, if it was allowed to raise the standards of health care and education and achieve social unity and national self respect, neighbouring countries would ask the same questions and do the same things. There was of course at the time fierce resistance to the status quo in El Salvador.

I spoke earlier about ‘a tapestry of lies’ which surrounds us. President Reagan commonly described Nicaragua as a ‘totalitarian dungeon’. This was taken generally by the media, and certainly by the British government, as accurate and fair comment. But there was in fact no record of death squads under the Sandinista government. There was no record of torture. There was no record of systematic or official military brutality. No priests were ever murdered in Nicaragua. There were in fact three priests in the government, two Jesuits and a Maryknoll missionary. The totalitarian dungeons were actually next door, in El Salvador and Guatemala. The United States had brought down the democratically elected government of Guatemala in 1954 and it is estimated that over 200,000 people had been victims of successive military dictatorships.

Six of the most distinguished Jesuits in the world were viciously murdered at the Central American University in San Salvador in 1989 by a battalion of the Alcatl regiment trained at Fort Benning, Georgia, USA. That extremely brave man Archbishop Romero was assassinated while saying mass. It is estimated that 75,000 people died. Why were they killed? They were killed because they believed a better life was possible and should be achieved. That belief immediately qualified them as communists. They died because they dared to question the status quo, the endless plateau of poverty, disease, degradation and oppression, which had been their birthright.

The United States finally brought down the Sandinista government. It took some years and considerable resistance but relentless economic persecution and 30,000 dead finally undermined the spirit of the Nicaraguan people. They were exhausted and poverty stricken once again. The casinos moved back into the country. Free health and free education were over. Big business returned with a vengeance. ‘Democracy’ had prevailed.

But this ‘policy’ was by no means restricted to Central America. It was conducted throughout the world. It was never-ending. And it is as if it never happened.

The United States supported and in many cases engendered every right wing military dictatorship in the world after the end of the Second World War. I refer to Indonesia, Greece, Uruguay, Brazil, Paraguay, Haiti, Turkey, the Philippines, Guatemala, El Salvador, and, of course, Chile. The horror the United States inflicted upon Chile in 1973 can never be purged and can never be forgiven.

Hundreds of thousands of deaths took place throughout these countries. Did they take place? And are they in all cases attributable to US foreign policy? The answer is yes they did take place and they are attributable to American foreign policy. But you wouldn’t know it.

It never happened. Nothing ever happened. Even while it was happening it wasn’t happening. It didn’t matter. It was of no interest. The crimes of the United States have been systematic, constant, vicious, remorseless, but very few people have actually talked about them. You have to hand it to America. It has exercised a quite clinical manipulation of power worldwide while masquerading as a force for universal good. It’s a brilliant, even witty, highly successful act of hypnosis.

I put to you that the United States is without doubt the greatest show on the road. Brutal, indifferent, scornful and ruthless it may be but it is also very clever. As a salesman it is out on its own and its most saleable commodity is self love. It’s a winner. Listen to all American presidents on television say the words, ‘the American people’, as in the sentence, ‘I say to the American people it is time to pray and to defend the rights of the American people and I ask the American people to trust their president in the action he is about to take on behalf of the American people.’

It’s a scintillating stratagem. Language is actually employed to keep thought at bay. The words ‘the American people’ provide a truly voluptuous cushion of reassurance. You don’t need to think. Just lie back on the cushion. The cushion may be suffocating your intelligence and your critical faculties but it’s very comfortable. This does not apply of course to the 40 million people living below the poverty line and the 2 million men and women imprisoned in the vast gulag of prisons, which extends across the US.

The United States no longer bothers about low intensity conflict. It no longer sees any point in being reticent or even devious. It puts its cards on the table without fear or favour. It quite simply doesn’t give a damn about the United Nations, international law or critical dissent, which it regards as impotent and irrelevant. It also has its own bleating little lamb tagging behind it on a lead, the pathetic and supine Great Britain.

What has happened to our moral sensibility? Did we ever have any? What do these words mean? Do they refer to a term very rarely employed these days – conscience? A conscience to do not only with our own acts but to do with our shared responsibility in the acts of others? Is all this dead? Look at Guantanamo Bay. Hundreds of people detained without charge for over three years, with no legal representation or due process, technically detained forever. This totally illegitimate structure is maintained in defiance of the Geneva Convention. It is not only tolerated but hardly thought about by what’s called the ‘international community’. This criminal outrage is being committed by a country, which declares itself to be ‘the leader of the free world’. Do we think about the inhabitants of Guantanamo Bay? What does the media say about them? They pop up occasionally – a small item on page six. They have been consigned to a no man’s land from which indeed they may never return. At present many are on hunger strike, being force-fed, including British residents. No niceties in these force-feeding procedures. No sedative or anaesthetic. Just a tube stuck up your nose and into your throat. You vomit blood. This is torture. What has the British Foreign Secretary said about this? Nothing. What has the British Prime Minister said about this? Nothing. Why not? Because the United States has said: to criticise our conduct in Guantanamo Bay constitutes an unfriendly act. You’re either with us or against us. So Blair shuts up.

The invasion of Iraq was a bandit act, an act of blatant state terrorism, demonstrating absolute contempt for the concept of international law. The invasion was an arbitrary military action inspired by a series of lies upon lies and gross manipulation of the media and therefore of the public; an act intended to consolidate American military and economic control of the Middle East masquerading – as a last resort – all other justifications having failed to justify themselves – as liberation. A formidable assertion of military force responsible for the death and mutilation of thousands and thousands of innocent people.

We have brought torture, cluster bombs, depleted uranium, innumerable acts of random murder, misery, degradation and death to the Iraqi people and call it ‘bringing freedom and democracy to the Middle East’.

How many people do you have to kill before you qualify to be described as a mass murderer and a war criminal? One hundred thousand? More than enough, I would have thought. Therefore it is just that Bush and Blair be arraigned before the International Criminal Court of Justice. But Bush has been clever. He has not ratified the International Criminal Court of Justice. Therefore if any American soldier or for that matter politician finds himself in the dock Bush has warned that he will send in the marines. But Tony Blair has ratified the Court and is therefore available for prosecution. We can let the Court have his address if they’re interested. It is Number 10, Downing Street, London.

Death in this context is irrelevant. Both Bush and Blair place death well away on the back burner. At least 100,000 Iraqis were killed by American bombs and missiles before the Iraq insurgency began. These people are of no moment. Their deaths don’t exist. They are blank. They are not even recorded as being dead. ‘We don’t do body counts,’ said the American general Tommy Franks.

Early in the invasion there was a photograph published on the front page of British newspapers of Tony Blair kissing the cheek of a little Iraqi boy. ‘A grateful child,’ said the caption. A few days later there was a story and photograph, on an inside page, of another four-year-old boy with no arms. His family had been blown up by a missile. He was the only survivor. ‘When do I get my arms back?’ he asked. The story was dropped. Well, Tony Blair wasn’t holding him in his arms, nor the body of any other mutilated child, nor the body of any bloody corpse. Blood is dirty. It dirties your shirt and tie when you’re making a sincere speech on television.

The 2,000 American dead are an embarrassment. They are transported to their graves in the dark. Funerals are unobtrusive, out of harm’s way. The mutilated rot in their beds, some for the rest of their lives. So the dead and the mutilated both rot, in different kinds of graves.

Here is an extract from a poem by Pablo Neruda, ‘I’m Explaining a Few Things’:

And one morning all that was burning,
one morning the bonfires
leapt out of the earth
devouring human beings
and from then on fire,
gunpowder from then on,
and from then on blood.
Bandits with planes and Moors,
bandits with finger-rings and duchesses,
bandits with black friars spattering blessings
came through the sky to kill children
and the blood of children ran through the streets
without fuss, like children’s blood.

Jackals that the jackals would despise
stones that the dry thistle would bite on and spit out,
vipers that the vipers would abominate.

Face to face with you I have seen the blood
of Spain tower like a tide
to drown you in one wave
of pride and knives.

Treacherous
generals:
see my dead house,
look at broken Spain:
from every house burning metal flows
instead of flowers
from every socket of Spain
Spain emerges
and from every dead child a rifle with eyes
and from every crime bullets are born
which will one day find
the bull’s eye of your hearts.

And you will ask: why doesn’t his poetry
speak of dreams and leaves
and the great volcanoes of his native land.

Come and see the blood in the streets.
Come and see
the blood in the streets.
Come and see the blood
in the streets!*

Let me make it quite clear that in quoting from Neruda’s poem I am in no way comparing Republican Spain to Saddam Hussein’s Iraq. I quote Neruda because nowhere in contemporary poetry have I read such a powerful visceral description of the bombing of civilians.

I have said earlier that the United States is now totally frank about putting its cards on the table. That is the case. Its official declared policy is now defined as ‘full spectrum dominance’. That is not my term, it is theirs. ‘Full spectrum dominance’ means control of land, sea, air and space and all attendant resources.

The United States now occupies 702 military installations throughout the world in 132 countries, with the honourable exception of Sweden, of course. We don’t quite know how they got there but they are there all right.

The United States possesses 8,000 active and operational nuclear warheads. Two thousand are on hair trigger alert, ready to be launched with 15 minutes warning. It is developing new systems of nuclear force, known as bunker busters. The British, ever cooperative, are intending to replace their own nuclear missile, Trident. Who, I wonder, are they aiming at? Osama bin Laden? You? Me? Joe Dokes? China? Paris? Who knows? What we do know is that this infantile insanity – the possession and threatened use of nuclear weapons – is at the heart of present American political philosophy. We must remind ourselves that the United States is on a permanent military footing and shows no sign of relaxing it.

Many thousands, if not millions, of people in the United States itself are demonstrably sickened, shamed and angered by their government’s actions, but as things stand they are not a coherent political force – yet. But the anxiety, uncertainty and fear which we can see growing daily in the United States is unlikely to diminish.

I know that President Bush has many extremely competent speech writers but I would like to volunteer for the job myself. I propose the following short address which he can make on television to the nation. I see him grave, hair carefully combed, serious, winning, sincere, often beguiling, sometimes employing a wry smile, curiously attractive, a man’s man.

‘God is good. God is great. God is good. My God is good. Bin Laden’s God is bad. His is a bad God. Saddam’s God was bad, except he didn’t have one. He was a barbarian. We are not barbarians. We don’t chop people’s heads off. We believe in freedom. So does God. I am not a barbarian. I am the democratically elected leader of a freedom-loving democracy. We are a compassionate society. We give compassionate electrocution and compassionate lethal injection. We are a great nation. I am not a dictator. He is. I am not a barbarian. He is. And he is. They all are. I possess moral authority. You see this fist? This is my moral authority. And don’t you forget it.’

A writer’s life is a highly vulnerable, almost naked activity. We don’t have to weep about that. The writer makes his choice and is stuck with it. But it is true to say that you are open to all the winds, some of them icy indeed. You are out on your own, out on a limb. You find no shelter, no protection – unless you lie – in which case of course you have constructed your own protection and, it could be argued, become a politician.

I have referred to death quite a few times this evening. I shall now quote a poem of my own called ‘Death’.

Where was the dead body found?
Who found the dead body?
Was the dead body dead when found?
How was the dead body found?

Who was the dead body?

Who was the father or daughter or brother
Or uncle or sister or mother or son
Of the dead and abandoned body?

Was the body dead when abandoned?
Was the body abandoned?
By whom had it been abandoned?

Was the dead body naked or dressed for a journey?

What made you declare the dead body dead?
Did you declare the dead body dead?
How well did you know the dead body?
How did you know the dead body was dead?

Did you wash the dead body
Did you close both its eyes
Did you bury the body
Did you leave it abandoned
Did you kiss the dead body

When we look into a mirror we think the image that confronts us is accurate. But move a millimetre and the image changes. We are actually looking at a never-ending range of reflections. But sometimes a writer has to smash the mirror – for it is on the other side of that mirror that the truth stares at us.

I believe that despite the enormous odds which exist, unflinching, unswerving, fierce intellectual determination, as citizens, to define the real truth of our lives and our societies is a crucial obligation which devolves upon us all. It is in fact mandatory.

If such a determination is not embodied in our political vision we have no hope of restoring what is so nearly lost to us – the dignity of man.


* Extract from “I’m Explaining a Few Things” translated by Nathaniel Tarn, from Pablo Neruda: Selected Poems, published by Jonathan Cape, London 1970. Used by permission of The Random House Group Limited.