Há um ou dois dias ouvi a notícia de que um (ou uma) atleta
transexual tinha sido impedid... de participar numa competição olímpica qualquer.
Imagino este tipo de situação a levantar todo o tipo de reacções muito
inflamadas, contra ou a favor de uma ou outra coisa.
Imaginemos que uma competição tem por objectivo encontrar
"o mais forte" de todos os elementos de uma população. Para que isso
seja possível é necessário, mesmo que não suficiente, que todos os elementos do
universo considerado participem na competição, dando provas de quão fortes são.
Se quisermos saber qual é o português mais rápido, temos de colocar todos os
portugueses a correr.
No entanto, em todas as competições de atletismo consideradas
sérias os atletas que são admitidos em cada prova são apenas um subgrupo da
população dos diversos países em competição. Os critérios podem ter a ver com
idade e outras características dos indivíduos, e quase sempre o género é um dos
critérios de admissão ou não numa determinada prova.
Há diversas actividades, e estou a lembrar-me por exemplo de
marchas, corridas informais, provas de orientação e outras, em que as provas
contemplam uma diversidade de categorias, distinguidas segundo os vectores
idade (iniciados, juniores, seniores, veteranos), sexo (masculino, feminino,
misto... não sei se já contemplam outras possibilidades!), e individuais ou em
grupo. Isto acontece sobretudo nas provas onde o objectivo não é tanto (ou
apenas) encontrar o melhor atleta, mas sim o de atrair pessoas para a prática
dessa actividade, dando oportunidade a todos de competirem entre pares, isto é,
entre pessoas ou grupos com as mesmas características, de uma forma considerada
justa.
Nas provas internacionais de atletismo não existem, por
exemplo, corridas de 100 metros em que participem simultaneamente homens e
mulheres. À partida parece evidente que assim seja, uma vez que todos os
resultados demonstram sistematicamente que os homens mais rápidos terminam a
prova em menos tempo que as mulheres mais rápidas, isto é, que em provas
conjuntas os homens iriam ganhar sempre.
No entanto, e apesar de parecer evidente, merece que se
reflicta um pouco sobre isso. De facto, se estivéssemos interessados em
encontrar o indivíduo mais rápido, bastaria uma prova conjunta em que todos os
indivíduos pudessem participar, e o mais rápido seria o indivíduo que estávamos
à procura e pronto. Mas essa não é a realidade. Uma possível razão explicativa
é o reconhecimento de que há grupos de indivíduos que nunca teriam hipótese de
ganhar, e criando competições entre grupos mais homogéneos estamos a ser mais
justos. Os homens são geralmente mais fortes e maiores do que as mulheres o que
as deixa numa posição desvantajosa em competições baseadas na capacidade
física, o que pode ser considerado injusto.
No entanto, esta não pode ser a única razão para segregar os
concorrentes em grupos. Tomemos, por exemplo, as competições que não são tão
dependentes da força física, mas mais da destreza motora, da perícia, ou da
capacidade intelectual, como por exemplo a dança, o tiro ou o xadrez. Não sei se
estatisticamente os homens ou as mulheres apresentam melhores resultados em
qualquer uma destas actividades. Se esse não for o caso, como explicar a
existência, ainda assim, de competições segregadas por género? Talvez nessas
situações a razão explicativa seja identitária, ou seja, as mulheres competem
entre si para encontrarem a melhor atiradora, e não misturadas com os homens,
pelos mesmos motivos que os portugueses competem entre si e não com os
espanhóis. Será?
Em qualquer caso, se um homem que se identifica como mulher,
faz uma operação de mudança de sexo, mas apesar disso continua a apresentar um
corpo com características masculinas em termos de força e tamanho, e assim se
apresenta numa prova de atletismo feminina... parece-me natural que as mulheres
que estão inscritas nessa prova levantem questões acerca da justiça dessa
admissão. Suspeito que no caso que foi notícia, a rejeição da inscrição desse
(ou dessa) atleta terá tido a justiça como um dos fundamentos.
Mas se é de justiça na competição que estamos a falar,
levantemos então a questão mais fundamental: o que é uma competição justa?
Perante uma corrida entre um indivíduo com todas as
capacidades motoras e um indivíduo só com uma perna, creio que todos estarão de
acordo que essa corrida não será justa. O mesmo entre um indivíduo de 30 anos de
idade e outro de 3. Porquê? Porque nesses casos consideramos que existe um
indivíduo que não tem qualquer possibilidade de ganhar, mesmo que se esforce ao
máximo. Mas aquilo que parece evidente, pode tornar-se menos evidente se
considerarmos exemplos menos díspares.
Consideremos, por exemplo, uma corrida de 400 metros entre dois indivíduos
do sexo masculino de 25 anos de idade. À partida poderá ser considerada uma
corrida justa. Mas e se um deles medir 1,8 metros de altura e o outro apenas
1,6? Vamos lá verificar nas provas de atletismo internacionais de 400 metros quantos atletas são baixotes. Talvez cheguemos à conclusão de que quase
não existem baixotes. E podemos chegar também à conclusão de que quase não
existem atletas obesos.
Será justa uma corrida entre um alto e um baixo? Talvez não
seja. É possível que o baixo, nas sociedades que temos hoje em dia, se sinta
mal por ser baixo, e tenha até vontade de ser mais alto, mas que nada possa
fazer para modificar essa sua característica. Assim, e novamente, por mais que
se esforce, ele não vai conseguir ser mais alto, e estará, na competição da
corrida, sempre em desvantagem face a um concorrente significativamente mais
alto. Se não há nada que ele possa fazer, o resultado da competição fica, em
grande medida, determinado à partida por condições que estão fora do alcance
dos concorrentes. E talvez esse seja um bom critério para estabelecer que uma
competição não é justa.
No entanto, não me lembro de alguma vez ver provas de
atletismo segregadas em função da altura. Porque será?... Será isso justo?...
Será justa uma corrida entre um magro e um obeso? Bom...
suspeito que alguns leitores considerarão que sim e outros que não, em função
do maior ou menor poder que atribuem aos indivíduos para alterarem a sua
condição de obesos. Quem considera que a obesidade se pode eliminar
simplesmente deixando de comer doces, facilmente irá responsabilizar o obeso
pela sua obesidade e poderá então argumentar algo como "perdeste a corrida?
não tivesses comido tanto!". Pode acontecer, no entanto, que a obesidade
não seja assim tão fácil de controlar, que os obesos tenham a perfeita noção de
que essa condição é maléfica para a sua saúde, que se sintam mal com o seu
corpo e com os julgamentos alheios, que tenham tentado mil e uma formas,
algumas bem exigentes, de reduzir a sua obesidade, mas sem sucesso. Pode
acontecer, em simultâneo, que o magro coma tudo o que lhe apetece não
aumentando nunca o seu peso. Será justo?...
No golfe existe um método de contagem do número de tacadas
que os concorrentes utilizam para meterem as bolas nos 18 buracos do curso
que, resumidamente, considera o resultado habitual, ou o melhor resultado, de
cada um. Assim, se numa prova um indivíduo tem no seu historial um registo de
60 tacadas em 18 buracos e outro indivíduo tem um registo de 120 tacadas nos
mesmos 18 buracos, o resultado de cada um será a diferença face a esse registo.
No final, e em grande medida, esse sistema de contagem faz com que cada
participante esteja a concorrer consigo mesmo, nomeadamente com a sua melhor
marca. E essa talvez seja uma forma mais justa de competir: quando competimos
relativamente ao nosso melhor resultado, e não relativamente aos outros
indivíduos que participam na prova connosco. Nessas circunstâncias passa a
interessar menos se um começou a jogar aos 3 anos de idade e outro apenas aos
60, se um é forte e alto e outro baixo e fraco, o que interessa mais é quanto
é que cada um consegue fazer com aquilo que tem, nomeadamente com o corpo e a
mente que tem.
Não me interessam muito as provas de atletismo, pelo menos
enquanto espectador. Já houve tempos em que ficava grudado ao ecrã a ver os
jogos olímpicos. Hoje praticamente não vejo. A razão é simples: tenho a
perfeita consciência de que todos os indivíduos que estão presentes nas provas
olímpicas são pessoas que se dedicaram imenso, a um nível que aos meus olhos é
ridículo, e que necessariamente coloca em causa a sua proficiência noutras
qualidades desta vida, não apenas ao nível individual, mas na sua vivência
colectiva em sociedade, e que fizeram todo esse esforço para poderem ser mais
rápidos ou mais altos ou mais fortes que os outros. Aos meus olhos há coisas
mais meritórias (e perdoem-me os atletas de alta competição por ser assim rude, uma vez que não lhes desejo mal algum).
Vivemos num mundo no qual a competição tem uma enorme
importância. Não tem de ser assim, e nem sempre foi assim. Os que advogam que
na natureza darwiniana a competição é que promove o desenvolvimento,
esquecem-se que essa mesma natureza é também a natureza do gene que apesar de egoísta se consegue desenvolver através da cooperação. Mas também se esquecem que o ser humano
tem um juízo moral sobre tudo isso e não tem de aceitar a natureza como ela é.
A natureza não é boa só por ser natureza. Bom é apenas aquilo que nós
consideramos como tal.
O nosso mundo é cada vez mais um circo capitalista onde tudo
nos é vendido sob a forma de competição. Não se canta em conjunto; vai-se ao
concurso televisivo cantar para ganhar aos outros concorrentes. Concorre-se
para um presente de Natal, em vez de construir um presente de Natal em
conjunto. Há um concurso para os contribuintes certinhos, há um concurso para a
universidade, há um concurso para uma vaga lá no gabinete de relações
internacionais, há um concurso de vaidade todos os dias à noite lá no café da
moda, há um concurso para a concessão de um espaço em frente à praia e há uma
corrida aos guarda-sóis dessa praia todos os dias pela manhã.
Serão justos esses concursos que moldam as nossas vidas?
Será que os baixos não gostariam de ser mais altos, os obesos mais magros, os
estúpidos mais inteligentes, os pobres mais ricos? Será que todos têm as mesmas
condições iniciais? Será que é isto que nós, seres humanos, queremos que a vida
seja, uma eterna corrida a ver quem chega primeiro?... Ou será todo este sistema
meritocrático apenas um modo de premiar aqueles que à partida já todos sabiam
que iam ganhar?
"Que ganhe o melhor!". Será este o expoente de
beleza que esta desumanidade é capaz de construir?... No rugby ensinaram-me que
existe sempre uma terceira parte, na qual ambas as equipas se encontram no bar
para confraternizar, em pé de igualdade. Eu gosto muito de jogos. Alguns são de
competição e outros de cooperação. Parece-me que o lugar das competições devia
ser exclusivamente esse: o lugar da brincadeira, dos simulacros. A vida real
devia ser o campo da cooperação. E como nesse jogo a humanidade compete apenas
consigo própria, o seu resultado é tão negativo quanto aquilo que pode fazer e
não faz.