sábado, 21 de setembro de 2024

A razão vai à guerra...

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Há poucos dias assisti à projecção de três curtas metragens sobre a Faixa de Gaza, mais concretamente sobre a dificuldade de acesso a esse território em missões de solidariedade em momentos anteriores a 2023.

No final da sessão houve um debate, que foi mais uma discussão, suscitada pela intervenção de uma pessoa que alertava para a necessidade de termos em consideração a perspectiva dos israelitas e a eventual legitimidade de acções consideradas "de defesa" por parte de um povo que "nunca começou uma guerra".

Disse então, com o coração na boca, que me chocava que a humanidade passasse o tempo a encontrar justificações para as barbáries, em vez de passar o tempo a construir a paz.

Reitero agora que me choca profundamente que a humanidade perca sequer tempo em discussões daquele tipo. Há pessoas a morrer e outras a ficarem com as suas vidas destruídas. Discutimos para quê? Para saber quem tem razão?... Para irmos para casa de ego cheio? Para justificarmos mais uma barbárie?

Todas as guerras de que temos conhecimento e que ocorrem à distância parecem suscitar este tipo de debates. Razão, razão, razão, razão... Parece ser sempre uma questão da razão, que razão é essa, quem tem a razão, quem é que começou, e quando é que começam as nossa justificações, se há dez anos, ou vinte, ou cem, ou mil...

É profundamente triste que assim seja. Como se o resultado da discussão fosse um carimbo de conformidade na destruição deste ou daquele lado, na morte desta ou daquela pessoa, uma determinação da barbárie que é legítima e portanto deixa de o ser, e da que é ilegítima e portanto passa a ser terrorismo.

Devíamos ter vergonha. Muita vergonha.

O facto de um território do planeta ser hoje ocupado por A quando antes era por B não devia nunca conferir o direito a B para matar A. Nem o facto de um membro do grupo X ter morto um membro do grupo Y devia alguma vez conferir o direito a membros do grupo Y matarem membros do grupo X.

Enquanto as discussões continuarem a ter este teor, o futuro da humanidade parece-me condenado.

Quando existem guerras, as discussões deviam ser sempre centradas na necessidade urgente de as terminar. E as guerras não se terminam nunca com mais guerras.

Uma das propostas que avancei durante esse debate no sentido de evitar esta e outras guerras foi o da não produção de armas e o da não transformação das guerras em montras e postos de vendas de armas onde algumas pessoas e instituições lucram enormes quantias. Alguns presentes no debate consideraram a proposta irrealista.

Enquanto a humanidade continuar a considerar irrealista a limitação ou extinção da produção e venda de armas sofisticadas (como são as armas das guerras de que falamos), estará ao mesmo tempo a aceitar que as guerras são inevitáveis e a legitimar a barbárie.

Entretanto, para se entreterem, vão discutindo quem tem mais razão. Razão e mortes ao quilo e à tonelada.

É triste.

Anda Sérgio:

"Ai ó linda, será que ainda
vou ter de voltar a assistir
a discussões fundamentais
onde as pauladas são verbais
e as conclusões são sempre iguais
..."

domingo, 28 de julho de 2024

A importância de ler...

 


Circula numa "rede social" um artigo acerca da aparente confusão que uma determinada cena pertencente ao espectáculo de abertura dos jogos olímpicos de Paris terá gerado. Aparentemente a cena era um retrato da mitologia grega que terá sido confundida com a última ceia de Jesus Cristo, e as diferenças terão suscitado críticas em muitas pessoas.

O artigo remata salientando "a importância de ler".

Eu não me posso orgulhar da minha ignorância relativamente a estes assuntos. Melhor fora que soubesse os detalhes de todas as mitologias, incluindo a grega antiga e a cristã. Mas não sei.

Julgo saber, no entanto, que "a importância de ler" é brandida a torto e a direito em muitos contextos, incluindo o contexto de tentar vincar a ignorância alheia, mas é pouco esmiuçada.

Talvez comer seja mais importante do que ler, proposição que deixo à consideração de quem queira cogitar sobre o assunto. Por que será então que raramente ouvimos falar da "importância de comer", assim mesmo, tout court?... Talvez porque todos saibamos que comer é importante, mas também todos saibamos que não basta comer muito, é sobretudo preciso comer bem.

E na leitura é o mesmo: não basta ler muito, é preciso ler bem.

Com a devida falta de respeito, ler mitologias é para mim muito comparável a ler "o senhor dos anéis". Ambos são "cultura", na minha definição jocosa de cultura, que afirma que ela é tudo o que é capaz de suster uma conversa com outras pessoas. Milhões e milhões de pessoas leram ou viram ou souberam por terceiros das histórias dos senhores e dos anéis, e deixo à consideração dos mais zelosos listar de que modo é que esse conhecimento moldou a vida das pessoas.

Ler bem é saber retirar do alimento o que ele tem de melhor. Mas ler bem será talvez, acima de tudo, escolher bem o alimento.

Eu bem sei que pode ser polémico, mas não posso deixar de afirmar que ler a Constituição da República Portuguesa me parece mais importante do que ler Os Maias. Ler, saboreando bem o alimento, interpretando-o correctamente. Mas, se insistem que ler Os Maias é mais importante, que tal depois de ler Os Maias ler a CRP? Ou será que antes de ler a CRP devemos ler Os Maias, Os Pescadores, As Sandálias do Pescador, Os Lusíadas, Levantados do Chão, e a restante lista de milhares e milhares de importantíssimos livros já escritos assim mais ou menos no mesmo género?

Se estamos de acordo que o saber não ocupa lugar, talvez possamos estar de acordo que a sua aquisição requer tempo. A meu ver é necessário hierarquizar, um pouco que seja, a importância dos diversos saberes. As vidas de todos nós, por nossa vontade ou contra ela, são dominadas pela necessidade de obter dinheiro para adquirir os bens e serviços de que necessitamos, incluindo livros, são dominados pelo petróleo, pela electricidade, pelos automóveis, pelos ansiolíticos, pelas relações sociais, pelo sol e pela gravidade, a atmosfera e as alterações climáticas, a biodiversidade e a falta dela, as guerras, os impostos, os meios de "comunicação social", a política, etc. A meu ver, as vidas de todos nós não são dominadas pelos deuses, embora nós passemos muito do nosso tempo a pensar e a falar sobre isso. E se não temos tempo para adquirir conhecimento aprofundado acerca de tudo, inclusivamente porque gastamos a maior parte do nosso tempo a dormir e a arranjar sustento, talvez fosse bom incluir na lista de livros a ler alguns sobre política, economia, sociologia, física, biologia, matemática, história, e todas as outras áreas do saber mais científico e mais prático.

Ler pode ser importante por muitos motivos, e também pelo simples acto da leitura. Mas não nos detenhamos aí. Se queremos brandir chavões contra a ignorância dos outros, pensemos um pouco na nossa própria ignorância acerca do mundo que nos rodeia. Está a ler isto num computador ou num telemóvel? Sabe como funcionam esses aparelhos? Sabe quem os construiu e em que condições? Não seria tempo de acrescentar à literatura da mesa de cabeceira um livrito sobre esses assuntos?

 

Mais leitura:

https://irresponsabilidadeilimitada.blogspot.com/2013/06/ignorar-nao-e-nada-bonito.html

sábado, 27 de julho de 2024

Os interesses das classes trabalhadoras, desde 1974...

No programa do Movimento das Forças Armadas (MFA), de 26 de Abril de 1974, disponível aqui, podia ler-se, no seu ponto 6:


Ora, desde então, a favor das classes mais desfavorecidas, e tendo como pano de fundo o aumento global do PIB per capita, a evolução do salário mínimo (Remuneração Mínima Mensal Garantida) em Portugal foi a que se pode ver neste gráfico (€, a preços constantes de 2016):

Fontes: Banco de Portugal, Direcção Geral da Administração e do Emprego Público


Ou seja, em termos reais, só em 2017 é que o salário mínimo ultrapassou o de 1974, e enquanto o PIB per capita aumentou 114% entre 1974 e 2023, o salário mínimo aumentou apenas 21%.

 

A razão para isto devia ser evidente: é que é muito mais fácil aumentar os rendimentos dos ricos do que aumentar os dos pobres, mesmo que estes trabalhem mais do que aqueles. Toda a gente sabe disso.

E assim, cantando e rindo, todos nos congratulamos com os magníficos 50 anos de liberdade e continuamos a ignorar os valores de Abril.

sexta-feira, 14 de junho de 2024

Competições justas...

 

Há um ou dois dias ouvi a notícia de que um (ou uma) atleta transexual tinha sido impedid... de participar numa competição olímpica qualquer. Imagino este tipo de situação a levantar todo o tipo de reacções muito inflamadas, contra ou a favor de uma ou outra coisa.

Imaginemos que uma competição tem por objectivo encontrar "o mais forte" de todos os elementos de uma população. Para que isso seja possível é necessário, mesmo que não suficiente, que todos os elementos do universo considerado participem na competição, dando provas de quão fortes são. Se quisermos saber qual é o português mais rápido, temos de colocar todos os portugueses a correr.

No entanto, em todas as competições de atletismo consideradas sérias os atletas que são admitidos em cada prova são apenas um subgrupo da população dos diversos países em competição. Os critérios podem ter a ver com idade e outras características dos indivíduos, e quase sempre o género é um dos critérios de admissão ou não numa determinada prova.

Há diversas actividades, e estou a lembrar-me por exemplo de marchas, corridas informais, provas de orientação e outras, em que as provas contemplam uma diversidade de categorias, distinguidas segundo os vectores idade (iniciados, juniores, seniores, veteranos), sexo (masculino, feminino, misto... não sei se já contemplam outras possibilidades!), e individuais ou em grupo. Isto acontece sobretudo nas provas onde o objectivo não é tanto (ou apenas) encontrar o melhor atleta, mas sim o de atrair pessoas para a prática dessa actividade, dando oportunidade a todos de competirem entre pares, isto é, entre pessoas ou grupos com as mesmas características, de uma forma considerada justa.

Nas provas internacionais de atletismo não existem, por exemplo, corridas de 100 metros em que participem simultaneamente homens e mulheres. À partida parece evidente que assim seja, uma vez que todos os resultados demonstram sistematicamente que os homens mais rápidos terminam a prova em menos tempo que as mulheres mais rápidas, isto é, que em provas conjuntas os homens iriam ganhar sempre.

No entanto, e apesar de parecer evidente, merece que se reflicta um pouco sobre isso. De facto, se estivéssemos interessados em encontrar o indivíduo mais rápido, bastaria uma prova conjunta em que todos os indivíduos pudessem participar, e o mais rápido seria o indivíduo que estávamos à procura e pronto. Mas essa não é a realidade. Uma possível razão explicativa é o reconhecimento de que há grupos de indivíduos que nunca teriam hipótese de ganhar, e criando competições entre grupos mais homogéneos estamos a ser mais justos. Os homens são geralmente mais fortes e maiores do que as mulheres o que as deixa numa posição desvantajosa em competições baseadas na capacidade física, o que pode ser considerado injusto.

No entanto, esta não pode ser a única razão para segregar os concorrentes em grupos. Tomemos, por exemplo, as competições que não são tão dependentes da força física, mas mais da destreza motora, da perícia, ou da capacidade intelectual, como por exemplo a dança, o tiro ou o xadrez. Não sei se estatisticamente os homens ou as mulheres apresentam melhores resultados em qualquer uma destas actividades. Se esse não for o caso, como explicar a existência, ainda assim, de competições segregadas por género? Talvez nessas situações a razão explicativa seja identitária, ou seja, as mulheres competem entre si para encontrarem a melhor atiradora, e não misturadas com os homens, pelos mesmos motivos que os portugueses competem entre si e não com os espanhóis. Será?

Em qualquer caso, se um homem que se identifica como mulher, faz uma operação de mudança de sexo, mas apesar disso continua a apresentar um corpo com características masculinas em termos de força e tamanho, e assim se apresenta numa prova de atletismo feminina... parece-me natural que as mulheres que estão inscritas nessa prova levantem questões acerca da justiça dessa admissão. Suspeito que no caso que foi notícia, a rejeição da inscrição desse (ou dessa) atleta terá tido a justiça como um dos fundamentos.

Mas se é de justiça na competição que estamos a falar, levantemos então a questão mais fundamental: o que é uma competição justa?

Perante uma corrida entre um indivíduo com todas as capacidades motoras e um indivíduo só com uma perna, creio que todos estarão de acordo que essa corrida não será justa. O mesmo entre um indivíduo de 30 anos de idade e outro de 3. Porquê? Porque nesses casos consideramos que existe um indivíduo que não tem qualquer possibilidade de ganhar, mesmo que se esforce ao máximo. Mas aquilo que parece evidente, pode tornar-se menos evidente se considerarmos exemplos menos díspares.

Consideremos, por exemplo, uma corrida de 400 metros entre dois indivíduos do sexo masculino de 25 anos de idade. À partida poderá ser considerada uma corrida justa. Mas e se um deles medir 1,8 metros de altura e o outro apenas 1,6? Vamos lá verificar nas provas de atletismo internacionais de 400 metros quantos atletas são baixotes. Talvez cheguemos à conclusão de que quase não existem baixotes. E podemos chegar também à conclusão de que quase não existem atletas obesos.

Será justa uma corrida entre um alto e um baixo? Talvez não seja. É possível que o baixo, nas sociedades que temos hoje em dia, se sinta mal por ser baixo, e tenha até vontade de ser mais alto, mas que nada possa fazer para modificar essa sua característica. Assim, e novamente, por mais que se esforce, ele não vai conseguir ser mais alto, e estará, na competição da corrida, sempre em desvantagem face a um concorrente significativamente mais alto. Se não há nada que ele possa fazer, o resultado da competição fica, em grande medida, determinado à partida por condições que estão fora do alcance dos concorrentes. E talvez esse seja um bom critério para estabelecer que uma competição não é justa.

No entanto, não me lembro de alguma vez ver provas de atletismo segregadas em função da altura. Porque será?... Será isso justo?...

Será justa uma corrida entre um magro e um obeso? Bom... suspeito que alguns leitores considerarão que sim e outros que não, em função do maior ou menor poder que atribuem aos indivíduos para alterarem a sua condição de obesos. Quem considera que a obesidade se pode eliminar simplesmente deixando de comer doces, facilmente irá responsabilizar o obeso pela sua obesidade e poderá então argumentar algo como "perdeste a corrida? não tivesses comido tanto!". Pode acontecer, no entanto, que a obesidade não seja assim tão fácil de controlar, que os obesos tenham a perfeita noção de que essa condição é maléfica para a sua saúde, que se sintam mal com o seu corpo e com os julgamentos alheios, que tenham tentado mil e uma formas, algumas bem exigentes, de reduzir a sua obesidade, mas sem sucesso. Pode acontecer, em simultâneo, que o magro coma tudo o que lhe apetece não aumentando nunca o seu peso. Será justo?...

No golfe existe um método de contagem do número de tacadas que os concorrentes utilizam para meterem as bolas nos 18 buracos do curso que, resumidamente, considera o resultado habitual, ou o melhor resultado, de cada um. Assim, se numa prova um indivíduo tem no seu historial um registo de 60 tacadas em 18 buracos e outro indivíduo tem um registo de 120 tacadas nos mesmos 18 buracos, o resultado de cada um será a diferença face a esse registo. No final, e em grande medida, esse sistema de contagem faz com que cada participante esteja a concorrer consigo mesmo, nomeadamente com a sua melhor marca. E essa talvez seja uma forma mais justa de competir: quando competimos relativamente ao nosso melhor resultado, e não relativamente aos outros indivíduos que participam na prova connosco. Nessas circunstâncias passa a interessar menos se um começou a jogar aos 3 anos de idade e outro apenas aos 60, se um é forte e alto e outro baixo e fraco, o que interessa mais é quanto é que cada um consegue fazer com aquilo que tem, nomeadamente com o corpo e a mente que tem.

Não me interessam muito as provas de atletismo, pelo menos enquanto espectador. Já houve tempos em que ficava grudado ao ecrã a ver os jogos olímpicos. Hoje praticamente não vejo. A razão é simples: tenho a perfeita consciência de que todos os indivíduos que estão presentes nas provas olímpicas são pessoas que se dedicaram imenso, a um nível que aos meus olhos é ridículo, e que necessariamente coloca em causa a sua proficiência noutras qualidades desta vida, não apenas ao nível individual, mas na sua vivência colectiva em sociedade, e que fizeram todo esse esforço para poderem ser mais rápidos ou mais altos ou mais fortes que os outros. Aos meus olhos há coisas mais meritórias (e perdoem-me os atletas de alta competição por ser assim rude, uma vez que não lhes desejo mal algum).

Vivemos num mundo no qual a competição tem uma enorme importância. Não tem de ser assim, e nem sempre foi assim. Os que advogam que na natureza darwiniana a competição é que promove o desenvolvimento, esquecem-se que essa mesma natureza é também a natureza do gene que apesar de egoísta se consegue desenvolver através da cooperação. Mas também se esquecem que o ser humano tem um juízo moral sobre tudo isso e não tem de aceitar a natureza como ela é. A natureza não é boa só por ser natureza. Bom é apenas aquilo que nós consideramos como tal.

O nosso mundo é cada vez mais um circo capitalista onde tudo nos é vendido sob a forma de competição. Não se canta em conjunto; vai-se ao concurso televisivo cantar para ganhar aos outros concorrentes. Concorre-se para um presente de Natal, em vez de construir um presente de Natal em conjunto. Há um concurso para os contribuintes certinhos, há um concurso para a universidade, há um concurso para uma vaga lá no gabinete de relações internacionais, há um concurso de vaidade todos os dias à noite lá no café da moda, há um concurso para a concessão de um espaço em frente à praia e há uma corrida aos guarda-sóis dessa praia todos os dias pela manhã.

Serão justos esses concursos que moldam as nossas vidas? Será que os baixos não gostariam de ser mais altos, os obesos mais magros, os estúpidos mais inteligentes, os pobres mais ricos? Será que todos têm as mesmas condições iniciais? Será que é isto que nós, seres humanos, queremos que a vida seja, uma eterna corrida a ver quem chega primeiro?... Ou será todo este sistema meritocrático apenas um modo de premiar aqueles que à partida já todos sabiam que iam ganhar?

"Que ganhe o melhor!". Será este o expoente de beleza que esta desumanidade é capaz de construir?... No rugby ensinaram-me que existe sempre uma terceira parte, na qual ambas as equipas se encontram no bar para confraternizar, em pé de igualdade. Eu gosto muito de jogos. Alguns são de competição e outros de cooperação. Parece-me que o lugar das competições devia ser exclusivamente esse: o lugar da brincadeira, dos simulacros. A vida real devia ser o campo da cooperação. E como nesse jogo a humanidade compete apenas consigo própria, o seu resultado é tão negativo quanto aquilo que pode fazer e não faz.



 

domingo, 9 de junho de 2024

Querida Europa!...

 


Nos meses que antecederam a adesão de Portugal à Comunidade Económica Europeia, CEE, em 1986, lembro-me de discutir com os colegas da escola os perigos dessa adesão. Papagueava a propaganda que me chegava, dizendo que os agricultores portugueses iriam deixar de produzir batata, pois iríamos passar a importar a batata mais barata de outros países. Não percebia nada do que dizia, mas julgava que sim. Hoje, ao olhar para trás, fico infeliz por ter papagueado algo que afinal não estava errado, uma vez que isso significou, de facto, o desmantelamento de uma economia de produção para consumo local.

Mas, bolas, passámos a ter kiwis nos supermercados, as bananas passaram a ter curvatura controlada e os pepinos passaram a ser direitinhos! E a partir daí passei a papaguear a outra propaganda, a propaganda a sério, aquela que nos chegou muito bem financiada através de programas de televisão, concertos, t-shirts, canetas, tempos de antena, final countdown e sei lá que mais.

Sim, achei o máximo podermos ir e vir de Espanha sem ter de parar na fronteira. Achei que só podia ser uma coisa boa as pessoas moverem-se livremente dentro do espaço Schengen. Esperei ansiosamente a possibilidade de ter moedas de euro na mão, e também achei maravilhoso poder ir a França e pagar na mesma moeda que usava em casa. Até me senti a crescer! Tal orgulho! Maastricht para mim foi maravilhoso!

Sempre achei muito estranho as pessoas, e sobretudo os representantes das pessoas, dos países da União Europeia, referirem-se a si mesmos como "a Europa". Eu tinha aprendido na escola que a Europa era um continente limitado a Este pelos Urais. De que "Europa" estariam eles a falar?... E então a Roménia? E o Mónaco? E todos os outros países da Europa? Afinal agora já não eram europeus?

Levei muito tempo, muito tempo mesmo, talvez quase vinte anos, a acordar da propaganda toda que tinha papado sem pestanejar antes de 1992 e que tinha papado mesmo com eventuais engasgos depois disso.

Talvez o primeiro choque tenha sido lá para o ano de 1996 quando, no contexto universitário, tive de fazer um trabalho conjunto sobre a Política Agrícola Comum, a PAC. Descobri coisas de que nem suspeitava até então. Descobri que afinal a França não era o paraíso natural que eu imaginava, com base nas simples imagens de paisagens todas verdinhas, assim ao estilo dos Açores, e em vez disso era o antro dos produtores agrícolas mais industriais da Europa, terreno fértil para esquemas à la Monsanto, com sementes modificadas das quais crescem plantas que não se reproduzem, que vêm associadas a fertilizantes, herbicidas e pesticidas próprios, que exterminam tudo o resto à sua volta, que fazem uma limpeza na biodiversidade e deixam rastos de poluição. Descobri que a motivação principal da PAC era "geoestratégica". Descobri que houve uma especialização tremenda na produção agrícola dos diversos países, e que Portugal não só tinha perdido a produção própria de muitos produtos, como tinha passado a importar aos outros países a preços mantidos artificialmente elevados, num negócio que só parcialmente era compensado com transferências e subsídios aos agricultores nacionais. Descobri que as preocupações ambientais da PAC sempre foram próximas de nada, que a União Europeia pré 1992 não sabia o que fazer com os excedentes agrícolas e então enviava-os para países subdesenvolvidos contribuindo assim para aniquilar a produção local desses países, que o excesso de produção agrícola foi atacado com a reforma da PAC de 1992, momento a partir do qual se passou a subsidiar os donos dos terrenos para terem lá plantados eucaliptos e pinheiros, contribuindo assim para transformar Portugal num espectáculo para pirómanos em cada verão.

Foi preciso abrir muito mais os olhos para perceber que a colonização do Sahara Ocidental era um problema escamoteado pela União Europeia. Para perceber que a UE apoia internacionalmente o que lhe convém e não o que é justo. Para perceber que o Banco Central Europeu é profundamente não democrático. Para perceber que o Parlamento Europeu é apenas um órgão de fachada, a enfeitar uma UE que faz de conta que é democrática, apesar de aparentemente ninguém saber o que por lá se passa e de às tantas não se passar mesmo nada de jeito.

À medida que fui abrindo os olhos, fui percebendo a dimensão da propaganda que papei. Hoje, quando ouço falar dos "valores europeus" não me dá vontade de rir, dá-me vontade de vomitar. Porque não é uma coisita qualquer, que não me afecta muito a vida. Pelo contrário, é uma "coisa", uma conduta, uma orientação política, que promove apartheids, que promove muros reais e fictícios entre os povos, bons de um lado, maus do outro, que mente descaradamente e sistematicamente, todos os dias, mente, mente, mente, mente sem parar, compulsivamente. É uma "coisa" que promove guerras que não só prejudicam os povos directamente envolvidos, como prejudicam todos os "europeus", os europeus seleccionados, os que vivem dentro da Europa seleccionada. É uma "coisa" que, mesmo sem guerras, prejudica a vida de toda a gente, a bem de um estilo de vida centrado em turismo e carros eléctricos. É uma "coisa" que gosta de brandir a liberdade de expressão mas que censura os canais que não lhe convêm, que promove a privatização do sector da informação e que espalha propaganda como sempre fez.

Esta "Europa" é uma "coisa" só para alguns, os que estão devidamente amestrados, e não pestanejam quando se diz que é necessário subir as taxas de juro por causa da inflação, e não pestanejam quando se diz que a subida de preços é devida aos maus que bombardearam os seus próprios gasodutos e à falta que faz o fornecimento de trigo.

Esta "Europa", dos "valores europeus", que não condena o genocídio que decorre neste preciso instante na Palestina, que nunca fez notícia de outros genocídios que vão acontecendo pelo planeta, e que nunca condenou o comportamento mais beligerante do país mais beligerante do mundo, que agora propagandeia a toda a força o medo. "Vêm aí os russos!"... parece uma anedota... mas afinal é trágico! É profundamente triste e grave perceber que afinal a população toda continua a papar esta propaganda, e que, com base nela, apoia o caminho para a paz através de mais armas e através de maior subserviência ao país do lado que todos sabemos qual é. Que merda de valores! Que merda de Europa! Que merda de europeus que se deixam manipular deste modo! Tenho nojo disto tudo!

Este projecto europeu é, afinal, e desde sempre, um grande negócio. Se o negócio requer paz, faz-se paz. Se o negócio requer guerra, faz-se guerra. Se o negócio requer offshores, desregulação de mercados, perda de soberania, moedas únicas e o diabo-a-sete, faz-se. O negócio manda... E que bom que é que já todos perceberam, paparam e apreenderam a propaganda de que o que é bom para o negócio é bom para todos nós.

O que é que vai ser agora? Ecumenismo, pacifismo, nacionalismo, fascismo?... Seja lá o que for, se for bom para o negócio, siga! Eis os valores europeus! Os valores deste continente de onde saíram os seres mais usurpadores e desrespeitadores que a humanidade alguma vez possuiu, em qualidade e em quantidade. Colonizadores de territórios, de mentes, de almas, de vidas e de mortes. A terra que produz tudo isto apresenta-se então orgulhosa ao mundo. Os seus jovens, formados nas fileiras dos capitalistas egocêntricos, falam muito cheios de si e espalham lições a todos os povos, mesmo àqueles que lhes são moralmente muito superiores e que, afinal, são quase todos. Esses jovens julgam saber que a moral não conta, o que conta é o cano da espingarda, é o botão do drone. O que conta é o pilim que está por trás disso tudo.

As universidades europeias ensinam Milton Friedman e Hayek, curvas da oferta e da procura, e expurgam a moralidade de tudo. Todas as adversidades são oportunidades de negócio. Espalha-se nesta Europa um estilo de vida Prozac, em que os sucessos e os insucessos são medidos em cifrões, sempre numa ilimitada irresponsabilidade individual, esquecendo o colectivo, fazendo-nos sentir individualmente mal pela nossa sensação de inutilidade, quando todos sabemos que o progresso tecnológico deve ser por nós visto como uma oportunidade para inovar... e então em vez de inovar, vamos afogar as mágoas no mesmo de sempre, vamos ao shopping comprar mais um penduricalho e vamos de férias fotografar nós e a comida, nós e a praia, nós e a arte, nós e os prédios, nós e os barcos, nós e a merda toda que há noutro país qualquer. E depois voltamos para casa e inovamos: viramos para a extrema direita, porque afinal antigamente é que era bom, e já não há valores!

Se isto tudo parecer desprovido de sentido, acredite que o problema não é disto tudo, o problema é seu, e vá depressa resolvê-lo através da aquisição de um pacote completo de spa e massagens com vibradores, infravermelhos, infusões e musiquinhas geradas por inteligência artificial.

O Parlamento Europeu continuará lá a dar-nos a festa, a garantir o espectáculo onde as merdas todas nos acontecem e nós não acontecemos para merda nenhuma. Há muitas formas de exterminar vidas. Obrigado, portanto, querida Europa!

quarta-feira, 29 de maio de 2024

Palestina livre!...

25 de Maio de 2024, Praça Velha, Angra do Heroísmo.

Afirmação: Palestina livre!

Resposta: vai trabalhar!


Interessante! Merecia dissecar as sinapses à procura das relações, das origens dos impulsos... Será do ADN? Será da educação? Será do que se comeu na última refeição?

Serão as crenças, a religião, a filiação partidária? Será o medo?

Tais diferenças de mundivisão não se conciliam facilmente. No entanto, não posso deixar de dar a minha opinião. Porque a treta de que no meio é que está a virtude é apenas mais uma muleta para quem não se quer comprometer com nada e prefere continuar amigo de toda a gente, tal pandemia que afecta a população da ilha Terceira, embora infelizmente não exclusivamente.

Organizar uma manifestação dá trabalho. Há cartazes, megafones e outros materiais a serem acartados, há as deslocações, há a publicidade prévia, há a informação às autoridades, há o tempo gasto pelos manifestantes ao sol ou à chuva, há a exposição, a tal, a tão temida afirmação perante a modorra do estado normal das coisas, da alternância da permanência, o negócio habitual.

E, como em todos os trabalhos, há quem goste. Eu não gosto. Não me dirijo à Praça Velha para me manifestar pela paz e pela humanidade em todo o mundo cheio de alegria. Tenho, muito literalmente, mais que fazer. Tenho o tempo contado para as actividades que me permitem viver, e sobretudo sobreviver. E tenho uma tristeza profunda de saber que há situações neste planeta que são tão aberrantes que me obrigam a fazer este tipo de esforços no sentido de chamar a atenção dos indiferentes e de, nesse sentido, juntar mais vozes ao protesto, e com isso pressionar os coniventes a alterarem as suas condutas.

Não me dá prazer nenhum! É uma obrigação de consciência! E cada minuto que dedico a este tipo de actividades, como a própria escrita deste texto, é um minuto que deixo de dedicar às outras coisas que preenchem a minha vida.

Assim, quando alguém responde às palavras de ordem de quem apela à paz com um "vai trabalhar!", não pode estar a ser literal ou completo, uma vez que a manifestação é, em si mesma, um trabalho. Possivelmente o que estará em causa é um determinado tipo de trabalho. Suspeito, por exemplo, que o autor dessa afirmação não a dirigiria do mesmo modo a um Bill Gates ou outro qualquer oligarca deste planeta, que amealha milhões fazendo apenas o que lhe apetece, quando lhe apetece, e invariavelmente através de ordens a outras pessoas que são quem, essas sim, acaba por fazer alguma coisa. Para o bom senso que impera por aqui e por aí, esses oligarcas são grandes trabalhadores! Tal como o rei João V poderá dizer depois "eu construí o convento de Mafra", sem nunca ter assentado uma pedra, porque o fazer ou não fazer, e o mérito daquilo que se faz, mede-se tudo apenas e só pelo poder que se tem e pelo dinheiro que se faz.

De que forma então é que um trabalho do costume, sério, honesto, ordeiro, sempre-às-ordens, e possivelmente mal remunerado, pode contribuir para a paz na Palestina?

Será que quem brada "vai trabalhar!" coloca nesse tal determinado tipo de trabalho a origem de toda a "ordem e progresso" que há no mundo, por contraposição a todo o caos e retrocesso, que terá origem em actividades extra?...

Possivelmente, de acordo com essa mundivisão, a culpa dos palestinianos é serem palestinianos. Se eles se esforçassem por renascer com outra língua, outra cultura, outra religião, outras roupas, outro modo de viver, talvez até outra fisionomia, e se assim renascidos se dedicassem ao trabalhinho honesto e agradecido às ordens de quem já deu provas de saber o que está a fazer na vida (ou seja, de um oligarca), talvez assim não tivesse havido necessidade desta confusão toda! Malditos palestinianos!...

Que maçada, portanto, isso de as pessoas quererem ser livres, de quererem ser elas próprias, de não estarem às ordens dos outros! Que aborrecimento ter de passear na Praça Velha a ouvir os gritos de ordem de gente aflita, em vez dos risinhos alegres e suaves de crianças bem comportadas por entre os barulhos de motores de alta cilindrada!

O que nos vale é que há sempre uns senhores engravatados em gabinetes distantes a tratar de tudo por nós (referência a FMI, José Mário Branco), a policiar, e a patrocinar a ordem e o progresso. Assim falaria o autor do "vai trabalhar!".

Os autores do "Palestina livre!", nos quais me insiro, talvez fossem da opinião que a liberdade vale um pouco mais do que esse tipo de ordem ou esse tipo de progresso. Afinal, até os militares que nos têm dado muitos tipos de ordem e de progresso ao longo da história adoptam como lema "antes morrer livres do que em paz sujeitos".

Finalmente, gostaria de relembrar que quase todos os manifestantes pela paz na Palestina, que são milhões no mundo inteiro, dão do seu tempo e da sua energia, expondo-se aos julgamentos alheios, pelo bem de terceiros. É muito fácil comprar um quilo de arroz no supermercado e dá-lo a uma organização de apoio aos pobrezinhos, e com isso receber os aplausos tácitos de todos, mas é muito mais difícil dar o corpo a um manifesto a bem de terceiros que afronta a paz podre em que se vive. Devia haver mais respeito por isso.