segunda-feira, 21 de dezembro de 2020

Marés...

Um vídeo que há tempos queria fazer sobre o funcionamento das marés. A motivação para isso é a quantidade de explicações foleiras que abundam na Internet. A minha explicação, contudo, está muito longe de perfeita. Seja como for, tinha de o fazer, e está feito. Bom proveito!



segunda-feira, 7 de dezembro de 2020

Insulamento...

 

Até uma idade muito razoável, a palavra isolamento significou para mim o envolvimento de um objecto numa camada protectora de outro material. O objecto deixava de contactar directamente com o exterior porque estava envolvido por uma barreira de impossível ou difícil transposição.

Nessa minha acepção, um grão de milho que se colocasse à margem da pilha dos outros grãos, não estava isolado, pois não havia a tal camada protectora: o grão de milho que estava apartado podia muito facilmente (quem sabe pelos próprios meios!) deslocar-se novamente para junto dos outros grãos.

Às vezes tinha dificuldade em compreender como as outras pessoas utilizavam esse termo... Só bastante mais tarde é que percebi que a raiz do desentendimento estava na minha (de)formação de base. Eu aprendi a palavra isolamento no contexto da electricidade. E, nesse contexto, sempre que alguém falava em isolamento, referia-se à existência da tal camada protectora, em torno de um elemento condutor, que impedia que os electrões passeassem para lá daquilo que pretendíamos. O isolamento não era a condição do condutor, o isolamento era a própria camada protectora!

Por analogia, uma pessoa numa ilha estaria isolada porque rodeada do respectivo isolamento: o mar.

Suspeito que em todos nós a grande maioria das palavras adquire um significado através de um processo mental que é só nosso, de identificação do padrão escondido no meio do caos. O significado de algumas palavras é-nos ensinado directamente por terceiros, ou pela nossa própria consulta de um qualquer dicionário, o que acaba por ir dar ao mesmo (os dicionários não são como as tábuas dos mandamentos caídas dos céus). Mas para todas as outras palavras, e certamente para quase todas as palavras que aprendemos antes de sabermos consultar dicionários, o significado somos nós que lhes atribuímos. Ouvimos a nossa mãe a dizer "vou fechar a porta" e vemos ela a fechar a porta, e logo associamos "fechar" e "porta" a uma e outra coisa.

Quando o nosso pai diz "vou embora", pode ser-nos difícil, no início, entender o que é que significa este "embora". Lembro-me de estar sentado no chão de alcatifa verde do meu quarto, na Rua Campos Monteiro, 48, 1º, 4100 Porto, e a minha mãe, de cabelos longos, orientados por uma banda na cabeça e pendentes nas costas, de vestido sem mangas, a consolar o meu choro intenso, depois de o meu pai ter dito "vou embora". Eu pensei e senti que ele ia embora para sempre!... Ainda me lembro da sensação... eu devia ter uns 3 anos de idade.

Agora, muitos anos depois, quando alguém me diz "vou embora", nem sempre me é completamente claro o que isso significa... às vezes há uma dúvida que persiste.

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Quando vim morar, e supostamente viver, para os Açores, passei a ouvir, volta e meia, a palavra insularidade. Não fui suficientemente empenhado para consultar o dicionário ou para perguntar às pessoas o que isso significaria. Portanto, fui formando um significado próprio para a palavra, com o pouco que me ia chegando.

O que me ia chegando era, de facto, pouco. As pessoas não falam frequentemente de insularidade. Aparentemente a palavra surge mais associada a discursos de análise da sociedade açoriana como um todo, ou de alguma comunidade em particular, ou então em narrativas ficcionais ou textos poéticos.

Oh, a insularidade... oh!...

Portanto, não me tem sido fácil cimentar a minha versão do significado da palavra. Até mais ver, parece-me poder significar duas coisas. Uma é o modo de vida, em geral, das pessoas que vivem nos Açores, salientando os traços que possam distinguir esse modo de vida do das pessoas que vivem noutros territórios: o aceitar o destino, o saber esperar, o não ter grandes expectativas, o misto de medo e adoração do mar e da montanha, a necessidade da crença estruturante, o ouvir as histórias dos que vêm, o sentir saudades dos que partem. Ou então, naquele tom poético, o ter o basalto nas veias e a mesa posta... enfim, palavras que servem mais para me confundir do que elucidar.

O outro significado que considero possível para a palavra insularidade é simplesmente: isolamento. O fecharmo-nos em nós próprios, cá dentro, na medida do possível, por vontade própria ou necessidade.

Esse isolamento das pessoas, todavia, pouco tem a ver com a insularidade na primeira acepção que considerei. Da minha vivência, não me parece que as pessoas vivam mais isoladas, mais fechadas em si próprias, nas ilhas do que noutro qualquer território. De resto, isso do nosso isolamento é algo que é muitíssimo elusivo: não é evidente que as pessoas caladas que moram nas zonas rurais da Estónia, em casas rodeadas de árvores que distam centenas de metros do vizinho mais próximo, estejam mais isoladas que o português que bebe minis e discute futebol diariamente no café da esquina. Pode ser... mas também pode não ser.

Há muitas formas de nos isolarmos. Há até muitas formas de nos isolarmos de nós mesmos, de isolarmos pensamentos e sentimentos, de nos fragmentarmos a nós próprios cá por dentro, curiosamente na esperança de conseguirmos melhor manter os cacos juntos.

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Nesta minha reflexão, que convosco partilho, gostava de abordar especificamente dois tipos de isolamento: o que diz respeito à forma como colectivamente (ainda!) nos organizamos para respondermos às nossas necessidades, desde as mais básicas às menos imediatas; e o que concerne à nossa vida afectiva e emocional. A linha condutora da reflexão é o modo como estes dois tipos de isolamento se interligam e ajudam a construir
sociedades e indivíduos mais frágeis.

Vou chamar ao primeiro tipo de isolamento o isolamento económico. Confesso que eu próprio já começo a ficar farto de estar sempre a falar de economia... No entanto, isso é o reflexo da realidade: as actividades que nós desenvolvemos diariamente para produzir bens e serviços que satisfaçam as nossas necessidades, a forma como nos organizamos e o modo como distribuímos o resultado dessas actividades, ocupa a maior parte da vida da maior parte da população. Não há volta a dar-lhe!

Para explicar o meu conceito de isolamento económico vou recorrer ao exemplo instrumental de uma aldeia que vive isolada do mundo exterior. Nessa aldeia, os aldeãos produzem todos os bens e serviços de que necessitam para sobreviver. Nesse contexto, embora a aldeia como um todo possa considerar-se autónoma, a autonomia de cada pessoa é muito reduzida. Cada aldeão necessita da ajuda dos demais para construir a sua casa, para conseguir alimento, para quase tudo o que é essencial à vida. Para o bem e para o mal, a vida do aldeão está intimamente ligada à vida dos demais.

Nos nossos dias, ao contrário do que se pode pensar, a capacidade das pessoas levarem as suas vidas sozinhas é ainda menor. De facto, enquanto na aldeia que imaginei os aldeãos aprendiam várias técnicas que podiam pôr em prática, mesmo que com dificuldade, para se desenrascarem numa situação de aflição, nos dias que correm as pessoas enchem a cabeça com diplomas universitários mas não são capazes de identificar uma planta selvagem comestível.

No entanto, e para lá disso, há vários outros aspectos que são diferentes na organização económica das nossas vidas nos dias de hoje. Entre eles está o facto de a nossa dependência dos outros ser mediada pelo dinheiro. De acordo com as regras que alguém inventou, quem vende não pode recusar a venda a quem lhe apresente um meio de pagamento válido, como dinheiro. Consequentemente, quem tem dinheiro tem automaticamente acesso aos bens e serviços de que necessita (a menos que, por algum motivo, não consiga contactar com os vendedores).

Isso significa que, nos dias de hoje, e apesar de continuarmos a depender todos uns dos outros para a nossa sobrevivência, nós não precisamos sequer de conhecer esses outros, e ainda menos precisamos da sua simpatia ou colaboração no que quer que seja. Basta que tenhamos dinheiro!

O dinheiro confere poder. E como sempre fomos muito dados ao poder e muito atreitos à necessidade de sermos simpáticos com os outros, fomos lentamente optando pelo poder do dinheiro e pelo desligamento, ou isolamento, dos outros.

Ao mesmo tempo que a economia de troca directa da aldeia autosuficiente se foi transformando na economia monetarizada da aldeia global, também a ciência se foi transformando de uma actividade de procura do conhecimento para uma actividade de invenção de novos penduricalhos.

A evolução tecnológica disponibilizou-nos, ao alcance de um qualquer dedo, uma barreira protectora de todo o tipo de electrodomésticos. Finalmente, dotou-os da capacidade de transmissão e recepção de informação via ondas electromagnéticas. Finalmente, tornou-se possível receber notícias e comunicar com quem queremos, quando queremos, com o mínimo esforço.

As autoestradas da comunicação atalharam o nosso caminho rumo às nossas próprias opiniões. Sem a necessidade de aturar opiniões com as quais não concordamos, encontramos muito rapidamente hordas de gente com quem partilhar o gosto por fotografias de praias exóticas, o gosto pelo clube de futebol que emprega os jogadores mais bem pagos, o gosto pelo ódio aos que são contra as vacinas.

Comunidade deixou de designar o conjunto dos aldeãos que tratavam das suas necessidades, e passou a designar o conjunto de pessoas que partilham, a uma distância de segurança, o gosto por um aspecto isolado do todo que é a experiência da vida.

A isto tudo chamamos liberdade: em bom português, pegamos em nós e zarpamos para onde quer que seja, em qualquer momento, sem termos de dar satisfações a ninguém! Onde quer que nos encontremos, sabemos que o dinheiro e a tecnologia nos irão garantir o acesso a tudo e mais alguma coisa e que as comunidades em que estamos momentaneamente inscritos estarão lá para validar as nossas opções. E assim sentimo-nos livres!

Esquecemo-nos, claro, que o meio pelo qual conseguimos obter dinheiro é precisamente aquilo que, desde sempre, nos retira a liberdade. Esquecemo-nos que a relação que temos com a mágica tecnologia é muito mais de dependência do que de simples usufruto. Esquecemo-nos que a liberdade que temos de descartar as comunidades em que estamos inscritos é a mesma liberdade com que nos descartarão assim que deixarem de nos poder utilizar para seu proveito.

O que fizemos, em boa verdade, não foi necessariamente tornarmo-nos mais livres. O que fizemos foi trocar uma prisão por outra. Ou, se quisermos, trocámos um tipo de liberdade por outro tipo de liberdade.

Isto pode não ser evidente, e pode até parecer falso. No entanto, os factos estão aí para os analisarmos, se assim quisermos.

Lembro-me agora, e apenas a título de exemplo, da passagem que o Yuval faz no início do seu livro "Sapiens", a propósito da revolução agrícola. Segundo ele, não fomos nós que domesticámos o trigo, foi o trigo que nos domesticou. E o balanço, na sua opinião, foi claramente desfavorável em termos de liberdade: antes da revolução agrícola as pessoas eram mais livres.

Outro exemplo que agora me surge: a questão da propriedade da terra e de tudo o que nela se constrói. Enquanto antes a maioria do terreno não era propriedade de ninguém, e o terreno da aldeia era propriedade colectiva de toda a aldeia, hoje quase todo o terreno está tomado. E, no entanto, continuamos a acreditar que somos mais livres agora do que éramos no passado.

Um exemplo final: a máquina de vending que nos diz "é livre quem vive de acordo com as suas opções". Sobre isso já tive oportunidade de escrever no passado. Essa frase é claramente uma falácia. No cadafalso, imediatamente antes da execução, é concedido ao condenado um último desejo. Será ele livre?... Na ignorância de cada um, e em cada eleição, joga-se o jogo do partido da esquerda contra o partido da direita. Serão as pessoas assim tão livres?... Mesmo vivendo conforme as suas opções, a liberdade é uma coisa um pouco mais complexa.

Dê por onde der, mais livres ou menos, a verdade é que acreditamos que somos mais livres por não precisarmos de sorrir para ninguém e mesmo assim conseguirmos ter o que comer ao fim de cada dia.

Mas porque é que não queremos sorrir para os outros?... Claramente isso é um esforço que muitos tentam dominar para poderem obter dos outros o que desejam, mesmo que o seu sorriso nunca deixe de ser amarelo, e bastante diferente de um genuíno. Mas porque é que sorrir é um esforço?...

Sorrir é aqui apenas uma analogia para a construção de pontes através das barreiras que nos separam dos outros. Que barreiras são essas?...

Claramente os outros não têm os mesmos gostos que nós. É claro que existem muitas pessoas que partilham connosco o gosto da manteiga na torrada, o gosto da "música de restaurante", o gosto por roupa brilhante, o gosto por golfe, o gosto por livros do Tolkien ou por filmes do Manoel de Oliveira. Só que cada pessoa só partilha connosco um desses gostos! Por isso mesmo somos adeptos das comunidades "online", onde em cada uma apenas se partilha um gosto. De outro modo, sabemos que iremos correr o risco de, a meio do pequeno almoço com torradas e manteiga, a outra pessoa tentar convencer-nos que afinal os filmes do Tarantino é que são bons!

Alguém disse uma vez que nascemos todos iguais, a educação é que nos torna diferentes. Muito haveria a dizer acerca desta frase e acerca da educação a que se refere. No entanto, a ideia geral transparece: é ao longo da vida que vamos adquirindo os traços que acabam por nos separar dos outros.

Os gostos dos outros, para além de serem o inferno, são na verdade a manifestação de coisas mais profundas como a mundivisão, isto é, o modo como entendemos o mundo e nos entendemos a nós mesmos enquanto parte desse mundo.

Os aldeãos do antigamente teriam provavelmente mundivisões muito próximas. O mundo em que vivemos hoje parece-nos, e é, mais complexo. As nossas capacidades e disponibilidades não nos permitem abarcar toda a sua complexidade. Especializamo-nos. E no processo, apesar de adquirirmos mais conhecimento que os aldeãos, tornamo-nos relativamente mais ignorantes. E quando a nossa própria ignorância se torna difícil de digerir, começamos a simplificar. Aderimos então às estratégias de simplificação do caos: aceitamos nomes sonantes como sinais de autoridade nas mais diversas áreas do conhecimento e das artes, acreditamos nas opiniões do senhor engravatado, aderimos ao clube dos triangulares, etc. Segmentamos tudo, o mundo e as ideias, e escolhemos os segmentos onde nos sentimos mais confortáveis.

A menos que consciente e colectivamente façamos algo para o inverter, o processo parece-me inexorável: a complexificação do mundo obriga-nos à sua segmentação, a segmentação do mundo, das pessoas e das suas cabeças leva à complexificação do mundo.

Em perigo iminente de afogamento na complexidade do mundo que nós próprios ajudamos a criar, fragmentamos tudo, multiplicamos as mundivisões, e socorremo-nos das tecnologias e do dinheiro para embarcar nessa aventura solitária de tentar encontrar outros fragmentos que sejam compatíveis com os nossos, utilizando quem nos apareça pelo caminho.

Deixamos de aturar os outros. Sentimos que não precisamos, e não devemos, aturar os outros. Entoamos hinos à liberdade, que confundimos com a nossa versão pessoal de hedonismo bacôco. E atrofiamos os músculos que nos permitem dialogar, que nos permitem expressar o que pensamos e o que sentimos, que nos permitem entender as razões subjacentes aos comportamentos e discursos alheios. Ficamos rudes, agrestes, agressivos até. Perdemos a pachorra. Queremos a nossa casa só para nós, deixamos de acreditar na educação das crianças, indagamos se seremos os únicos a ser assim...

E, no entanto, ficamos felizes quando temos gente em casa que nos faz sentir menos sós, quando ensinamos algo a uma criança genuinamente curiosa, quando lemos num livro uma descrição de um personagem que nos parece o nosso sósia. Não apenas ficamos felizes, mas aquecemos o coração, numa tradução desse adjectivo inglês que me parece muito feliz: heartwarming.

O isolamento afectivo congela-nos. Coração negro... de basalto duro.

Podemos até alegar que nos preferimos assim. Contudo, para lá dessa questão subjectiva, objectivamente o isolamento corrói-nos a capacidade de pensar e de agir colectivamente na resolução dos problemas que também são colectivos.

Entre a objectividade da satisfação das necessidades económicas e a subjectividade do querermos ou não partilhar a nossa existência com outros, fica essa área de contornos mais difusos que se espraia pela sociologia, pela psicologia, pela biologia, e que se traduz no cuidarmos uns dos outros, e na procura de entendimento próprio e alheio.

Termino afirmando que também eu necessito de estar sozinho. Os outros são cansativos, sem dúvida. Mas tal como nos cansamos no exercício físico e não temos dúvidas de que é para o nosso bem, seria bom que os períodos em que estamos sozinhos fossem o descanso do exercício que fazemos quando estamos com os outros, na certeza de que é não apenas para o nosso bem, mas para o bem de todos.

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Outro texto relacionado: link.

sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

O que todos querem...

Anda por aí a correr o Youtube uma publicidade onde o inglês perfeito do Mourinho diz assim:

Successful manager, smart investor, nice guy. Who do you want to be?

Dá vontade de dizer, num inglês igualmente perfeito:

I rest my case.

...

Quando um trabalhador esmifrado do Jeff Bezos (ou outro da mesma laia) em vez de lutar com os seus colegas e toda a comunidade para não ser esmifrado, prefere antes olhar pelo seu umbigo e nutrir a esperança de um dia poder vir a ser como ele, não nos devemos surpreender. Houve um dia qualquer, lá no passado longínquo desse trabalhador, em que alguém lhe perguntou: gestor de sucesso, investidor esperto ou tipo bonzinho, quem é que queres ser?... E quando ele respondeu que queria ser bom e fazer o bem, todos fizeram troça dele. A começar pelos pais.

sexta-feira, 27 de novembro de 2020

O calor e as garrafas de gás...


Obviamente, muito mais importante que a economia e a política, o que se passa na Bolívia e a pandemia, é o que se passa com a nossa água quente no momento em que queremos tomar banho. Hoje em dia, fruto de muito "progresso", muitas pessoas têm sistemas de água quente infindável (bombas de calor, gás canalizado, etc.), ou de água aquecida em painéis solares, ou outros métodos alternativos ao velhinho esquentador alimentado por uma botija de gás. Mas eu ainda vivo nessa era, e às vezes, a meio do banho, tenho de gramar a gradual transição de água quente para água morna para água fria.

Em termos físicos, há muito aqui para explorar, e há muito campo para mal entendidos. Vamos lá explorá-los!

Se abanarmos uma garrafa de gás iremos ouvir e sentir um líquido a agitar-se lá dentro. Mas se é líquido, porque é que dizemos que é uma garrafa de gás, e não uma garrafa de líquido?...

Quando retiramos o líquido de dentro da garrafa, em condições normais, ele imediatamente transforma-se em gás, e é esse gás que nós utilizamos, quase sempre numa combustão.


Mas gases há muitos, e muitos não são combustíveis.

Portanto, talvez devêssemos chamar as coisas pelos nomes, e em vez de dizer "garrafa de gás" ou botija, devêssemos dizer "garrafa de butano" ou "garrafa de propano", que são os dois gases mais comuns que encontramos engarrafados.

Então porque é que o gás é afinal um líquido dentro da garrafa?

O estado das substâncias, líquido, sólido ou gasoso, depende de vários factores, entre os quais a temperatura e a pressão. Todos sabemos que se arrefecermos a água até temperaturas negativas ela tenderá a tornar-se sólida, e se a aquecermos a temperaturas acima dos 100ºC ela tenderá a tornar-se gasosa. Mas isso é se a pressão for de aproximadamente uma atmosfera. Se a pressão for diferente, as temperaturas dos pontos de fusão e de ebulição serão diferentes.


Por exemplo: uma vez tentei cozinhar arroz no alto de uma montanha muito alta. Aí a pressão é inferior à pressão atmosférica junto ao mar. E com pressão menor, o ponto de ebulição da água é inferior. Isso significa que a água ferve a uma temperatura menor. Podemos pensar que isso torna a tarefa de cozinhar arroz mais fácil, uma vez que não é precisa tanta energia para fazer ferver a água. O problema é que não é a fervura em si mesma que coze o arroz, mas sim a alta temperatura. E se a água ferve a uma temperatura menor, por exemplo 90ºC, então ela nunca irá atingir uma temperatura superior a isso, e o arroz terá de cozer o tempo todo a 90ºC. Conclusão: gastei o gás todo que tinha e o arroz ficou cru!

(tinha de chapar aqui esta música!!)

Mas não abandonemos já este exemplo. Se no alto dessa montanha a água a 95ºC já estará no estado gasoso, a água lá em baixo, ao nível do mar, à mesma temperatura de 95ºC estará no estado líquido. Assim, uma forma de transformar um gás num líquido é aumentando a pressão.

As garrafas de gás são construídas em metal ou em polímeros reforçados com fibras de carbono ou outros materiais muito resistentes, pois precisam de suportar a elevada pressão que existe no seu interior. É essa elevada pressão que mantém o gás, seja ele butano ou propano, no estado líquido.

Não sei se têm muita experiência a cozinhar com panelas de pressão, mas tentem acompanhar este meu exemplo. Se encherem uma panela de pressão com água até à sua carga máxima, fecharem a tampa e colocarem a panela no fogão até atingir a sua temperatura máxima, a água dentro da panela ficará sujeita a uma pressão superior à pressão atmosférica inicial, e isso permitirá que ela só ferva a uma temperatura de, por exemplo, 120ºC.


Se, a meio da cozedura, quisermos acrescentar um ingrediente e precisarmos de abrir a panela, teremos primeiro de reduzir a pressão interior antes de tentar abrir a tampa. Para isso usamos a válvula e deixamos sair algum vapor de água.

Ora, durante o processo de despressurização da panela, temos de libertar muito mais vapor de água do que aquele que estaria dentro da panela. De onde é que vem esse vapor de água adicional?...

O que acontece é que à medida que abrimos a válvula, a pressão no interior da panela diminui. Com a diminuição da pressão, a água que estaria inicialmente a uma temperatura de 120ºC entra imediatamente e integralmente em ebulição, gerando-se então muito mais vapor de água. E este processo só acaba quando a pressão no interior da panela ficar igual à pressão exterior, momento em que a água também terá arrefecido dos 120ºC iniciais para os 100ºC, que é a temperatura a que a água ferve à pressão normal.

O mesmo processo ocorre nas botijas de gás butano ou propano. Assim que abrimos a sua válvula, algum gás sai da garrafa, precisamente o que estava sobre o líquido (e por isso é que é suposto as garrafas estarem na vertical, com a válvula na parte de cima), e isso faz a pressão interior diminuir só um bocadito. Apesar de ser só um bocadito, essa diminuição de pressão é suficiente para que algum do líquido no interior da garrafa entre em ebulição, passando ao estado gasoso, e assim substituindo o gás que entretanto já tinha saído da garrafa.

Se voltarmos a fechar a válvula, o líquido continuará a vaporizar-se até que todo gás que saiu da garrafa seja reposto, e a pressão volta à pressão inicial. Numa botija de gás em repouso e sujeita a uma determinada temperatura exterior, a pressão interior é a mesma quer ela esteja cheia, quer contenha apenas uma nesga de butano ou propano em estado líquido.

No entanto, se mantivermos a válvula aberta durante bastante tempo, algo interessante acontece.

Tal como na panela de pressão, na qual a libertação da pressão fez a temperatura da água baixar de 120ºC para 100ºC, a diminuição da pressão interior de uma botija de gás também faz a temperatura do líquido baixar.

A diminuição da temperatura do butano ou propano líquido no interior da botija transmite-se às paredes das botijas, e esta transmissão é muito rápida se a botija for metálica.

Consoante as condições atmosféricas que envolvem a botija, esse arrefecimento do líquido no seu interior pode tornar-se visível do exterior, através da condensação da humidade do ar. Em casos extremos, quando está bastante frio, e quando o líquido contém mais propano que butano, a humidade condensada pode até chegar a congelar, formando-se um anel de gelo branco em torno da parte inferior da botija, precisamente até ao nível do líquido do seu interior.


Podemos explicar o arrefecimento da botija através do conceito de calor latente. Entende-se por calor latente a energia térmica que é necessário transmitir a uma substância para que ela passe de um estado sólido a um estado líquido, ou para que passe de um estado líquido a um estado gasoso.

De facto, para vaporizar água não basta apenas aquecê-la até 100ºC. Se o fizermos, ela permanecerá a 100ºC, mas sempre no estado líquido. Para vaporizarmos a água temos de fornecer à água que já está a 100ºC mais algum calor. Só então ela passará do estado líquido ao estado gasoso. E esse calor extra que temos de fornecer é o calor latente. Consequentemente, água gasosa a 100ºC tem mais energia térmica que água líquida a 100ºC, embora estejam ambas à mesma temperatura!

(podem procurar na Internet diversas demonstrações e explicações sobre o calor latente)

Voltemos à botija de gás. No momento em que abrimos a válvula, algum do líquido no seu interior transforma-se em gás. Mas, conforme acabámos de ver, a transformação do estado líquido para o estado gasoso requer energia térmica. Então, o líquido que se transforma em vapor vai "chupar" a energia térmica ao seu redor, ao líquido que não se transforma. Ao fazê-lo, faz com que todo o líquido arrefeça.

Portanto, temos um ponto assente: assim que usamos o gás da botija, a sua temperatura diminui.

Mas isso pode causar problemas à utilização do gás...

Já vimos antes que quando a pressão a que um líquido está sujeito diminui, a temperatura a que ele passa para o estado gasoso também diminui. Existe uma relação entre estes dois valores - pressão e temperatura de ebulição - e quando um diminui, o outro também diminui.

Portanto, quando a temperatura do líquido no interior da botija diminui, também a pressão diminui.


Uma maneira de visualizar este fenómeno é imaginar que a temperatura é uma medida do grau de agitação dos átomos e moléculas de uma substância. Assim, à medida que a temperatura de um líquido diminui, as suas moléculas e átomos ficam mais sossegados, e a sua tendência para se soltarem do restante líquido e passarem a vaguear livres como um gás diminui.

Recapitulemos: ao abrir a garrafa de gás, a pressão interior diminui um bocadinho, isso faz o líquido entrar em ebulição e uma parte do líquido transformar-se em gás, para repor a pressão. Mas nesse processo o líquido arrefece, e portanto a sua tendência para se tornar gasoso diminui. Portanto, se continuarmos a extrair gás de dentro da garrafa, a pressão interior da garrafa irá diminuir.

O resto é fácil de entender: se a pressão da garrafa diminui, o caudal de gás que pode ser extraído de dentro dela também diminui. Se estivermos a usar o gás num esquentador para aquecer água, a potência do esquentador irá diminuir, e a água deixará de estar tão aquecida.

Portanto, estamos a meio do nosso duche quente e a água quente começa a ficar morna e depois fria. O que é que podemos fazer?

A coisa mais simples que podemos fazer é simplesmente esperar. Porquê?

Enquanto esperamos, damos tempo para que a botija que arrefeceu volte a ficar à temperatura ambiente. Conforme já vimos, se a botija regressar à temperatura ambiente, e enquanto dentro dela existir nem que seja apenas um fundinho de gás, a sua pressão interior regressará ao valor inicial.

O tempo de espera permite-nos tentar responder a outra questão: mas então porque é que a água quente tende a ficar fria quando a garrafa está mais vazia?

À partida, a pergunta pode parecer parva. Afinal, se a garrafa está mais vazia, é porque tem menos gás, logo o esquentador não aquece tanto, e já está!

Mas se pensarmos mais um pouco podemos ver que a resposta não é assim tão simples.

De facto, conforme vimos, a pressão interior da botija é a mesma, quer a garrafa esteja cheia ou quase vazia.

Por outro lado, para um caudal constante de gás a ser retirado da garrafa, o calor latente que tem de ser fornecido ao líquido em cada segundo para ele se vaporizar também é constante.

Assim, se não temos problemas a usar uma garrafa cheia, é porque esse calor consegue fluir do meio ambiente para a garrafa, coisa que aparentemente não acontece quando a garrafa está quase vazia. Porquê?...

Por dois motivos. Primeiro, porque quando a garrafa está cheia, o calor que é retirado ao líquido para que algum dele se vaporize diminui pouco a temperatura do líquido. Ao contrário, quando a garrafa está quase vazia, o calor necessário para vaporizar o líquido arrefece muito o líquido que ainda resta, pelo simples facto de ele ser em pouca quantidade.

Segundo, porque a área de contacto entre o líquido e a parede da botija, através da qual se transfere o calor, é menor quanto menos líquido existir na garrafa.

Pronto, já esperamos suficiente. Estamos com o champô a cair para os olhos. Voltamos a abrir a torneira de água quente, esperamos um pouco e... sucesso! conseguimos que a água voltasse a sair quente!... Mas... infelizmente ela volta a ficar fria num instante!...

De facto, e pelos dois motivos que acabámos de referir, quanto mais vazia a garrafa está, mais rapidamente este fenómeno do arrefecimento se irá processar e mais vezes teremos de parar e esperar antes de recomeçar!!... Que seca!!... Ou melhor: que banho de água fria!...

Não há mesmo outra maneira?...

Há outras coisas que podemos fazer para tentar minorar este problema, embora de uma forma ou de outra, ele irá estar sempre lá: as relações físicas não se vão embora!

Imaginemos que queremos transportar uma coisa quente connosco e não queremos que ela arrefeça. Pode ocorrer-nos embrulhar essa coisa num cobertor. E essa é uma estratégia que resulta: ao criar uma barreira à volta do objecto que dificulta a transferência de calor do objecto para o meio envolvente.

Curiosamente, se quisermos transportar uma coisa fria e não quisermos que ela aqueça, nem todos se lembrarão de usar a mesma estratégia, isto é, de embrulhar a coisa num cobertor, apesar dessa estratégia funcionar bem, e pelos mesmos motivos: por criar uma barreira à volta do objecto que dificulta a transferência de calor do meio envolvente para o objecto.


No caso da botija, se ela arrefece e isso é que faz com que a sua pressão diminua, e se nós queremos que ela não arrefeça, pode ocorrer-nos tentar embrulhar a garrafa num cobertor. Porém, nesse caso o cobertor só iria dificultar!

O que a garrafa precisa para não arrefecer é de absorver calor do meio envolvente. Assim, a garrafa precisa do contrário de um cobertor: algo que permita que a transferência de calor entre a garrafa e o ar seja feita mais rapidamente!

Uma maneira de o fazer seria, por exemplo, construir uma estrutura de alumínio (ou outro metal que conduza bem o calor) com alhetas e colocar lá dentro a garrafa. Deste modo, aumentaríamos a superfície de contacto entre o metal e o ar. Seria como aumentar o tamanho de uma rede de pesca, neste caso para ir à pesca de calor.


Podemos também esperar por um dia mais quente... Ou colocar a botija dentro de casa, se o interior da casa for mais quente que o exterior... embora colocar botijas de gás dentro de casa seja geralmente uma má ideia. Uma maneira mais prática seria colocar a garrafa ao sol. Ou, se ela estiver dentro de um compartimento isolado, abrir as portas e permitir a circulação de ar para esse compartimento.

Mas todas estas formas de contornar o problema são pouco eficazes.

Uma forma muito mais eficaz de ultrapassar este problema é fornecer calor de uma fonte mais quente que o ar ambiente, directamente ao líquido que se vai transformar em gás.

Para o conseguir, o que se retira da botija não é o gás, mas sim o próprio líquido. Esse líquido é então transportado por um pequeno tubo e, imediatamente antes da válvula redutora que o irá fazer passar de líquido a gás, instalamos a nossa fonte de calor.

Isso é feito, por exemplo, nos fogões de campismo que estão especialmente preparados para ambientes muito frios. Nesses fogões, o tubo de líquido que sai da botija passa primeiro na própria chama do fogão, onde aquece, antes de ser convertido em vapor. Para esse efeito, o tubo é geralmente metálico. Assim, o calor latente necessário é extraído da própria chama, e a temperatura do líquido no interior da botija permanece inalterado, à temperatura ambiente.

(notar que a botija de gás está deitada e que existe um tubo metálico que fica em contacto com a chama)

Outro exemplo deste mecanismo é a utilização de gás de petróleo liquefeito (GPL, que não é mais que uma mistura de butano e propano) nos automóveis. O GPL pode ser aspirado juntamente com o ar que vai para dentro dos cilindros do motor, ou pode ser injectado directamente lá para dentro. Em qualquer caso, antes de isso acontecer, o GPL é aquecido com o calor do próprio motor, e portanto a temperatura do líquido no depósito permanece inalterada.

Mas... estes exemplos são muito bonitos... mas pouco práticos para quem está a meio de um duche que alterna entre o quente e o frio.

Bom... podemos sempre comprar uma botija cheia!

Mas, se comprarmos uma botija nova, teremos de devolver a que estávamos a usar, que nunca chega a estar completamente vazia. De facto, de cada vez que devolvemos uma botija de gás, devolvemos também um pouco de líquido. Tenho ideia que a Entidade Reguladora do Sector Energético (ERSE) decidiu em tempos que esse líquido remanescente tinha de ser pago à pessoa que devolve a garrafa, como é completamente justo, mas não consigo encontrar nada na Internet, o que não é surpreendente...

De qualquer modo, se vamos comprar outra botija, podemos optar por comprar uma botija de propano, em vez de uma botija de butano. Afinal, qual é a diferença destes gases?

O butano é um gás à temperatura e pressão normais, cujas moléculas possuem oito átomos de carbono e dez átomos de hidrogénio. Assim, a sua fórmula química pode escrever-se como C4H10. Uma forma simples de imaginar estes hidrocarbonetos, isto é, os compostos químicos cujas moléculas apenas contêm carbono e hidrogénio, é pensar que cada átomo de carbono gosta de estabelecer quatro ligações com os vizinhos. Assim, se colocarmos todos os átomos de carbono em linha, unidos uns aos outros, cada átomo do meio utiliza duas das suas ligações, enquanto os átomos das pontas utilizam apenas uma cada um. Assim, para preencherem as quatro ligações de cada um, cada átomo do meio irá unir-se a dois átomos de hidrogénio, e cada átomo das extremidades irá unir-se a três átomos de hidrogénio. Se fizerem as contas, verão que para 4 átomos de carbono, tem de haver 10 átomos de hidrogénio.


O propano é como o butano, mas só tem três átomos de carbono em cada molécula. Assim, se fizerem as contas, verão que só necessita de oito átomos de hidrogénio. A sua fórmula é assim C3H8.


Porque é que a fórmula química é importante? Bom, as moléculas de butano e propano são muito semelhantes, portanto hão-de ter características semelhantes. No entanto, as moléculas de butano são mais longas, e logo mais pesadas que as de propano. Consequentemente, o butano será mais denso que o propano, e a sua propensão a tornar-se em gás será menor que o propano. Finalmente, se queimarmos o butano, iremos extrair de cada molécula mais energia que do propano.

Quantificando, as características das duas substâncias são:


Vamos então fazer umas contas, para ver qual dos dois, butano ou propano, é mais barato para tomar um duche. Imaginemos que o caudal no duche é de 10L por minuto de água quente, que o duche é de 5 minutos, que a temperatura ambiente é de 20ºC e que a temperatura da água quente é de 50ºC.

Assim, iremos precisar de 50L de água quente. Como 1L de água pesa aproximadamente 1kg, iremos precisar de 50kg de água quente. Como cada mole de moléculas de água pesa cerca de 18g, 50kg equivale a cerca de 2778 moles. E como queremos aquecer isso de 20ºC para 50ºC, isto é 30 graus, iremos precisar de aproximadamente 6,283 MJ de energia.

Se usarmos butano, iremos necessitar de queimar 2,18 moles de moléculas de butano, o que equivale a cerca de 126,5g de butano. Se usarmos propano, só necessitaremos de 124,8g.

Assumindo que as botijas de butano e de propano custam o mesmo, por exemplo 25€, então o custo do duche usando butano será de 24,3 cêntimos, e usando propano será de 28,3 cêntimos.

Mas se o propano é mais caro que o butano, porque é que alguém haveria de o comprar?...

Precisamente porque o ponto de ebulição do propano é muito mais baixo que o do butano. Imaginemos que precisamos de usar botijas de gás que ficam no exterior da casa e que a temperatura do exterior baixa até 0ºC, ou que até fica negativa. Nessa circunstância, a botija de butano será completamente inútil, pois o ponto de ebulição do butano é superior a essa temperatura, e o líquido simplesmente irá querer continuar no seu estado líquido, mesmo que libertemos toda a pressão acumulada no interior da botija. Pelo contrário, uma botija de propano irá continuar a debitar gás, mesmo a essas temperaturas muito baixas.

No entanto, quando a botija de propano ficar quase vazia... iremos voltar ao problema do costume.

De qualquer modo, e a bem da saúde do planeta, o que todos devíamos fazer era reduzir o uso de água quente, e preferencialmente aquecer a água com painéis solares, ou com bombas de calor alimentadas por fontes de electricidade mais limpas.

quarta-feira, 25 de novembro de 2020

Não cumpro!

 


Poema de Emanuel Jorge Botelho, dito por Zeca Medeiros.


Não cumpro!

E não é por um

não me apetecer

cúmplice da displicência.

Não cumpro!

E nenhum ardil político

dá guarida

à minha negação.

Não cumpro!

Não cumpro

por convicção

da alma.

Não aceito

arrancar letras

à minha ortografia.

Não aceito escrever

sem o segredo

dos seus sons secretos.

Não aceito

riscar o rosto

à palavra da minha língua.

Mantenho inteiro

o meu dizer escrito.

Mantenho a sépia

que abraça cada sílaba.

A caligrafia do meu coração

não assinou nenhum acordo ortográfico.

Não cumpro!


terça-feira, 24 de novembro de 2020

O mistério das vagas...

Ou: unir as pontas soltas, os rabos de fora das motivações não reveladas dos maiorais.

O coronavírus não chove das nuvens. Não viaja sentado nos raios do Sol. Ao que parece, nem sequer vai muito longe com o vento: tem de se agarrar a gotículas que caem nas superfícies ao fim de alguns metros.

Como é, então, que apareceram há uns meses uns senhores engravatados a falar-nos na "segunda vaga"? O que é que eles sabiam que nós não sabíamos?... Será que eles tinham lunetas por onde podiam ver ao longe, e lá no horizonte viram vir de lá uma legião de coronavírus montados a cavalo?... Que informação privilegiada tinham eles?

É claro, ou já devia ser, para todos, que o vírus transmite-se de umas pessoas para outras. Naturalmente, se há aumentos do número de contágios a que gostamos de chamar "vagas", isso é consequência directa e inequívoca dos comportamentos das pessoas.

Portanto, quando alguém anuncia com um mês de antecedência que os contágios vão aumentar, é porque necessariamente sabe de antemão que os comportamentos vão ser propensos a isso mesmo.

O importante a perceber aqui é que a informação não é transmitida nestes modos: as pessoas irão todas conviver nos bares de verão, portanto os contágios irão aumentar, e nós vamos permitir isso, porque isso é importante para as pessoas se divertirem e para "manter a economia a funcionar". Em vez disso a informação é-nos transmitida como uma inevitabilidade: "preparem-se, que vem aí a segunda vaga!".

O pormenor é revelador de muito.

Entre outras coisas, sempre esta coisa de "ou a economia sem saúde, ou a saúde sem economia". Uma mentira. ESTA economia só funciona assim, esta! Não outra. E o que se tenta esconder a todo o custo do esclarecimento das pessoas é precisamente a possibilidade de uma outra economia.

Se quiserem saber de que outra economia estou a falar, procurem, leiam. Eu próprio já escrevi muito sobre isso.

Agora, no entanto, vem mais um relatório do Centro Europeu para a Prevenção e Controlo das Doenças falar na possibilidade de aumento do número de contágios num futuro próximo. Imediatamente as rádios e televisões anunciam "vem aí a terceira vaga!". Automaticamente o cidadão comum pensa "ai Jesus, o que é que se há-de fazer?"...

Só que o relatório não diz "o que é que se há-de fazer". Pelo contrário, associa directamente a evolução do número de contágios com as políticas que são seguidas. Por exemplo, diz:

"Para dez países que implementaram novas políticas de restrição no final de Outubro ou no início de Novembro de 2020, estimamos que a eficácia seja tão forte como na primeira vaga e que a taxa à qual esta nova vaga volte a ser controlada seja comparável com o a da vaga anterior." (ver aqui, página 16)

segunda-feira, 23 de novembro de 2020

Boletim meteorológico...

Ou: revisitação da noção de progresso.

 No final da década de 60 o boletim apresentado por Anthímio de Azevedo era assim:


Agora é assim:



quinta-feira, 19 de novembro de 2020

Competição...

Imagine que você era proibido de correr caso não fosse capaz de demonstrar que era o mais rápido do seu bairro.

Ideologia. Uma palavra que pode, mesmo nesta era de indiferença, acicatar paixões. Alguns pensarão nos ideais que nos fazem lutar por uma sociedade melhor, e daí poderão partir para os valores e a famigerada crise de valores. Outros pensarão em populações inteiras mobilizadas em torno de um líder, que tanto pode ser um símbolo do bem como um símbolo do mal. Alguns não hesitarão em afirmar que as ideologias estão mortas, e ainda bem! Enfim, há todo o tipo de ideologias acerca das ideologias.

O que normalmente é menos perceptível são as crenças que todos nós possuímos sem sermos sequer capazes de investigar se são ou não verdadeiras, de identificar os efeitos que produzem em nós, de conhecer as suas origens e como chegaram até nós, ou de como nós contribuímos para que perdurem no tempo e afectem outras pessoas.

Vale o mesmo dizer que todos nós possuímos uma ideologia que desconhecemos, e desconhecemos que possuímos essa ideologia, esse conjunto de ideias, de formas de ver e interpretar o mundo e de conduzir o nosso comportamento.

Encararmos tudo como um negócio e todos como competidores é um sintoma, um sinal exterior dessa lavagem interior.

Neste vídeo, com a chancela do FermiLab, a cientista Jennifer Raaf fala um pouco de dois exemplos de como o seu trabalho pode ter implicações práticas muito úteis na vida de todos nós. O que, só por si, já é um sintoma da ideologia que se possui: essa necessidade constante da utilidade prática... Mas vá, o segundo dos exemplos é sobre a construção de um ventilador para utilização nos doentes com Covid-19, e isso sim, é uma utilidade muito bem-vinda neste momento.

A certa altura a moderadora coloca à cientista a seguinte questão: quais são os competidores a nível mundial, e quão diferentes são esses competidores?

Na resposta, a cientista refere que há muitas equipas a trabalhar na concepção e produção de ventiladores, mas que não gosta de pensar nisso como competição, que pensa que estamos todos juntos nisto: quantos mais ventiladores estiverem disponíveis, melhor para todos.

Esta resposta pode parecer evidente, mas infelizmente não é, e merece da nossa parte alguma reflexão.

A reflexão que se impõe é ao mesmo tempo tão simples, tão à mão-de-semear, e ao mesmo tempo tem repercussões tão profundas, e tão contraditórias com a ideologia que perfilhamos sem o sabermos, que eu suspeito que as dissonâncias cognitivas que todos temos vão servir de travão e vão impedir a progressão logo depois da partida. De resto, não me apetece apontar qual é a reflexão que isto merece... portanto, quem quiser que pense nisso.

Apesar disso, vou referir um pouco da minha experiência pessoal e algumas questões que ela me foi levantando, na esperança de que talvez possa servir como engodo.

No ano de 2010 comecei a trabalhar no Laboratório Nacional de Engenharia Civil - LNEC. Este laboratório construiu ao longo das décadas uma sólida reputação, pelo menos junto das pessoas que estão de algum modo ligadas à construção de obras de engenharia de alguma envergadura e responsabilidade. Efectivamente, quando lá trabalhei, senti que o espírito era diferente de tudo aquilo que tinha experimentado noutros lugares. Hoje mantenho essa opinião. Não estou a dizer que é um lugar único no mundo: há certamente muitas instituições com "espíritos" semelhantes. Estou simplesmente a dizer que eu não encontrei igual, o que me leva a pensar que não será muito comum.

Por exemplo: os projectos não tinham obrigatoriamente um prazo definido para a sua conclusão. Um pressuposto que serve de fundamento a isso é o de que as pessoas que lá trabalham são sérias, não estão a brincar, e fazem o melhor que podem no prazo mais curto possível. Outro pressuposto é o de que a investigação não é um caminho rectilíneo e não é possível prevê-lo com segurança. Outro ainda é o de que a qualidade do resultado final é essencial. Aquela treta do "óptimo é inimigo do bom" é algo que simplesmente não se aplica quando se contrói uma barragem: a barragem não pode colapsar, aconteça o que acontecer, até se acontecer um tremor de terra.

Neste ambiente, e antes da grande treta da troika, sobre a qual já falei muito no passado e não propriamente de forma lisonjeira, as pessoas eram relativamente bem remuneradas e essa remuneração não dependia do sucesso comercial dos produtos vendidos. Os produtos não eram necessariamente vendidos, sequer. Eram profusamente testados para garantir, com uma margem de erro limitada, um determinado desempenho. No entanto, podiam ter um aspecto exterior asqueroso, capaz de afastar qualquer pessoa da montra da loja onde fossem exibidos.

Como resultado disto tudo, e não só, não existia, ou pelo menos eu não senti, essa coisa da "competição". Os diversos departamentos do LNEC não competiam uns com os outros. Pelo contrário, colaboravam.

(Escrevo no passado, porque falo da minha experiência pessoal, e não sei como as coisas estarão nesse instituto nos dias de hoje.)

Nem o LNEC ou os seus investigadores encaravam outras instituições como competidoras. Pelo contrário, havia um espírito de intercâmbio de ideias com outras instituições e de trabalhos conjuntos, em parceria. O típico ambiente que gera artigos científicos escritos simultaneamente por gente dos n cantos do mundo.

Entretanto, porém, o LNEC foi vendo o seu propósito esvaziar-se paulatinamente de sentido.

Talvez já tenham reparado nesse outro sinal exterior... nesse comportamento que todos temos, tarde ou cedo, de substituir peças aqui e acolá... Quando algo se avaria, deita-se fora e compra-se outro. Na melhor das hipóteses, como acontece por exemplo com os automóveis, identifica-se qual é o componente avariado, e então deita-se fora esse componente e instala-se outro novo. Talvez nunca tenham tentado reparar vocês mesmos umas calças rotas, um aquecedor que não aquece, uma máquina fotográfica cujo ecrã partiu. Mas se já tentaram, talvez tenham percebido na pele porque é que tanto se deita fora e se compra novo: porque o novo é muito barato quando comparado com o custo de reparar o velho.

De facto, o "mercado" está cheio de todo o tipo de penduricalhos, de todas as qualidades, a preços imbatíveis.

Vídeo recomendado:

Quando digo "preços imbatíveis" quero dizer que são mesmo imbatíveis.

Talvez tenham sempre olhado para isso do ponto de vista do consumidor, que todos somos, concluindo que isso é óptimo, pois permite-nos ter acesso a mais bens com o mesmo dinheiro. A felicidade ao virar da esquina!

Mas do ponto de vista do produtor, que igualmente todos somos, isso empurra-nos para o desemprego. Não quero com isso dizer que não vamos conseguir encontrar um qualquer emprego ou que vamos ficar sem dinheiro e sem acesso a bens. De um modo ou de outro o nosso sistema económico irá garantir que nós possamos continuar a ser consumidores, mesmo que apenas dos bens e serviços mais básicos. O que quero dizer é que sempre que pensamos em construir um negócio de isto ou de aquilo esbarramos muito facilmente no facto de isto ou aquilo já existir e já ser vendido ao preço da chuva.

No início da pandemia foi interessante ouvir pessoas a comentar, quase indignadas, que é uma vergonha Portugal não produzir nada e comprar tudo de fora. "Tudo" é excessivo... mas percebe-se a ideia. Ideia que me parece bastante reveladora da ignorância que perpassa toda a sociedade acerca do mundo em que vivemos e perpassa todas as cabeças acerca daquilo em que acreditamos.

O que quero dizer é que nós, enquanto potenciais produtores do serviço de reparação do aquecedor, desistimos e optamos por comprar um aquecedor novo. Isso é que é o nosso desemprego. Podemos pensar nisso como uma bênção, tal como nos foi levado a acreditar, mas bem pelo contrário, é uma maldição. É uma maldição porque nos faz sentir inúteis, porque nos faz perder a nossa autonomia, a nossa independência, e até o nosso sentido de vida.

Mas foi isso que conseguimos construir nas últimas décadas: uma sociedade e uma economia que nos retira o sentido da vida e nos enche de penduricalhos, um mundo que nos enche de felicidade bacôca e nos priva de felicidade profunda. Um dia acordamos deprimidos e não sabemos porquê. Mas temos comprimidos.

Bom... o LNEC viu o seu propósito esvaziar-se, porque para cada necessidade que os maiores construtores civis tinham, lá estavam múltiplas multinacionais a oferecerem os seus bens e os seus serviços a preços imbatíveis.

O LNEC não estaria talvez especializado na venda de produtos e serviços, mas sim na investigação que permitisse dar respostas àquilo que ainda não tinha resposta. Agora, porém, as múltiplas multinacionais já tinham pensado em todas as respostas que ainda não existiam!...

A competição das empresas venceu a cooperação das instituições como o LNEC. Os produtos que são produzidos pelas empresas não são necessariamente melhores, por exemplo são geralmente fabricados para durar pouco, mas são certamente muito mais apelativos. Sobretudo, são muito mais baratos.

Momento ideal para a entrada em cena da racionalidade económica: se são muito mais baratos é porque consomem menos recursos, portanto é benéfico para todos que deixemos as nossas tentativas toscas de produção e compremos o mais barato. Depois poderemos pensar noutras coisas que nós possamos fazer melhor do que os outros, na mesma lógica competitiva. Assim, todos nos tornaremos mais competitivos, mais parcimoniosos no consumo dos recursos e mais abundantes nos penduricalhos!

Certo.

O que se perde com esta treta da competição não são os produtos ou os recursos: são as pessoas.

À medida que o espírito das instituições públicas como o LNEC é substituído pelo espírito das multinacionais, as pessoas que tinham tempo para pensar passam a correr, a pensar menos, mais fragmentadamente e pior. As pessoas que se sentiam úteis a todos passam a sentir-se inúteis. As pessoas que nos rodeiam deixam de colaborar connosco e passam a competir connosco. Tudo o que se faz ou não faz passa a ser medido pela sua utilidade prática. Tempo passa a ser equivalente a dinheiro. Dinheiro passa a ser equivalente a felicidade.

Todos perdemos com a competição. Mas estamos convencidos do contrário, porque as montras das lojas ficam mais bonitas. E porque a nossa ideologia está madura, a ponto de não a sentirmos.

A competição melhora as mercadorias, mas estraga os homens. E as mulheres.

quinta-feira, 5 de novembro de 2020

Parcialidade, ou sinais exteriores de lavagem...


O nosso homem viveu de uma determinada maneira. Outros homens, inspirados pela sua conduta, escreveram a sua história. Vários outros homens que mais tarde leram a sua história, interpretaram-na de várias maneiras. Uns acreditaram que o nosso homem tinha um objectivo, outros pensaram que o objectivo era outro. E assim, formaram-se vários movimentos, todos baseados no exemplo do nosso homem. Esses movimentos eram diferentes em alguns aspectos e similares noutros. Por razões muito humanas, os movimentos sempre souberam acentuar as diferenças entre si e com os outros. Por isso, os movimentos sempre lutaram entre si, e sobretudo sempre lutaram com os outros, os que eram alheios a qualquer movimento. Em nome do nosso homem os movimentos tentaram convencer à força milhões de outros homens. Em seu nome erigiram instituições com rígidas hierarquias e regras de conduta. Em seu nome construíram monumentos que faziam as pessoas sentir-se pequenas. Em seu nome moldaram as cabeças das pessoas. E com tudo isso, conseguiram manter enormes privilégios para alguns e muitos outros numa condição inferior, uma espécie de feudalismo material e intelectual.

O nosso homem? Jesus da Nazaré.

Quase todos hoje em dia acreditam que foi um homem bom. Muitos procuram o seu exemplo para os ajudar nas opções do dia-a-dia e para encontrar paz de espírito. Mas ninguém comete o erro de dizer que os padres que violam crianças, que as cruzadas contra os infiéis, que as mortes na fogueira, que a censura de livros e pensamentos, que o compadrio com instituições mafiosas são o resultado da vida de Jesus, ou aconteceram e acontecem por sua culpa.

Agora vejamos uma versão alternativa do texto inicial. Ide lá acima e substituí as duas primeiras frases por:

"O nosso homem escreveu os seus pensamentos naquilo a que podemos considerar a sua história."

Agora prossigam com o resto do texto: "Vários outros homens...", etc.

O nosso homem? Karl Marx.

Muitos hoje em dia acreditam que foi um homem mau. Ninguém lê os seus pensamentos, nem acreditam que isso os possa ajudar nas opções do dia-a-dia ou para encontrar paz de espírito. Mas todos falam dele como se o conhecessem ou como se o tivessem lido, e muitos cometem o erro de dizer que o autoritarismo, as ditaduras, o regime de Estaline, os campos de concentração, aquilo a que usualmente chamam, lá do fundo da sua profunda ignorância, de comunismo, são o resultado dos pensamentos de Marx, ou aconteceram e acontecem por sua culpa.

Ambos, cada um à sua maneira, foram crucificados por um povo imbecil.

Perdoai-lhes, Senhor, que eles continuam sem a mais pequena iluminação. Eu é que não te perdoo a ti, Senhor, que ao fim de milénios de horrores insistes em manter tudo neste jeito.

quarta-feira, 4 de novembro de 2020

Trump ou Biden: venha o diabo e escolha...

Vi este vídeo. De tão rico que é decidi que tinha de o partilhar.

Mas sei, certo e sabido, que a rotina dos ecrãs LCD não permite dedicações muito extensas, e sei, certo e sabido, que os TED-Talks vieram consolidar a métrica padrão para o tempo máximo de atenção.

Portanto, pensei em resumir por escrito o conteúdo do vídeo, registando apenas, de forma sintética, as passagens mais relevantes. Assim, recomecei a ver o vídeo. Ao fim dos primeiros trinta minutos desisti de tirar mais notas. Eram tantas, que concluí: não vale a pena resumir. É mesmo para ver tudo.

Portanto, fica a minha sugestão e a minha vontade: vejam com atenção. Coloquem legendas (ainda que automáticas) em português, se necessário, façam as pausas que se impuserem, mas vejam e ouçam.

Ao contrário dos vídeos que parecem momentos publicitários, onde sempre alguma coisa está a mexer e os locutores parecem falar sem respirar, o discurso deste vídeo é pausado. Como todos os discursos deviam ser, pois só assim se permite que o público pense no que está a ouvir.

Todos os discursos deviam ser dirigidos a pessoas que querem ouvir, e que querem pensar. Talvez por isso, e não por causa da pandemia, este é um discurso literalmente feito para o vazio.

Oxalá tenham vontade de me contrariar.

Se aceitarem a minha sugestão, pensem no quanto as palavras de Chris Hedges se poderiam aplicar directamente à situação que conhecemos aqui no nosso país. O bipartidarismo, o papel que o Estado tem na defesa de determinados interesses, a adesão irracional a movimentos irracionais motivada por sentimentos de alienação, de medo, de ódio, a propaganda incessante dos media, etc.

Por outro lado, aquilo que se passa nos EUA afecta-nos de uma maneira desproporcional. Ouvimos mais música e vemos mais filmes norte-americanos que europeus. O modo norte-americano de fazer negócio e de moldar as economias afecta-nos mais do que qualquer outro. Até as suas palavras nós importamos para o português. Portanto também neste aspecto é importante compreender o que lá se passa.

Acima de tudo, há que entender como é que o sistema em que vivemos foi construído e é mantido. Não se trata agora apenas do sistema económico, mas também do sistema político e do sistema judicial, e o modo como estes sistemas transformam a sociedade e logo o que nos vai na cabeça, transformam o que nos vai na cabeça e logo a sociedade.

Chris Hedges é... Olha, investiguem vocês quem ele é... se isso vos for assim tão importante para avaliar as ideias que ele profere.



segunda-feira, 2 de novembro de 2020

A Covid-19, em dia de luto nacional...

 

(a hipocrisia oficial...)


Uma análise, em plena "segunda vaga".

A primeira consideração a ser feita é esta da "segunda vaga". Quem é que colocou essa expressão nas nossas bocas?... Pensem nisso. Será que fomos nós todos que nos lembrámos, ao mesmo tempo, de chamar a este aumento do número de infecções uma "segunda vaga"?

Talvez até julguemos que sim. Mas não. Neste caso, tal como em tantos outros, nós falamos das coisas que nos dão a falar, e falamos nos termos que nos dão para falar delas. E não nos apercebemos disso, sequer.

A expressão "segunda vaga" começou a circular na dita "comunicação social" há já vários meses. Pessoalmente, tenho ideia de se começar a falar disso no momento em que em Portugal estávamos a conseguir reduzir o número de infectados, talvez lá para Maio. Veio na boca de alguém, provavelmente algum político, e foi apanhada pelos jornalistas que, mais vezes do que deviam, se comportam como papagaios.

(Um ligeiro aparte: já pensaram na história do termo "geringonça" para designar o governo que tivemos até há bem pouco tempo em Portugal? Acham que é um termo justo? Não terá ele uma determinada conotação? Será essa conotação justa? Como é que poderia ser melhor? Porque é que não é? Quem é que nos põe a falar assim?...)

Portanto, a "segunda vaga" é algo que já todos nós sabíamos muito bem, desde há muito tempo, que iria ocorrer. Sabíamos, porque nos tinham ensinado. Só não trataram de nos ensinar a defendermo-nos dela.

Para que serviu então tanto falatório antecipado sobre a "segunda vaga", quando, no momento em que ela vem, estamos ainda mais à nora do que estávamos na primeira?... A minha resposta é: propaganda. O falatório antecipado serviu para nos ajudar a aceitar como normal o aumento do número de casos.

Lembram-se como foi em Março?... Toda a gente acatou o confinamento, as ruas ficaram desertas. Porquê? Porque a propaganda tratou de amedrontar as pessoas. E o medo, como costumo dizer, molda o mundo.

Pelo contrário, desde então, toda a propaganda foi no sentido contrário, no sentido de mostrar às pessoas que a vida tem de prosseguir apesar de tudo, blá blá blá... E portanto não admira que agora, mesmo com um número de casos diário muito superior ao verificado em Março, as pessoas não tenham vontade de se confinar.

Para lá disso, agora, ao contrário do que acontecia em Março, todos entendem que o confinamento tem consequências económicas que podem ser muito graves.

Não vale a pena insistir quão graves são essas consequências económicas e quão desigualmente afectam umas e outras pessoas. Creio que isso já é evidente.

Entretanto a propaganda, ao mesmo tempo que apregoava "vem aí a segunda vaga", também nos foi alertando "a economia não aguenta uma nova paragem". E todos trataram de acreditar.

O triste é este constante efeito Dunning-Kruger, esta coisa de as pessoas julgarem que compreendem tudo, quando na verdade não compreendem nada. Já tratarei de explicar melhor. Por ora, basta-nos constatar aquilo que é a realidade:

ao mesmo tempo que nunca tivemos tantos infectados e tantos mortos, não só parecemos não estar muito preocupados com isso, como convocamos manifestações em defesa de um ou outro sector de actividade económica, no sentido de prosseguir a vida como dantes. Estamos plenamente convencidos que "a economia não aguenta uma nova paragem" porque sabemos que o negócio onde trabalhamos, ou que gerimos, ou que possuímos, não tem condições para continuar com poucos ou nenhuns clientes por muito mais tempo sem que isso acarrete dívidas que se tornam impossíveis de pagar, ou seja, sem que isso acarrete a sua falência.

Portanto, acreditamos, mesmo sem pensarmos muito a sério no assunto, na dicotomia entre saúde e economia.

Em Março, fomos todos a favor da saúde e a economia que se lixe. Agora, em Novembro, somos todos a favor da economia e a saúde que se lixe.

Entretanto, e embalados nesta cantilena, vamos achando que a doença não é assim tão grave. Pelo menos enquanto não morre alguém que nos é próximo. Aí talvez as coisas mudem... ou não. Porque a mansidão do povo é tal, que parece que já aceitamos que morrem os frágeis, é mesmo assim, deus e a natureza lá sabem, não há nada que se possa fazer.

Já tive oportunidade de escrever antes que a máxima "uma morte é uma tragédia, mas um milhão é uma estatística", considerada uma marca distintiva dos maiores sanguinários da história, é agora aceite pela população como uma coisa banal. Mas talvez haja para todos nós a atenuante da ignorância. Afinal, nós estamos convencidos, porque nos disseram que vinha aí a segunda vaga e nos disseram que a economia não aguentava uma nova paragem, que não há nada a fazer.

E isto tudo é para mim bastante chocante. Vou passar a tentar explicar-me melhor.


Primeiro ponto: o poder do Estado para impor restrições às liberdades individuais.

Eu defendo a liberdade individual. Não gosto da ideia da existência de pessoas, grupos ou instituições mais ou menos tangíveis com mais poder do que os indivíduos, a obrigá-los a agir de um ou outro modo. Apesar disso, esse tipo de pessoas ou instituições sempre existiu ao longo da história da humanidade, portanto talvez seja bom analisar porquê.

Os pais têm mais poder do que os filhos, sobretudo quando estes são novos, e parece-me que ninguém contesta que assim é que deve ser.

Os habitantes de uma aldeia podem tomar decisões em conjunto, deliberadas por maioria. Isso já poderá ser contestado por algumas pessoas. Um habitante da aldeia que tenha nascido com o rabo virado para a lua e prefira fazer as coisas doutro modo terá a sua vida muito dificultada.

A questão que os aldeãos terão de resolver, esse assunto constitucional, ou meta-político, será o de decidir quais as matérias a ser decididas em conjunto e quais as matérias que deverão ser entregues à liberdade de escolha de cada um.

Nos dias de hoje, o Estado emana um conjunto de regras que devem ser aplicadas por todos. Vamos, por um bocadito, acreditar que o Estado está verdadeiramente a representar os interesses da maioria da população, mesmo que isso na verdade raramente seja o caso. Vamos enumerar exemplos de regras por ordenação crescente de legitimidade de contestação:

1 - Imaginemos então, à cabeça, a regra que proíbe a descarga de lixos industriais não tratados nos rios. Este é um exemplo de uma regra cuja legitimidade dificilmente alguém no seu perfeito juízo irá contestar. Mesmo quem não cumpre facilmente entenderá que a existência da regra tem sentido.

2 - Imaginemos agora a obrigatoriedade de circular de automóvel a uma velocidade inferior a 120km/h nas auto-estradas. Muitas pessoas irão contestar a sua legitimidade, alegando que é perfeitamente seguro circular naquela auto-estrada, com aquele clima, naquele estado de espírito e com aquele automóvel, a velocidades bastante superiores. No entanto, creio que não será difícil entender a legitimidade de argumentos como os seguintes: a velocidade de um automóvel põe em risco não apenas os seus ocupantes, mas também a dos outros veículos que circulam na mesma estrada, assim como dos seres vivos que nela se possam cruzar, o ruído aumenta com a quinta potência da velocidade, o consumo energético aumenta para uma mesma distância com o quadrado da velocidade.

3 - Consideremos agora a obrigatoriedade do uso do cinto de segurança. Nesse caso já começa a ser mais difícil fundamentar a sua legitimidade. De facto, um ocupante de um veículo que não use o cinto de segurança está a colocar em risco a sua vida, mas dificilmente irá aumentar o risco sobre outras pessoas. Creio que neste caso o legislador, e talvez bem, tenha considerado que nem sempre as pessoas sabem escolher o que é melhor para si próprias, que o tecido social depende de todos nós e portanto ninguém pode simplesmente dizer que os outros não têm nada a ver com a sua existência... Eventualmente alguns alegarão os custos económicos da reparação dos danos, que serão suportados por todos, caso o fulano que circulava sem cinto se magoar à conta disso.

4 - Finalmente, podemos considerar uma norma como a que obriga os construtores de casas novas a instalarem em sua casa as ligações necessárias para terem TV por cabo em todas as divisões. Nesse caso, eu próprio não consigo avançar com um único argumento que legitime semelhante obrigação, até porque acredito precisamente que a ausência de televisor em casa é um factor importante na saúde física, emocional e mental das pessoas. Neste caso, portanto, a obrigação imposta pelo Estado poderá ser sentida por algumas pessoas como injustificada e abusiva. Ou seja, será uma demonstração de autoritarismo.

Onde, então, é que nesta escala vamos situar as imposições que os Estados têm tomado a propósito da pandemia?

Como disse em cima, eu defendo a liberdade individual. Creio, portanto, que o nosso governo poderia tratar de implementar uma campanha de informação acerca da doença - como se transmite, como prevenir a sua transmissão, o que fazer em caso disto ou aquilo - e deixar a decisão sobre como agir ou não agir à liberdade de cada um.

Mas neste caso uma medida desse tipo não teria certamente grandes efeitos práticos na prevenção da disseminação do vírus. Para que isso pudesse acontecer seria necessária uma dose impensável de autocontrolo, disciplina, conhecimento, generosidade... tudo muito para lá da realidade.

Na verdade dos factos, este vírus, tal como tantos outros, pode transmitir-se muito facilmente entre indivíduos que não apresentam sintomas. Ora, se esses indivíduos não apresentam sintomas, será que a sua disciplina e sentido de dever cívico irá fazer com que eles não entrem em contacto com tantas outras pessoas, conforme é habitual em tempos normais? A meu ver, a resposta parece-me um óbvio não.

Parece-me, portanto, e muito contra aquilo que são as coisas que eu próprio defendo, que neste caso existe legitimidade para que o Estado imponha, em nome de todos, e para bem de todos, restrições às liberdades individuais.

Isso não quer dizer, porém, que as restrições que têm sido implementadas são as melhores ou sequer boas. O meu último artigo neste mesmo blogue é precisamente um exemplo disso.

Mas inequivocamente quer dizer que não é compatível manter um estilo de vida normal com a tentativa de controlar a disseminação da doença. E isso, inevitavelmente, terá consequências económicas.


Segundo ponto: a economia.

Quando um político nos diz, via meios de difusão associal, que "a economia não aguenta uma nova paragem", de que é que ele realmente está a falar?

Conforme já escrevi em tempos, podemos em geral substituir a palavra "economia" nos discurso dos políticos profissionais por "empresas" ou algo do género. Trocar economia por empresas pode parecer à primeira vista um pouco inócuo. Mas confrontem "a economia não aguenta" com "as empresas não aguentam"... Nesta segunda versão coloca-se em evidência algo que está escamoteado (e propositadamente) na primeira versão: a questão da propriedade.

De facto, quando os políticos falam de economia, nós, que já temos a lavagem cerebral adequada, acreditamos, sem que para isso tenham de nos explicar mais nada, que estão a falar do dinheiro de todos nós, da actividade económica de todos nós, das empresas públicas ou privadas de todos nós. O discurso do "estamos todos no mesmo barco", do "as empresas é que geram a riqueza e garantem o emprego".

Mas a distribuição da propriedade em geral, e das empresas também, é profundamente desigual. E isso de as empresas serem o garante... muitos de nós sabemos que as empresas sempre lá estiveram e a nós só nos garantiram, ano após ano, vidas de miséria.

Todo o discurso político de apoio à economia é um discurso de apoio aos maiores detentores de propriedade, empresarial e não só, que infelizmente a população interpreta como sendo um discurso de apoio à população em geral.

Temos neste preciso momento um exemplo paradigmático. Os governos dos países europeus, sob a égide na União Europeia, anunciam com pompa uma série de programas de incentivo ou revitalização ou dinamização (ou alguma coisa semelhante, claramente saída de um cérebro AIESEC propenso a "business bingo") da ECONOMIA! Pois bem, a população acredita que os governos estão a fazer o que podem, e eles fazem o quê?... Concedem empréstimos, resmas de empréstimos, às empresas. E em condições tanto melhores quanto maiores forem as empresas.

É assim que isto funciona: em vez de se ajudar as pessoas, ajuda-se a "economia". E as pessoas concordam.

As pessoas às vezes mereciam era um par de chapadas a ver se acordavam!

Que economia é essa que não aguenta? Que crise económica é essa?

Conforme já escrevi antes, esta, como tantas outras, é uma crise de falta de procura. Não falta nada nas prateleiras das lojas. Falta é dinheiro no bolso das pessoas para as poderem comprar. Se esta situação se mantiver de forma muito intensa durante muito tempo, aí sim, correremos o risco de afectar também a oferta, e aí sim, os produtos poderão começar a escassear nas prateleiras das lojas.

Ao nível global, haverá certamente menos disponibilidade para comprar automóveis novos. Se bem que os efeitos da pandemia estão distribuídos de forma muito desigual, e muitos, sobretudo os mais ricos, poderão continuar a comprar penduricalhos sem qualquer restrição.

No entanto, ao nível dos bens essenciais, o consumo mantém-se, porque tem de se manter. Só se não tiverem alternativa é que as pessoas deixarão de consumir produtos alimentares, viagens de curta distância, electricidade, gás, água, medicamentos, serviços básicos (saúde, educação, apoio social, etc.) e alojamentos para lá poderem viver. Essa é a "economia" que mais interessa, precisamente aquela que tem sido privatizada ao longo das décadas e muitas vezes entregue a detentores que nem sequer falam a mesma língua que nós (mas vá, não são necessariamente piores por causa disso).

Ora essa "economia", a economia dos bens essenciais, não é afectada pelas medidas restritivas que o governo tem imposto nesta quadra. Essa economia aguenta a pandemia sem pestanejar! As empresas que não aguentam são as empresas daqueles outros penduricalhos que não consideramos tão essenciais assim.

Eu sei que isto que afirmo pode causar muito desconforto em muita gente, porque afinal a grande maioria das pessoas trabalha em sectores de actividade que não são tão essenciais assim. Mas isso aplica-se também a mim. E é apenas um sinal de maturidade intelectual não enviesarmos as análises por causa dos nossos interesses pessoais. A verdade é que a maioria da "economia" não é essencial. E o progresso tecnológico irá inevitavelmente, ao longo das décadas que aí vêm, agravar essa situação, como aliás já tem feito desde pelo menos o início do século XX.

Agora apelo a um exercício: e se imaginarmos os nossos políticos, que tanto se esforçam por redefinir o conceito da palavra "responsabilidade" (eles mesmos, que são os mais irresponsáveis que a sociedade possui, uma vez que, gozando de imunidade, fazem as asneiras e logo de seguida se põem a andar para a presidência de uma empresa qualquer) a alterar o seu discurso de "a economia não aguenta uma nova paragem" para "os produtores de penduricalhos não essenciais terão dificuldades em manter os seus negócios abertos"?

Quão responsáveis pareceriam então os nossos políticos, numa altura em que as liberdades das pessoas estão restringidas e há muita gente a morrer, a discursarem a sua preocupação com os penduricalhos?... Porque é disso que se trata!


Terceiro ponto: a alternativa.

Na verdade, quem trabalha numa empresa que produz bens ou serviços não essenciais, fica com o seu emprego em risco. E, na altura em que estamos, perder o emprego não é mesmo nada bom, porque não há perspectivas de arranjar outro a seguir. Afinal, como todos sabemos, o mercado de trabalho é mais como um local fictício onde os empregadores escolhem os que mais lhes convêm, e as pessoas fazem o seu melhor para se venderem e para passarem à frente da pessoa ao lado na corrida (aliás, acreditam que isso até é muito bom, porque faz com que as pessoas dêem o que têm de melhor).

É isso que as pessoas pensam e sentem quando houvem o discurso do "a economia não aguenta". E isso é claramente muito preocupante.

No entanto, conforme acabei de referir em cima, a economia dos bens e serviços essenciais continuará a funcionar, e os produtos essenciais não faltarão nas prateleiras.

Ora se os bens não escasseiam, mas as pessoas não lhes conseguem pôr a mão, isso significa que o problema na economia e na sociedade e na política é um problema de distribuição: quem é que tem o quê?

Esse problema pode solucionar-se de um modo muito simples: basta que as pessoas possuam dinheiro suficiente para poderem comprar os bens de que necessitam.

Afinal, se todas as pessoas conseguirem ter acesso aos bens e serviços essenciais, qual é a grande preocupação?

O que está em causa é, efectivamente, uma questão de seriedade.

Se formos sérios, teremos de admitir que a pandemia não é uma brincadeira, temos que pensar que amanhã podemos ser nós a estar internados numa unidade de cuidados intensivos (se ainda houver vagas), que temos de fazer tudo o que estiver ao nosso alcance para podermos minorar os seus efeitos, e que ficar deprimido porque não podemos ir ao cinema ou consumir outros produtos e serviços não essenciais não é uma atitude de gente séria.

Teremos de admitir também que se os bens e serviços essenciais existem em quantidade suficiente para satisfazer a todos, então eles têm de ser distribuídos por todos, independentemente de as pessoas serem ricas ou pobres.

Finalmente, teremos de admitir que tirar partido desta situação para conceder empréstimos aos mais necessitados, recebendo os pagamentos de volta, acrescidos de juros, durante um longo período vindouro, não só é um comportamento pouco sério, como é um comportamento deplorável: não só não devia ser aplaudido pelas pessoas, como devia ser combatido como quem combate um agressor mais forte que agride uma vítima mais fraca.

(Em tempos, os que se aproveitavam da débil situação financeira de outros para deles extrair dinheiro eram chamados de usurários ou agiotas e eram mal vistos. A própria igreja católica condena a usura. No entanto, quando hoje esfregam a usura no nariz das pessoas, elas em vez de lhe detectarem imediatamente o cheiro, aplaudem!)

Há imensas maneiras de colocar em prática uma outra via mais séria de gerir as coisas. Uma das maneiras mais simples é criar dinheiro e depositá-lo mensalmente nas contas bancárias das pessoas. Tão simples quanto isso.

Muitas pessoas não acreditarão que possa ser assim tão simples. No entanto, todos os dias os bancos criam dinheiro e depositam-no nas contas das empresas, em forma de empréstimos. E nisso as pessoas já não têm dificuldade em acreditar.

Agora, por favor, unam os pontos entre os dois parágrafos anteriores!

Vejo gente a manifestar-se pela manutenção do seu negócio, e penso que as pessoas estão mesmo à nora. Hoje manifestam-se os artistas da bola, amanhã os artistas da música, depois os artistas da comida, depois os artistas da caneta, depois os trabalhadores do comércio, os empregados hoteleiros, e quase toda a gente. Porque quase toda a gente será duramente afectada por tudo o que se está a passar. E eu sempre fui muito a favor dos manifestos e das manifestações. Mas...

Seria bom que as pessoas pudessem ter uma visão mais geral deste assunto. O problema não é só seu, do seu emprego ou do seu negócio. O problema é de todos. E se todos sairmos à rua para gritar bem alto pela manutenção das coisas à moda antiga, estaremos no fundo a afirmar apenas a nossa incapacidade para lidar com esta pandemia.

Será que o melhor que conseguimos fazer nesta situação de pandemia é continuar com o negócio do costume?...

E se o dinheiro não fosse problema? Agiriam as pessoas do mesmo modo?... Creio que não.

Portanto, deixo mais uma vez o meu apelo: o dinheiro é criado nos bancos, lutem para que esse dinheiro seja distribuído de forma justa por todos. Oxalá possam fazer muitas manifestações a exigir isso mesmo: dinheiro para todos!

sexta-feira, 30 de outubro de 2020

Criancinhas...


Criancinhas são os adultos que se tratam a si próprios como coitadinhos e logo não conseguem imaginar os outros como outra coisa senão coitadinhos.

Neste momento temos em Portugal uma obrigatoriedade de uso de máscara em espaços abertos se tal e tal, blá blá blá... excepto para portadores de doenças tal e tal, etc e coiso, e excepto para crianças com menos de 10 anos de idade.

Independentemente de estarmos contra ou a favor do uso de máscaras, a questão aqui é: porque é que as crianças não são obrigadas a usar máscara quando os adultos são?

O fundamento, certo ou errado, para o uso de máscaras é que a doença Covid-19 se transmite de humano para humano através das gotículas que expelimos pela boca e pelo nariz. Assim, a máscara é usada não para prevenir que inalemos uma dessas gotículas, mas impedir que espalhemos as nossas gotículas no ambiente onde nos encontramos.

Algumas pessoas estarão infectadas embora não apresentem sintomas, ou porque nunca irão apresentar sintomas, ou simplesmente porque a doença ainda não teve tempo de se desenvolver. Estas pessoas julgar-se-ão saudáveis e levarão a sua vida normalmente. Se não usarem máscara, estarão a espalhar vírus por todos os sítios onde passam.

Ora, se este é o fundamento, podemos acrescentar-lhe que as crianças são, e aqui demonstradamente, as pessoas que menos sintomas apresentam e que em muitos casos não chegam sequer a desenvolver a doença, mesmo estando infectados. Portanto, existe nessa faixa etária um risco ainda maior de as pessoas se considerarem saudáveis, não tomarem as precauções, e espalharem a doença pelos outros.

Tentei esclarecer esta minha dúvida, mas das pesquisas que fiz não encontrei nada de muito substancial.

O que a Organização Mundial de Saúde diz, no seu portal, é o seguinte:


"Children aged 5 years and under should not be required to wear masks. This is based on the safety and overall interest of the child and the capacity to appropriately use a mask with minimal assistance.

WHO and UNICEF advise that the decision to use masks for children aged 6-11 should be based on the following factors:

  1. Whether there is widespread transmission in the area where the child resides
  2. The ability of the child to safely and appropriately use a mask
  3. Access to masks, as well as laundering and replacement of masks in certain settings (such as schools and childcare services)
  4. Adequate adult supervision and instructions to the child on how to put on, take off and safely wear masks
  5. Potential impact of wearing a mask on learning and psychosocial development, in consultation with teachers, parents/caregivers and/or medical providers
  6. Specific settings and interactions the child has with other people who are at high risk of developing serious illness, such as the elderly and those with other underlying health conditions"

Ou seja, crianças muito novas não devem ser obrigadas a usar máscara por razões de segurança. Parece-me razoável... Consigo imaginar um bebé a mastigar uma máscara e a engasgar-se com ela, ou a tentar enforcar-se... eles são capazes de tudo ao que parece. Mas o limite de idade de 5 anos é certamente um pouco arbitrário. Mas aceitemos isso e passemos ao seguinte.

Para as crianças com idades entre os 6 e os 11 anos, os pontos 1, 3 e 6 apresentados em cima não são relevantes para a sua discriminação dos adultos, uma vez que esses pontos aplicam-se de igual modo aos adultos. Isto é, o uso só deve ser obrigatório se houver acesso a máscaras, se a situação o exigir, etc.

Os pontos 2, 4 e 5 podem resumir-se ao seguinte: capacidade da criança usar autonomamente uma máscara e o impacto da máscara na aprendizagem e desenvolvimento psicossocial.

Portanto é oficial: os adultos não confiam que as crianças com 6 e mais anos de idade sejam capazes de usar máscaras sem se colocarem em perigo, e acreditam que o uso das máscaras nas crianças pode causar-lhes problemas psicológicos e sociais.

Isto devia requerer de todos nós uma tremenda pausa para uma tremenda reflexão.

Na natureza, um filhote de chimpanzé já é suposto arranjar o seu próprio sustento pelos 5 anos de idade. Em contraste, imaginemos os progenitores de um humano de 5 anos de idade a deixá-lo sozinho durante cinco minutos numa mata... Provavelmente a criança iria divertir-se, mas os pais teriam de ser internados por histeria.

Se se admite que uma criança de 6 anos não é capaz de lidar com uma máscara por sua conta, que fará com um garfo, ou uma faca, ou um lençol, ou um saco plástico, ou uma bisnaga de creme para a barba, ou detergente da louça, ou uma tomada eléctrica, ou...?

Os pais que tratam os filhos como incapazes deviam eles próprios tratar-se da sua incapacidade. Porque abandonados a si próprios, eles autorrealizam a sua profecia: quando os filhos atingem os 10 anos de idade e ainda não sabem lidar com uma faca afiada ou uma tomada eléctrica os pais afirmam triunfantes "vês como é um coitadinho?".

Entretanto, noutros países deste planeta, a idade a partir da qual era obrigatório usar máscara era de 2 anos, mas passou recentemente para 6 por causa precisamente destas recomendações da OMS. Coitadinhas das criancinhas!... As que conseguirem sobreviver vão certamente ficar com traumas para toda a vida!

https://www.channelnewsasia.com/news/singapore/covid-19-children-masks-two-years-old-six-face-shields-13138088

https://babyandchild.ae/age-1-4/healthy-toddler/article/1679/children-and-face-masks-why-kids-might-need-to-wear-them-most-of-all

quinta-feira, 29 de outubro de 2020

Amarelos!...

 


"Amarelos e limpos
eles são o fruto
eles são raiz.
Sua vida é uma história
que mastiga
e não se diz."

(Brincadeira sobre o poema "atados e simples" de Maria Rosa Colaço, musicado pelos Trovante no álbum "baile no bosque")


Quase quarenta anos a mastigar tudo e mais alguma coisa. Só conheceram o tabaco dos outros, raras vezes tocaram em café. Têm os nervos um pouco à flor do esmalte, mas nunca se debateram com uma cárie.

São 32 dentes perfeitamente saudáveis, amarelos e tortos, como todos os dentes naturais.

A cor natural dos dentes é amarelo.

Portanto, de cada vez que esfregam "micro-cristais" ou carvão nos dentes, ou vão ao dentista deixar rios de dinheiro para sair de lá mais brancos, estão a contribuir para que todos nós, em conjunto, deixemos de achar os dentes saudáveis e naturais como bonitos, e passemos a achar bonito algo que é artificial.

Pensem nisso.

De resto, e tal como nos cavalos, quando as pessoas se dão, não devíamos olhar aos dentes.