sábado, 4 de julho de 2020

Diário de um privilegiado...

Caro diário,

Hoje fui obrigado a vencer a minha recusa de tratar da declaração do IRS. Era o último dia do prazo legal. Durante esse longo prazo eu sempre evitei o assunto, porque sabia que iria trazer problemas. Sim... eu bem sei que os problemas resolvem-se e que quanto mais depressa melhor e tudo o mais... Em boa verdade, canso-me de exercitar isso mesmo no dia-a-dia, tantos são os problemas que se me atravessam sistematicamente no caminho. Mas quando o problema é ficar sem um braço, desculpar-me-ás se eu cedo à procrastinação, querendo manter a sensação da presença física do braço por mais um bocadito.

Em 2002 ou 2003 chateei-me valentemente, ou seja, com muita valentia, com o meu pai. Verdade seja dita, nunca reconheci nesse homem a vontade de fazer o mal, ou sequer de fazer mal, de passar por cima dos outros, de enganar. Pelo contrário, ele é que foi enganado muitas e profundas vezes. Mas ele tinha esse defeito parental tão comum de querer ver nos filhos uma extensão do próprio eu. E isso desde cedo foi sentido pelos filhos como uma opressão.

Nesse momento, eu tinha casado havia pouco, e o meu pai resolveu misturar negócios com amizades e relações familiares, vontades próprias e alheias... resolveu misturar tudo, conforme seu apanágio, para levar a sua avante, para o bem de todos. Para o bem de todos resolveu então investir numa casa para o recém-legalizado casal. A quiduxa da esposa, que entretanto se pôs a andar quando percebeu que com semelhante marido ia ser difícil ter empregada de limpeza, bom carro, férias nas Bahamas e sentir-se desejada por causa do seu cabelo artificial, das suas unhas artificiais e da sua roupa artificial, talvez até estivesse disposta a abdicar da possibilidade de escolha só para não ter de pagar a prestação ao banco. Afinal, isso fazia parte dos seus objectivos.

Para mim, no entanto, isso foi apenas mais uma intromissão em jurisdição alheia, mais uma forma de limitar a minha liberdade (e não só minha... justiça seja feita, que a indignação que senti não foi apenas em relação à limitação da minha liberdade, mas também à limitação da liberdade da quiduxa), e culminou toda essa trajectória de uma vida a ter de levar com a vontade do papá a querer que o filho brilhe segundo as suas orientações.

Caro diário, fica sabendo que valorizar mais a liberdade que a fortuna dá chatices que nunca mais acabam!...

Ficámos algum tempo sem nos falarmos, depois de ele me dizer que já não era seu filho... o que obviamente não era verdade. Não foi um dia ou dois, mas agora também não consigo precisar se foi um ano ou dois. Ou dois ou três.

Infelizmente o abandono súbito da quiduxa, de quem eu verdadeiramente gostava na altura (a vida tem as suas maneiras de nos abrir os olhos) deixou-me emocionalmente escangalhado. E como na altura estava em plena metamorfose formativa, dedicado a tempo integral à conclusão de um curso universitário, e sem cheta, a coisa foi dura. Durante muito tempo vivi com os 200 euros mensais que a minha mãe premonitoriamente resolveu dar-me quando deixei o trabalho anterior para mudar a agulheta. E o tempo livre que tinha passava-o sozinho, porque não me sentia capaz de enfrentar os outros, mesmo os amigos.

Como não tinha deixado de ser filho do meu pai, ele foi sensível. A reaproximação, porém, não se concretizou.

A tentativa falhada de investimento em imobiliário foi a última vez que me lembro de ver o meu pai a tentar investir seja no que for. Nos anos seguintes, os sucessivos enganos a que se sujeitou (e eu bem que tentei alertar...) foram frutificando, os seus negócios ficaram todos arruinados, a sua bela reforma foi penhorada, levaram-lhe o carro, e ele acabou sem dinheiro para pagar a conta da electricidade. O seu palácio era o seu último reduto, e foi muito triste vê-lo a não querer aceitar a realidade da falência económica, sobretudo quando associada a uma sensação de culpa por excesso de ambição e negligência perante os que lhe queriam bem. Culpa que o seu orgulho, sempre presente por mais ferido que estivesse, o impediu de revelar pública e explicitamente.

A sua saúde degradou-se. O estado do seu palácio e da sua saúde pareciam espelhar-se. Claro está que não foi mera coincidência. Quando enfim decidi que tinha de o ajudar, porque afinal ele era o meu pai, já o sofá de couro preto era verde, já pingava água do tecto e a temperatura interior da casa descia abaixo dos 10ºC no inverno.

Deixei o meu trabalho em Lisboa e mudei-me para o seu decrépito palácio. Antes já havia gasto mais de 52 fins-de-semana a deslocar-me de Lisboa ao Porto para tentar dar conta do recado, a nível de saúde, ao nível emocional e ao nível das telhas e dos tijolos. Já havia gasto férias. Mas percebi que não era suficiente. Mudei-me para lá.

(Abril 2013)

No início, lembro-me de o meu pai ajudar na desmatação do jardim e outras tarefas. Mas isso rapidamente mudou. As suas conversas oscilavam entre os problemas financeiros e a sua relação com a companheira. Pelo seu conteúdo, seriam irreconhecíveis a quem, ao longo da sua vida, aprendeu a ouvir dele os sonhos da poesia mais mirabolante e dos investimentos mais rocambolescos, sempre sarapintados de muita energia optimista. E entre coisas que eu já não consigo lembrar, certo dia deixou cair uma pequena mas muito pesada mesa de granito em cima de um pé. Ficou com uma ferida enorme que levou um ano inteiro a sarar.

(Julho 2013)

Entretanto, ao fim de muitos anos de tensão muito elevada, foi-lhe diagnosticada insuficiência renal. E mais uma data de outras coisas. O pináculo foi o diagnóstico de cancro de pulmão.

Ele não deixou de envolver toda a comida num banho de sal e não deixou de fumar. A misturada da diálise e da quimioterapia deixou-o a ver coisas imaginárias e a perder a capacidade de se locomover, o que vinha mesmo a calhar porque o palácio era construído em altura, com lanços de escadas entre cada duas coisas essenciais.

Eu pedi ajuda aos amigos. Emprestaram-me material para as obras. Emprestaram-me dinheiro para pagar as dívidas do meu pai. Deram-me o seu trabalho no trabalho de recuperação da casa. Eu gastei o meu dinheiro, gastei o dinheiro dos outros, gastei todo o meu tempo, toda a minha força e uma parte dos meus ossos (quem me dera tê-los de volta!) a alternar rapidamente entre conselheiro sentimental, trolha, jardineiro, consultor financeiro, enfermeiro e cozinheiro.

E foi com imensa emoção que finalmente, na primavera de 2015, vi começarem a nascer os frutos de tamanho empenho. Lembro-me quando o meu pai começou a ganhar mobilidade e foi capaz de ir a pé até ao hospital (felizmente a apenas umas centenas de metros de distância). Sentarmo-nos na esplanada do hospital a beber alguma coisa foi tão bom como viajar até à mesa metálica da esplanada do Clube Fluvial Portuense, trinta e cinco anos antes, onde o meu pai nos dava o privilégio de beber a espuma da sua cerveja... sempre a gozar connosco!

A casa tinha acabado de ser pintada, o chão envernizado, o telhado mudado... tudo estava a ir ao sítio. Já tinha conseguido um acordo com uma instituição para irem lá diariamente levar comida ao palácio... E então um edema pulmonar matou-o.

Ao mesmo tempo, o serviço onde hoje me encontro a trabalhar, para o qual tinha concorrido porque sim, e que eu tinha decidido aceitar ou não aceitar em função das condições que me fossem oferecidas, comunicou-me "as condições são as mínimas, deve apresentar-se ao serviço amanhã".

Foi tudo um pouco demasiado.

Hoje, coloquei no IRS os valores da alienação onerosa de bem imóvel que me cabem na partilha: 145 mil euros da venda, 79 mil euros da avaliação, 9 mil euros de encargos. No final, a simulação transitou do direito a receber quinhentos e tal euros para a obrigação de pagar sete mil quinhentos e tal.

Ora, oito mil euros de imposto sobre um rendimento de 57 mil (145-79-9) parece justo. Mas eu não recebi 57 mil euros. Se ao meu pai lhe levaram o carro, só não levaram a casa porque estava cimentada ao chão e ele estava lá dentro. Em vez disso colocaram sobre ela uma hipoteca. E quando isso foi descontado, mais outras dívidas pessoais, mais as minhas próprias dívidas, assumidas para resgatar a casa e a saúde do meu pai, só sobraram 21 mil euros. O imposto, esse, foi pelos 57 que devia ter amealhado, sem contar com os tais 79 mil da avaliação, se fosse filho de um pai à maneira, um pai desses que sabe cuidar da sua prole e deixá-la preparada para vingar na vida, ou seja, para vencer os demais na competição que todos aceitam como natural.

É injusto, mas é a vidinha.

Maravilhoso, no entanto, é perceber que se não tivesse mexido o rabo para 1500 km de distância para fazer render o corpinho a troco de um sítio para dormir e comida na mesa, se em vez disso tivesse permanecido naquela casa até ao momento da sua venda, não teria de pagar agora imposto algum. A cláusula que isenta as mais-valias reinvestidas em habitação própria permanente não se aplica ao meu caso, apesar de estar neste preciso momento a investir, com muito custo, numa habitação própria permanente, uma vez que no momento da venda do palácio ele não era a minha residência oficial.

Não faz mal! Como neste momento pago renda e crédito bancário, a minha ginástica permite-me poupar uns cem euros mensais, pelo que ao fim de cerca de 80 meses já terei recuperado o rombo que o Estado português agora me fornece.

Fornece-me um rombo, para tapar o seu próprio rombo, mas não me fornece uma consulta no dentista quando eu preciso de uma, não me fornece uma ciclovia que seja para circular nesta cidade, não me fornece uma consulta de oftalmologia quando preciso, não me fornece uma ressonância magnética ao ouvido quando preciso, não me fornece um exame holter ao coração quando preciso... Esse Estado, que não me fornece saúde nem educação nem habitação conforme as suas obrigações, estipuladas na lindinha Constituição da República (uma coisinha que fica sempre bem, mesmo que depois, entre os motivos de força maior que vêm de baixo e os motivos de força maior que vêm de fora, não sirva para nada), mas que me fornece um rombo e a alegria de poder contribuir com os meus ossos para o enriquecimento dos que já são mais ricos.

("para onde vai o seu dinheiro?", imagem exibida após a entrega da declaração do IRS)

É a vidinha! Uma rica vidinha!... Que ainda tenho de agradecer ao deus dos cristãos, mesmo que a constituiçãozinha diga que somos laicos, o facto de ter imposto para pagar, porque assim como assim quer dizer que recebi algum, e o facto de poder poupar cem euros por mês, porque assim como assim há muitos que nem eu sei como conseguem sobreviver. Graças a deus que há sempre alguém em pior situação que nós!

Caro diário, se pensas que já espingardei demais, pois então fica sabendo que enquanto houver gente que acredita que os verdadeiros políticos são os políticos, em vez de perceber que os verdadeiros políticos somos nós, espingardar nunca será demais. Para que se impeça que as leis injustas abafem as leis justas, para que se impeça que a economia seja uma maneira de transformar o trabalho dos mais necessitados no luxo dos mais abastados, para que se impeça um estilo de vida que transforma o virtual em mais apetecível que o real, e umas férias longe sempre melhores que umas férias perto.

Haja pachorra para isso!

Tanta quanta a gratidão que guardo por todos os que me ajudaram neste processo: Diana, Ana Isabel, Cláudio, Artur, Ilda, José e Pilar, Manuel, Ricardo, Ricardo, Henrique, Frederico, José e Rita, Rui, Gilberto, Daniel, Gustavo, João, Lídia, Emilio, Elaine, Pedro, Ju, Noémia, Maria João, Bia, Daniela, Margarida, Paulo, Fernando. Uma parte de tudo isto pertence-vos, inclusive aos que já não estão entre nós.