sábado, 22 de agosto de 2020

Progresso no campismo...

Progresso no campismo significa extinção de campismo. Afinal, quem é que quer dormir junto ao chão quando se tem a possibilidade de dormir no vigésimo andar de um hotel?


No centro da imagem o que resta do antigo parque de campismo de Vale da Telha, Aljezur, agora rodeado de casas com piscina. Terei acampado lá pela primeira vez nos finais da década de 80 ou princípios da década de 90, com os meus tios.


Tenho dormido em tendas desde que nasci. E continuo. Claramente estou parado no tempo!...

A maioria das pessoas com quem convivi ao longo da vida e que acampavam, faziam-no sobretudo por ser uma solução barata. Claramente, se tivessem mais dinheiro, não iriam acampar.

Não será de estranhar, então, que à medida que o nível de vida de algumas pessoas foi subindo, a clientela dos parques de campismo foi diminuindo, e em diversos casos isso acabou por conduzir ao encerramento desses parques. Outros parques, muitos, transformaram-se em repositórios de caravanas e grandes tendas equipadas com todos os electrodomésticos, as segundas casas dos que ainda vão a caminho da sonhada casa de férias.

Entretanto, muitos já chegaram a esse estágio da casa de férias que se constrói e mantém para poder lá passar duas semanas em cada ano. Maravilhas do progresso! E não são casas quaisquer!...


O que resta do parque de campismo de Tróia, onde acampei na adolescência.



Entretanto, um pouco mais ao lado, cresceram como cogumelos as casas com piscina.


Um fenómeno que também merece alguma análise é a predominância das piscinas particulares precisamente nas zonas do país onde são menos necessárias, não por causa do clima, mas simplesmente pela proximidade de óptimas zonas de banhos naturais como oceanos, rios e lagos.


Caparica.

Granja.

Lagos.

Moledo.


A construção destas segundas casas com intuitos de recreação é aos meus olhos bastante condenável. Comecemos pelo que menos importa: o dinheiro. Construir e manter uma segunda casa grande, com jardim e piscina, é muito caro. E uma vez que na grande maioria dos casos estas casas ficam desocupadas durante a maior parte do ano, parece-me que faz mais sentido simplesmente alugar uma casa qualquer. E, seguindo essa linha de pensamento, podemos já referir uma segunda desvantagem: as segundas casas obrigam as pessoas a ir sempre para os mesmos locais. As rotinas têm as suas vantagens e desvantagens. Mas se se trata de férias, esse é precisamente o momento que temos disponível para quebrar as rotinas, para vermos coisas diferentes, para nos expormos a novas experiências, para não atrofiarmos, para crescermos.

Mas o que para mim é mais gravoso é o impacto ambiental que estas casas têm. Muitas delas são construídas em zonas preciosas para os outros seres vivos, na transição entre massas de água e zonas mais secas. Além disso, as piscinas particulares implicam um grande esbanjamento de água e uma utilização intensiva de cloro e outras bodegas. O mesmo pode ser dito dos relvados. Depois há toda a energia dispendida na construção em si. Mais a energia das deslocações de centenas de quilómetros entre a casa principal e a secundária. Mais a energia eléctrica para colocar tudo em marcha...

Isto tudo para poder dormir numa cama tão confortável quanto a de casa, para poder tomar um duche tão bom como o de casa, para poder ver televisão tão bem como em casa, para poder ficar isolado do mundo e de todos tão bem como em casa.

Desde a origem, mesmo nos tempos em que a falta de verbas desta malta a obrigava a acampar, ficou por apreender aquilo que é a grande vantagem do campismo: a exposição ao meio. No campismo somos nós os invasores, não são as formigas. No momento em que retiramos o colchão ou que desmontamos a tenda, percebemos como afectamos o solo do local onde dormimos, e todos os seres vivos que o utilizavam. O nosso impacto torna-se evidente quando tomamos banho ou quando lavamos louça. Todo o ruído que fazemos viaja livremente até todos os que nos rodeiam, humanos e não humanos, ao mesmo tempo que podemos ouvir tudo o que se passa à nossa volta. Sentimos a chuva, o calor do sol e o frio da noite. As folhas das árvores entram-nos pela casa adentro e aprendemos a diferenciá-las. Tal como aprendemos a diferenciar e a lidar com os estranhos que nos rodeiam, tornando-os em familiares.


Efeito de apenas uma pernoita sobre o manto de folhas de carvalho negral - Pitões das Júnias, 2007.


Paradoxal, entretanto, é sempre verificar, e não apenas neste contexto, como o comodismo geralmente anda associado ao tédio. Enfim, apenas mais uma marca do dito progresso que eu tanto tento evitar.

quinta-feira, 6 de agosto de 2020

Trazer pessoas para a rua...

Texto enviado recentemente para a associação Campo Aberto, e publicado no seu portal, a propósito da discussão do novo Plano Director Municipal da cidade do Porto, mas que se pode aplicar a qualquer cidade.

Com o advento do automóvel, e através das décadas, as ruas foram sendo transformadas em canais para o transporte de veículos, uma espécie de tubos onde se entra para se sair do outro lado, na casa de alguém ou no shopping. Em consequência as ruas foram progressivamente desprovidas de uma série de outras valências. Os passeios foram estreitados, as árvores removidas e as faixas de circulação multiplicaram-se. As ruas deixaram de ser o ponto de encontro entre as pessoas, o sítio onde podemos conhecer e reconhecer os nossos vizinhos e nós mesmos.

Esta rua durante um mês quase só teve pessoas, zero carros. Resultados incríveis! Em Suwon, Coreia do Sul

É urgente inverter esta tendência!

Algum trabalho tem sido feito nos últimos anos nesse sentido, mas muito incipiente. A dificuldade geralmente prende-se com o conflito entre a mobilidade automóvel e as restantes potenciais utilizações desse espaço público que são as ruas.

Se não existissem automóveis…
Em Sydney, Paris, Londres e Nova Iorque, e muito provavelmente também nas nossas cidades e no Porto, a proporção da área da cidade ocupada pelas ruas é superior a 20 por cento. Se não existissem automóveis, o que se poderia fazer com esse espaço?…

É certo que abandonar o uso dos automóveis, mesmo podendo ser um objectivo desejável, não será fácil ou rapidamente alcançável. Mas é preciso trabalhar nesse sentido, uma vez que os custos do transporte automóvel são simplesmente demasiados: não apenas o problema energético, que não se extingue com o uso de veículos eléctricos, mas também o ruído, a indústria de produção associada, a construção das vias, o aparelhamento com sinais de trânsito, a fiscalização, a segurança de quem conduz, mas sobretudo dos peões e, claro, a ocupação de espaço, quer quando estão em circulação, quer quando estão parados.

A reafectação do espaço público que são as ruas, devolvendo-as às pessoas, não passará contudo apenas pela diminuição do uso dos automóveis.

Para que servem as ruas?
Quando um portuense sai à rua fá-lo como um meio para atingir um fim, e não como um fim em si mesmo. A rua está lá para se levar o cão a passear, mas sobretudo, lá está, como canal por onde se circula para poder chegar ao outro lado.

É preciso aproximar esse «outro lado» da casa de cada um. O shopping deve ser diluído pelas ruas. O parque deve ser diluído pelas ruas. E seria positivo que os amigos pudessem viver mais próximo de nós – não que seja de promover uma reafectação das casas pelas famílias, antes será de promover uma convivência de maior qualidade com os nossos vizinhos.

A rua deve passar a ser o fim em si. Deve ser o parque. Deve ser a loja. Deve ser o café. Deve ser o convívio, o exercício, o descanso, o livro que se lê, que se vê e que se vive.

Nisto, como em tudo o mais, as coisas andam de mãos dadas: na medida em que a rua e o mais próximo se transformar no fim em si, também a necessidade de transportes rápidos e constantes para todo o lado diminui.

Tantas medidas a abordar!
Que medidas políticas podem contribuir nesse sentido? Tantas!… As políticas de penalização do uso de transporte automóvel pessoal são certamente abordadas em inúmeros documentos. Muitos outros abordarão o uso de transportes alternativos, entre os quais os transportes públicos colectivos, os transportes públicos individuais, as bicicletas, as trotinetas, os patins e o que seja.

Haveria que juntar a isso as políticas de reordenamento do espaço das ruas, planeando para o silêncio, integrando o arvoredo, promovendo a instalação de bancos e espaços de convívio, incluíndo espaços de jogos colectivos e zonas preparadas para o dizer, o tocar, o cantar, instalando equipamento desportivo, subsidiando eventos culturais ao ar livre… e, claro está, impedindo a proliferação dos grandes centros comerciais e apoiando, ao invés, o pequeno comércio local.

É urgente trazer pessoas para a rua e, já agora, que não apenas em calções e com máquina fotográfica.