segunda-feira, 21 de dezembro de 2020

Marés...

Um vídeo que há tempos queria fazer sobre o funcionamento das marés. A motivação para isso é a quantidade de explicações foleiras que abundam na Internet. A minha explicação, contudo, está muito longe de perfeita. Seja como for, tinha de o fazer, e está feito. Bom proveito!



segunda-feira, 7 de dezembro de 2020

Insulamento...

 

Até uma idade muito razoável, a palavra isolamento significou para mim o envolvimento de um objecto numa camada protectora de outro material. O objecto deixava de contactar directamente com o exterior porque estava envolvido por uma barreira de impossível ou difícil transposição.

Nessa minha acepção, um grão de milho que se colocasse à margem da pilha dos outros grãos, não estava isolado, pois não havia a tal camada protectora: o grão de milho que estava apartado podia muito facilmente (quem sabe pelos próprios meios!) deslocar-se novamente para junto dos outros grãos.

Às vezes tinha dificuldade em compreender como as outras pessoas utilizavam esse termo... Só bastante mais tarde é que percebi que a raiz do desentendimento estava na minha (de)formação de base. Eu aprendi a palavra isolamento no contexto da electricidade. E, nesse contexto, sempre que alguém falava em isolamento, referia-se à existência da tal camada protectora, em torno de um elemento condutor, que impedia que os electrões passeassem para lá daquilo que pretendíamos. O isolamento não era a condição do condutor, o isolamento era a própria camada protectora!

Por analogia, uma pessoa numa ilha estaria isolada porque rodeada do respectivo isolamento: o mar.

Suspeito que em todos nós a grande maioria das palavras adquire um significado através de um processo mental que é só nosso, de identificação do padrão escondido no meio do caos. O significado de algumas palavras é-nos ensinado directamente por terceiros, ou pela nossa própria consulta de um qualquer dicionário, o que acaba por ir dar ao mesmo (os dicionários não são como as tábuas dos mandamentos caídas dos céus). Mas para todas as outras palavras, e certamente para quase todas as palavras que aprendemos antes de sabermos consultar dicionários, o significado somos nós que lhes atribuímos. Ouvimos a nossa mãe a dizer "vou fechar a porta" e vemos ela a fechar a porta, e logo associamos "fechar" e "porta" a uma e outra coisa.

Quando o nosso pai diz "vou embora", pode ser-nos difícil, no início, entender o que é que significa este "embora". Lembro-me de estar sentado no chão de alcatifa verde do meu quarto, na Rua Campos Monteiro, 48, 1º, 4100 Porto, e a minha mãe, de cabelos longos, orientados por uma banda na cabeça e pendentes nas costas, de vestido sem mangas, a consolar o meu choro intenso, depois de o meu pai ter dito "vou embora". Eu pensei e senti que ele ia embora para sempre!... Ainda me lembro da sensação... eu devia ter uns 3 anos de idade.

Agora, muitos anos depois, quando alguém me diz "vou embora", nem sempre me é completamente claro o que isso significa... às vezes há uma dúvida que persiste.

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Quando vim morar, e supostamente viver, para os Açores, passei a ouvir, volta e meia, a palavra insularidade. Não fui suficientemente empenhado para consultar o dicionário ou para perguntar às pessoas o que isso significaria. Portanto, fui formando um significado próprio para a palavra, com o pouco que me ia chegando.

O que me ia chegando era, de facto, pouco. As pessoas não falam frequentemente de insularidade. Aparentemente a palavra surge mais associada a discursos de análise da sociedade açoriana como um todo, ou de alguma comunidade em particular, ou então em narrativas ficcionais ou textos poéticos.

Oh, a insularidade... oh!...

Portanto, não me tem sido fácil cimentar a minha versão do significado da palavra. Até mais ver, parece-me poder significar duas coisas. Uma é o modo de vida, em geral, das pessoas que vivem nos Açores, salientando os traços que possam distinguir esse modo de vida do das pessoas que vivem noutros territórios: o aceitar o destino, o saber esperar, o não ter grandes expectativas, o misto de medo e adoração do mar e da montanha, a necessidade da crença estruturante, o ouvir as histórias dos que vêm, o sentir saudades dos que partem. Ou então, naquele tom poético, o ter o basalto nas veias e a mesa posta... enfim, palavras que servem mais para me confundir do que elucidar.

O outro significado que considero possível para a palavra insularidade é simplesmente: isolamento. O fecharmo-nos em nós próprios, cá dentro, na medida do possível, por vontade própria ou necessidade.

Esse isolamento das pessoas, todavia, pouco tem a ver com a insularidade na primeira acepção que considerei. Da minha vivência, não me parece que as pessoas vivam mais isoladas, mais fechadas em si próprias, nas ilhas do que noutro qualquer território. De resto, isso do nosso isolamento é algo que é muitíssimo elusivo: não é evidente que as pessoas caladas que moram nas zonas rurais da Estónia, em casas rodeadas de árvores que distam centenas de metros do vizinho mais próximo, estejam mais isoladas que o português que bebe minis e discute futebol diariamente no café da esquina. Pode ser... mas também pode não ser.

Há muitas formas de nos isolarmos. Há até muitas formas de nos isolarmos de nós mesmos, de isolarmos pensamentos e sentimentos, de nos fragmentarmos a nós próprios cá por dentro, curiosamente na esperança de conseguirmos melhor manter os cacos juntos.

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Nesta minha reflexão, que convosco partilho, gostava de abordar especificamente dois tipos de isolamento: o que diz respeito à forma como colectivamente (ainda!) nos organizamos para respondermos às nossas necessidades, desde as mais básicas às menos imediatas; e o que concerne à nossa vida afectiva e emocional. A linha condutora da reflexão é o modo como estes dois tipos de isolamento se interligam e ajudam a construir
sociedades e indivíduos mais frágeis.

Vou chamar ao primeiro tipo de isolamento o isolamento económico. Confesso que eu próprio já começo a ficar farto de estar sempre a falar de economia... No entanto, isso é o reflexo da realidade: as actividades que nós desenvolvemos diariamente para produzir bens e serviços que satisfaçam as nossas necessidades, a forma como nos organizamos e o modo como distribuímos o resultado dessas actividades, ocupa a maior parte da vida da maior parte da população. Não há volta a dar-lhe!

Para explicar o meu conceito de isolamento económico vou recorrer ao exemplo instrumental de uma aldeia que vive isolada do mundo exterior. Nessa aldeia, os aldeãos produzem todos os bens e serviços de que necessitam para sobreviver. Nesse contexto, embora a aldeia como um todo possa considerar-se autónoma, a autonomia de cada pessoa é muito reduzida. Cada aldeão necessita da ajuda dos demais para construir a sua casa, para conseguir alimento, para quase tudo o que é essencial à vida. Para o bem e para o mal, a vida do aldeão está intimamente ligada à vida dos demais.

Nos nossos dias, ao contrário do que se pode pensar, a capacidade das pessoas levarem as suas vidas sozinhas é ainda menor. De facto, enquanto na aldeia que imaginei os aldeãos aprendiam várias técnicas que podiam pôr em prática, mesmo que com dificuldade, para se desenrascarem numa situação de aflição, nos dias que correm as pessoas enchem a cabeça com diplomas universitários mas não são capazes de identificar uma planta selvagem comestível.

No entanto, e para lá disso, há vários outros aspectos que são diferentes na organização económica das nossas vidas nos dias de hoje. Entre eles está o facto de a nossa dependência dos outros ser mediada pelo dinheiro. De acordo com as regras que alguém inventou, quem vende não pode recusar a venda a quem lhe apresente um meio de pagamento válido, como dinheiro. Consequentemente, quem tem dinheiro tem automaticamente acesso aos bens e serviços de que necessita (a menos que, por algum motivo, não consiga contactar com os vendedores).

Isso significa que, nos dias de hoje, e apesar de continuarmos a depender todos uns dos outros para a nossa sobrevivência, nós não precisamos sequer de conhecer esses outros, e ainda menos precisamos da sua simpatia ou colaboração no que quer que seja. Basta que tenhamos dinheiro!

O dinheiro confere poder. E como sempre fomos muito dados ao poder e muito atreitos à necessidade de sermos simpáticos com os outros, fomos lentamente optando pelo poder do dinheiro e pelo desligamento, ou isolamento, dos outros.

Ao mesmo tempo que a economia de troca directa da aldeia autosuficiente se foi transformando na economia monetarizada da aldeia global, também a ciência se foi transformando de uma actividade de procura do conhecimento para uma actividade de invenção de novos penduricalhos.

A evolução tecnológica disponibilizou-nos, ao alcance de um qualquer dedo, uma barreira protectora de todo o tipo de electrodomésticos. Finalmente, dotou-os da capacidade de transmissão e recepção de informação via ondas electromagnéticas. Finalmente, tornou-se possível receber notícias e comunicar com quem queremos, quando queremos, com o mínimo esforço.

As autoestradas da comunicação atalharam o nosso caminho rumo às nossas próprias opiniões. Sem a necessidade de aturar opiniões com as quais não concordamos, encontramos muito rapidamente hordas de gente com quem partilhar o gosto por fotografias de praias exóticas, o gosto pelo clube de futebol que emprega os jogadores mais bem pagos, o gosto pelo ódio aos que são contra as vacinas.

Comunidade deixou de designar o conjunto dos aldeãos que tratavam das suas necessidades, e passou a designar o conjunto de pessoas que partilham, a uma distância de segurança, o gosto por um aspecto isolado do todo que é a experiência da vida.

A isto tudo chamamos liberdade: em bom português, pegamos em nós e zarpamos para onde quer que seja, em qualquer momento, sem termos de dar satisfações a ninguém! Onde quer que nos encontremos, sabemos que o dinheiro e a tecnologia nos irão garantir o acesso a tudo e mais alguma coisa e que as comunidades em que estamos momentaneamente inscritos estarão lá para validar as nossas opções. E assim sentimo-nos livres!

Esquecemo-nos, claro, que o meio pelo qual conseguimos obter dinheiro é precisamente aquilo que, desde sempre, nos retira a liberdade. Esquecemo-nos que a relação que temos com a mágica tecnologia é muito mais de dependência do que de simples usufruto. Esquecemo-nos que a liberdade que temos de descartar as comunidades em que estamos inscritos é a mesma liberdade com que nos descartarão assim que deixarem de nos poder utilizar para seu proveito.

O que fizemos, em boa verdade, não foi necessariamente tornarmo-nos mais livres. O que fizemos foi trocar uma prisão por outra. Ou, se quisermos, trocámos um tipo de liberdade por outro tipo de liberdade.

Isto pode não ser evidente, e pode até parecer falso. No entanto, os factos estão aí para os analisarmos, se assim quisermos.

Lembro-me agora, e apenas a título de exemplo, da passagem que o Yuval faz no início do seu livro "Sapiens", a propósito da revolução agrícola. Segundo ele, não fomos nós que domesticámos o trigo, foi o trigo que nos domesticou. E o balanço, na sua opinião, foi claramente desfavorável em termos de liberdade: antes da revolução agrícola as pessoas eram mais livres.

Outro exemplo que agora me surge: a questão da propriedade da terra e de tudo o que nela se constrói. Enquanto antes a maioria do terreno não era propriedade de ninguém, e o terreno da aldeia era propriedade colectiva de toda a aldeia, hoje quase todo o terreno está tomado. E, no entanto, continuamos a acreditar que somos mais livres agora do que éramos no passado.

Um exemplo final: a máquina de vending que nos diz "é livre quem vive de acordo com as suas opções". Sobre isso já tive oportunidade de escrever no passado. Essa frase é claramente uma falácia. No cadafalso, imediatamente antes da execução, é concedido ao condenado um último desejo. Será ele livre?... Na ignorância de cada um, e em cada eleição, joga-se o jogo do partido da esquerda contra o partido da direita. Serão as pessoas assim tão livres?... Mesmo vivendo conforme as suas opções, a liberdade é uma coisa um pouco mais complexa.

Dê por onde der, mais livres ou menos, a verdade é que acreditamos que somos mais livres por não precisarmos de sorrir para ninguém e mesmo assim conseguirmos ter o que comer ao fim de cada dia.

Mas porque é que não queremos sorrir para os outros?... Claramente isso é um esforço que muitos tentam dominar para poderem obter dos outros o que desejam, mesmo que o seu sorriso nunca deixe de ser amarelo, e bastante diferente de um genuíno. Mas porque é que sorrir é um esforço?...

Sorrir é aqui apenas uma analogia para a construção de pontes através das barreiras que nos separam dos outros. Que barreiras são essas?...

Claramente os outros não têm os mesmos gostos que nós. É claro que existem muitas pessoas que partilham connosco o gosto da manteiga na torrada, o gosto da "música de restaurante", o gosto por roupa brilhante, o gosto por golfe, o gosto por livros do Tolkien ou por filmes do Manoel de Oliveira. Só que cada pessoa só partilha connosco um desses gostos! Por isso mesmo somos adeptos das comunidades "online", onde em cada uma apenas se partilha um gosto. De outro modo, sabemos que iremos correr o risco de, a meio do pequeno almoço com torradas e manteiga, a outra pessoa tentar convencer-nos que afinal os filmes do Tarantino é que são bons!

Alguém disse uma vez que nascemos todos iguais, a educação é que nos torna diferentes. Muito haveria a dizer acerca desta frase e acerca da educação a que se refere. No entanto, a ideia geral transparece: é ao longo da vida que vamos adquirindo os traços que acabam por nos separar dos outros.

Os gostos dos outros, para além de serem o inferno, são na verdade a manifestação de coisas mais profundas como a mundivisão, isto é, o modo como entendemos o mundo e nos entendemos a nós mesmos enquanto parte desse mundo.

Os aldeãos do antigamente teriam provavelmente mundivisões muito próximas. O mundo em que vivemos hoje parece-nos, e é, mais complexo. As nossas capacidades e disponibilidades não nos permitem abarcar toda a sua complexidade. Especializamo-nos. E no processo, apesar de adquirirmos mais conhecimento que os aldeãos, tornamo-nos relativamente mais ignorantes. E quando a nossa própria ignorância se torna difícil de digerir, começamos a simplificar. Aderimos então às estratégias de simplificação do caos: aceitamos nomes sonantes como sinais de autoridade nas mais diversas áreas do conhecimento e das artes, acreditamos nas opiniões do senhor engravatado, aderimos ao clube dos triangulares, etc. Segmentamos tudo, o mundo e as ideias, e escolhemos os segmentos onde nos sentimos mais confortáveis.

A menos que consciente e colectivamente façamos algo para o inverter, o processo parece-me inexorável: a complexificação do mundo obriga-nos à sua segmentação, a segmentação do mundo, das pessoas e das suas cabeças leva à complexificação do mundo.

Em perigo iminente de afogamento na complexidade do mundo que nós próprios ajudamos a criar, fragmentamos tudo, multiplicamos as mundivisões, e socorremo-nos das tecnologias e do dinheiro para embarcar nessa aventura solitária de tentar encontrar outros fragmentos que sejam compatíveis com os nossos, utilizando quem nos apareça pelo caminho.

Deixamos de aturar os outros. Sentimos que não precisamos, e não devemos, aturar os outros. Entoamos hinos à liberdade, que confundimos com a nossa versão pessoal de hedonismo bacôco. E atrofiamos os músculos que nos permitem dialogar, que nos permitem expressar o que pensamos e o que sentimos, que nos permitem entender as razões subjacentes aos comportamentos e discursos alheios. Ficamos rudes, agrestes, agressivos até. Perdemos a pachorra. Queremos a nossa casa só para nós, deixamos de acreditar na educação das crianças, indagamos se seremos os únicos a ser assim...

E, no entanto, ficamos felizes quando temos gente em casa que nos faz sentir menos sós, quando ensinamos algo a uma criança genuinamente curiosa, quando lemos num livro uma descrição de um personagem que nos parece o nosso sósia. Não apenas ficamos felizes, mas aquecemos o coração, numa tradução desse adjectivo inglês que me parece muito feliz: heartwarming.

O isolamento afectivo congela-nos. Coração negro... de basalto duro.

Podemos até alegar que nos preferimos assim. Contudo, para lá dessa questão subjectiva, objectivamente o isolamento corrói-nos a capacidade de pensar e de agir colectivamente na resolução dos problemas que também são colectivos.

Entre a objectividade da satisfação das necessidades económicas e a subjectividade do querermos ou não partilhar a nossa existência com outros, fica essa área de contornos mais difusos que se espraia pela sociologia, pela psicologia, pela biologia, e que se traduz no cuidarmos uns dos outros, e na procura de entendimento próprio e alheio.

Termino afirmando que também eu necessito de estar sozinho. Os outros são cansativos, sem dúvida. Mas tal como nos cansamos no exercício físico e não temos dúvidas de que é para o nosso bem, seria bom que os períodos em que estamos sozinhos fossem o descanso do exercício que fazemos quando estamos com os outros, na certeza de que é não apenas para o nosso bem, mas para o bem de todos.

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Outro texto relacionado: link.

sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

O que todos querem...

Anda por aí a correr o Youtube uma publicidade onde o inglês perfeito do Mourinho diz assim:

Successful manager, smart investor, nice guy. Who do you want to be?

Dá vontade de dizer, num inglês igualmente perfeito:

I rest my case.

...

Quando um trabalhador esmifrado do Jeff Bezos (ou outro da mesma laia) em vez de lutar com os seus colegas e toda a comunidade para não ser esmifrado, prefere antes olhar pelo seu umbigo e nutrir a esperança de um dia poder vir a ser como ele, não nos devemos surpreender. Houve um dia qualquer, lá no passado longínquo desse trabalhador, em que alguém lhe perguntou: gestor de sucesso, investidor esperto ou tipo bonzinho, quem é que queres ser?... E quando ele respondeu que queria ser bom e fazer o bem, todos fizeram troça dele. A começar pelos pais.