quinta-feira, 23 de maio de 2019

Seres humanos - bolas de neve de rabo na boca...

Porque é que somos como somos? Porque é que o mundo é como é?...

Grandes questões, às quais talvez seja importante tentar responder.

Se o quisermos fazer, por onde poderemos começar? Que ferramentas poderemos utilizar? Como saberemos se estamos a ir na direcção correcta? Como saberemos se existe ou não uma direcção correcta?...

Todos os dias o Sol nasce dum lado e põe-se do outro, na maioria das latitudes do nosso planeta. Se for assim mesmo todos os dias, não haverá grande necessidade de entender com profundidade a razão subjacente. Todo o tipo de explicações terão provavelmente o mesmo nível de utilidade prática. No entanto, se num determinado momento a meio do dia o Sol ficar negro e o céu escuro, isso já irá requerer uma explicação mais aprofundada. Porque isso acontece de forma irregular. Porque isso levanta a suspeita de que o Sol pode não estar sempre lá. Porque isso tem repercussões graves para a vida das pessoas.

No processo de entendimento do mundo, o estabelecimento de regras, de normas, de leis, de funcionamentos considerados normais, é fundamental. As pedras, quando atiradas para dentro de água, vão ao fundo. Este é um exemplo de uma regra sobre como o mundo funciona, que não explica nada muito detalhadamente, apenas nos diz que as pedras afundam. E, no entanto, nem sempre esta regra é verdadeira. A alguém que me diga "as pedras afundam" eu posso retorquir "mas ontem eu atirei uma pedra para a água e ela não afundou, logo a tua regra não é verdadeira". E, se assim for, e se acreditarmos que não é boa ideia manter regras que não são verdadeiras, rejeitaremos a regra de que "as pedras afundam".

Mas será isso uma boa ideia?... Claramente não. É melhor saber que as pedras afundam, mesmo falhando de vez em quando, do que não fazer ideia sobre o comportamento das pedras dentro de água. E é assim que as pessoas se habituaram a aceitar que as regras possuem excepções. "Não há regra sem excepção" é uma máxima muito propalada que, claro está, também pode admitir excepções, porque podem existir regras sem excepções.

O estabelecimento de leis, se assim lhes quisermos chamar, é fundamental para tentarmos começar a organizar nas nossas cabeças o caos aparente que é o mundo à nossa volta. Mesmo que essas leis não sejam perfeitas e em muitos casos não se verifiquem.

O passo seguinte é o da competição entre leis que pretendem explicar os mesmos fenómenos. E o seguinte é o da tentativa de aferição de quais as melhores leis. É necessário construir formas de testar a lei "todas as pedras afundam" e a lei "todas as pedras pretas, sem buracos, afundam em água doce" para escolher a que melhor descreve o mundo. Desse jogo constante entre a dúvida, a hipótese, o teste, a explicação, é que surge um melhor conhecimento do mundo.

Neste contexto, o que é que as pessoas pretendem dizer quando afirmam "não devemos generalizar"? Estarão a tentar dizer que as generalizações são más?...

Certamente que não. Sem generalizações, nada saberíamos do mundo. Dizer que o Sol nasce todos os dias dum lado e põe-se do outro é uma generalização. E é certamente melhor fazer essa generalização do que viver na incerteza sobre se o Sol vai nascer amanhã ou onde.

As pessoas afirmam que não devemos generalizar em contextos onde se pretende efectuar uma "má" generalização. Mas, como é que podemos saber de antemão se uma generalização é boa ou má, sem antes a testarmos?... Em rigor, não podemos saber.

O problema é que, em rigor, não podemos saber nada com certeza. Todo o conhecimento que temos se afirma através de generalizações que podem ou não admitir excepções e podem ou não ser suplantadas no futuro por generalizações melhores. Não podemos medir nada com um rigor absoluto, e não podemos saber nada com um rigor absoluto. O que não é o mesmo que afirmar que não existem regras perfeitas. Elas podem existir!... Nós é que podemos nunca chegar a saber quais são!

Tudo o que sabemos admite, portanto, um grau de incerteza. Vivemos no jogo do mais e do menos provável. E, dentro desse jogo, há uma outra regra que nos diz que se um universo é composto de muitos elementos e nós alvitramos uma regra sobre esses elementos depois de termos observado apenas um ou dois deles, corremos um sério risco de que a nossa regra seja má, isto é, que não se aguente assim que for colocada à prova. A isso chama-se por vezes "tomar o todo pela parte". E é um caso onde a máxima "não devemos generalizar" se pode aplicar.

Mais em geral, "não devemos generalizar" não é uma afirmação contra as generalizações, mas sim uma afirmação contra as más generalizações. O importante não é deixar de tentar encontrar regras gerais. Isso é importante e só assim o conhecimento pode progredir. O importante é encontrar formas de generalizar apenas quando se possui algum fundamento sólido para o fazer.

Quando isto que acabamos de ver se transporta para a realidade dos seres humanos, toda a situação adquire contornos mais críticos. Os seres humanos são diversos e muitíssimo complexos. As suas decisões não são facilmente previsíveis.

Neste contexto, como é que podemos aumentar fundamentadamente o nosso conhecimento acerca do ser humano enquanto indivíduo e no seu conjunto, em sociedade?... Bom, não há volta a dar-lhe, precisamos à mesma de generalizar, isto é, de encontrar regras, leis, ou o que lhes quisermos chamar. E, novamente, as leis irão admitir excepções, e umas serão melhores que outras, e algumas generalizações serão abusivas e outras não.

Claramente a probabilidade de nos enganarmos é bastante maior quando analisamos o ser humano individualmente ou em conjunto do que quando analisamos pedras atiradas para um meio líquido. Isso é assim mesmo... há que aceitá-lo, e seguir em frente.

Em todo o caso, é melhor a regra "pessoas com mais dinheiro compram mais gasolina" do que não fazer ideia sobre a relação entre o dinheiro das pessoas e a gasolina consumida, mesmo que em muitos casos essa regra não se aplique.

Na resposta à questão "porque é que somos como somos", nós temos a tentação, sobretudo se não tivermos dedicado muito tempo a pensar seriamente nestas questões, de atribuir à nossa vontade própria a causa de muitos comportamentos. É bom sentirmo-nos livres! É bom sentirmos que ninguém manda em nós!

Porém, dizer que a causa de comermos muitas cenouras é a nossa vontade é o mesmo que não dizer nada, a menos que saibamos relacionar a origem dessa nossa vontade com alguma outra coisa existente em nós próprios ou no mundo à nossa volta. Se tivermos dúvidas acerca disto, pensemos na utilidade prática da regra "com igual acesso a cenouras, as pessoas que mais as consomem são aquelas que mais vontade têm de o fazer". Saber ou não esta regra não nos irá trazer vantagem alguma na compreensão do mundo que nos rodeia.

De onde é que nos vem a vontade?... Como é que se forma?...

Nós temos vontade de vestir calças de ganga. Mas numa viagem a outro país distante, poderemos constatar que lá quase ninguém veste calças de ganga, apesar de estarem disponíveis nas lojas. E talvez isso nos faça pensar "porque razão as pessoas deste país não têm vontade de vestir calças de ganga, quando as pessoas do meu país têm?". Claramente perceberemos que existe um padrão, e que, portanto, a vontade das pessoas de vestir ou não essa roupa não varia de forma completamente aleatória. E poderemos (e deveremos, se quisermos conhecer melhor tudo o que há para conhecer) ficar curiosos acerca das causas que alteram as vontades das pessoas.

Poderemos chegar à conclusão que a causa da nossa vontade de comer cenouras é o termos sido confrontados com isso desde muito pequenos, através da acção dos nossos pais. Poderemos constatar que isso também ocorre no caso doutras pessoas. E a certo momento, quando julgarmos que temos observações suficientes, talvez possamos arriscar a generalização "pessoas que foram introduzidas pelos pais ao consumo de cenouras enquanto muito jovens, consomem mais cenouras enquanto adultas".

Se fizermos essa generalização, poderemos também afirmar que não é a vontade própria das pessoas que as faz comer cenouras, mas sim as suas experiências passadas. Poderemos até afirmar que as pessoas não têm vontade própria, antes respondem aos condicionamentos do meio. No entanto, em ambos os casos, não se está verdadeiramente a dizer que as pessoas não têm vontade, está-se apenas a dizer que a vontade que as pessoas têm não surgiu do nada, antes foi o resultado de outros factores externos às pessoas.

Isso será o mesmo que dizer que as pessoas não são tão livres como pensam que são. Têm vontade, sim, mas muitas vezes essa vontade não é exclusivamente sua, antes é o resultado da sua interacção presente e passada com o meio.

Essa é uma conclusão necessária para quem começa a tentar encontrar resposta para questões sobre o ser humano, sobretudo quando analisado em conjunto. E é uma conclusão que pode deixar algumas pessoas desconfortáveis. Afinal, descobrem, o seu gosto musical não depende apenas de si...

Mas, uma vez aqui chegados, levanta-se a questão de saber: se o meio que envolve as pessoas tem influência nas suas crenças, nos seus gostos, nos seus comportamentos... o que é que determina o meio que envolve as pessoas?...

A sociedade é composta pelas pessoas que nela vivem, pelas relações que estabelecem entre si e o mundo físico em que vivem, e pelos seus artefactos, aí incluídos as crenças colectivas, as línguas, o conhecimento partilhado, etc. Tudo isso depende dessas pessoas e dos condicionamentos do seu meio físico. As pessoas de Montemor-o-Velho saberão plantar arroz e as pessoas da Peneda saberão fazer a transumância, e não o inverso. E, no entanto, as pessoas de Montemor-o-Velho terão liberdade suficiente para aprender a conduzir o gado, se assim o quiserem... Embora, apesar disso, a regra continue a poder aplicar-se. Às vezes, parece que há razões mais profundas, forças que temos dificuldade em explicar, a justificar aquilo que fazemos.

E é do entendimento destas questões que vêm máximas como "a sociedade faz o homem e o homem faz a sociedade" ou "o homem faz-se a si próprio" ou "a sociedade reproduz-se" ou "o operário faz a coisa e a coisa faz o operário":



Nós somos muito menos livres do que julgamos. Por estes e por outros motivos. Somos determinados pelo meio bem mais do que aquilo que acreditamos.

Ao mesmo tempo, a sociedade depende de nós bem mais do que aquilo que julgamos. Todos já ouvimos a máxima "não vais mudar o mundo". Infelizmente, esta máxima (e suas variantes) é quase sempre proferida para nos fazer acreditar que não vale a pena tentar fazer as coisas doutro modo, sobretudo dum modo que consideramos melhor.

Mas, se nós não mudamos o mundo, como é que o mundo muda?...

A verdade é que são as pessoas que mudam o mundo. E, dentro dessa verdade, a verdade é que nós também mudamos o mundo. Simplesmente, e em geral (sempre as generalizações!), não mudamos o mundo a uma escala macroscópica, de uma forma que seja imediatamente visível por alguém que viva noutro país, por exemplo.

O mundo gira muito lentamente... Às vezes ouvimos dizer que o mundo roda a uma velocidade de 1600 km por hora!... E isso poderá ser verdade, para quem está numa região perto do equador, e relativamente a um determinado sistema referencial... mas também é verdade que se estivessemos na Lua, a olhar para a Terra, à espera que ela desse uma volta... iríamos ter de esperar um dia inteiro!... Imaginem um disco a rodar num gira-discos à velocidade de uma rotação por dia... Isso é, em boa verdade, muito lento.

E as mudanças profundas e visíveis na sociedade também se processam muito lentamente.

As dunas de areia podem ser enormes. Por maiores que sejam, elas deslocam-se. E por maiores que sejam, são sempre formadas por pequenos grãos de areia, sem os quais não existiriam.

Cada um de nós tem o seu papel. Deixa-se ir com os outros, faz força mais para um lado ou para o outro... e vai contribuindo, à sua escala, para a mudança global. Porque essa mudança global existe, sempre existiu e continua a existir, e não a podemos atribuir a mais nada senão a nós mesmos: seres humanos.



Toda esta reflexão me acompanha diariamente, como quem sabe quem comigo conversa, mas a sua tradução neste texto foi incitada pelo vídeo que vem em baixo. Nesse vídeo, de um canal que eu costumo seguir, o autor expõe a sua tese sobre como os vídeos do Youtube são mais ou menos vistos, tese que justifica, nas suas palavras, a opção pela criação e divulgação futura de vídeos sobre temas mais apelativos, e sobretudo com títulos e imagens mais apelativos, mesmo que ligeiramente enganadores, e mesmo que fugindo aos assuntos que o autor considera mais relevantes...

Por outras palavras, o autor desse vídeo parece que acabou de descobrir a pólvora: o sensacionalismo compensa!! Uau!!... Eu podia ter-lhe dito isso há muito tempo!!...

No entanto, e é aqui que queria chegar com todo o palavreado anterior, a grande questão é esta: se praticamente toda a gente está disposta a condenar o sensacionalismo como uma coisa má, porque é que ele existe em tão grande escala e é tão compensador?...

As coisas não são como são, porque sim, e já está. Nós não somos como somos, porque sim, e já está. Isso é o mesmo que fazer tábua rasa de todo o conhecimento que a humanidade foi construindo acerca de si própria e do mundo, e o mesmo que substituir um cérebro cheio de potencial por um sistema nervoso básico dedicado ao sexo e à comida.

Entendermos porque é que somos como somos e porque é que o mundo é como é, é essencial para sermos capazes de construir um mundo com menos notícias de merda, vídeos de merda, livros de merda, conversas de merda e toda a outra merda que por aí há. Enquanto fizermos como a avestruz e dedicarmos os nossos neurónios apenas a justificar porque é que não fizemos o que devíamos ter feito, enquanto continuarmos a acreditar e a propalar máximas do tipo "tu não vais mudar o mundo", enquanto continuarmos a aceitar que somos como somos e que o mundo é como é e não há nada a fazer, tudo continuará a seguir o mesmo caminho que tem vindo a seguir.

E, quer queiramos entedê-lo, quer não, o caminho que o ser humano tem vindo a seguir é um caminho que, à moda do Admirável Mundo Novo do Huxley, transforma o prazer imediato no fim último da existência e coloca o nosso sistema límbico no controlo da nave espacial.

Somos todos, cada um à sua escala, responsáveis. Queiramos ou não.



Adenda: do que acabei de dizer podemos tirar várias ilações. Uma delas é de que tudo está ligado entre si, mesmo que as ligações não sejam evidentes. Expressões como "não tens nada com isso", "cada um é que sabe de si" ou equivalentes não são correctas. Tudo, em maior ou menor grau, diz respeito a todos.

Isso não implica que não deva haver lugar para a privacidade. Deve sim, e esse aliás é um aspecto que muitos têm dificuldade em respeitar. Mas é também preciso ter a noção que, em grande medida, nós devemos quem somos aos outros e que, em alguma medida, a vida dos outros é condicionada pela nossa.

Muito se pode aprender com isto... Uma outra ilação, por exemplo, é a da humildade. Como dizia o outro, somos anões aos ombros de gigantes.