segunda-feira, 31 de dezembro de 2018

Land of confusion...

Ainda acerca do Natal... e não só... esta música já velhinha que andou na minha cabeça:



E aqui fica a letra:

I must've dreamed a thousand dreams
Been haunted by a million screams
But i can hear the marching feet
They're moving into the street.

Now did you read the news today?
They say the danger's gone away
But I can see the fire's still alight
There burning into the night.

There's too many men
Too many people
Making too many problems
And not much love to go round

Can't you see
This is a land of confusion.

This is the world we live in
And these are the hands we're given
Use them and let's start trying
To make it a place worth living in.

Ooh superman where are you now?
When everything's gone wrong somehow
The men of steel, the men of power
Are losing control by the hour.

This is the time
This is the place
So we look for the future
But there's not much love to go round

Tell me why, this is a land of confusion.

This is the world we live in
And these are the hands we're given
Use them and let's start trying
To make it a place worth living in.

I remember long ago -
Ooh when the sun was shining
Yes and the stars were bright
All through the night
And the sound of your laughter
As i held you tight
So long ago -

I won't be coming home tonight
My generation will put it right
We're not just making promises
That we know, we'll never keep.

Too many men
There's too many people
Making too many problems
And not much love to go round

Can't you see
This is a land of confusion.

Now this is the world we live in
And these are the hands we're given
Use them and let's start trying
To make it a place worth fighting for.

This is the world we live in
And these are the names we're given
Stand up and let's start showing
Just where our lives are going to.

E ainda outra versão:

domingo, 30 de dezembro de 2018

O equilíbrio...

Era uma vez uma família. Havia uma criança, um idoso e três adultos em idade activa, dos quais um trabalhava muito pouco, outro trabalhava alguma coisa e o terceiro trabalhava muito. O que trabalhava muito pouco era, curiosamente, o que mais gastava, mesmo em artigos de luxo, se é que nos podemos dar ao luxo de classificar alguma coisa como artigos de luxo, uma vez que estamos a falar das necessidades das pessoas, não é verdade?

Apesar disso, tudo corria razoavelmente bem, até que, sabe-se lá porquê, uma maioria de elementos decidiu contratar um gestor para gerir o orçamento familiar. Em meia dúzia de anos o gestor remodelou o apartamento, comprou um televisor xpto e uma data de outras coisas, e a família adorou. Só depois descobriram que o gestor tinha endividado a família junto de um banco onde trabalhava um amigo, para comprar coisas nas lojas de outros amigos.

Quando a família descobriu isso, despediu o gestor e contratou outro. O novo gestor prometeu que iria equilibrar as contas da família. Para isso, e uma vez que a família estava fortemente endividada, incentivou os que trabalhavam a trabalhar ainda mais, garantindo-lhes que era importantíssimo gerarem mais riqueza. O que trabalhava muito pouco continuou a trabalhar muito pouco. Curiosamente, o gestor continuou a permitir que ele consumisse artigos de luxo. Mais até do que no passado! Entretanto, para equilibrar as contas, o gestor passou a "racionalizar" recursos: os duches de água quente passaram a ser tomados em conjunto, foram vendidos todos os computadores e televisores excepto um de cada e criou-se um horário para uma justa utilização por todos (o que trabalhava muito pouco tinha o seu tablet...), também se venderam os automóveis e os trajectos passaram a ser desenhados por um programa de computador que optimiza percursos... Além disso, o gestor sentiu-se na necessidade de cortar os gastos na alimentação, passando a dieta a ser principalmente arroz e batata, na manutenção da casa, tapando-se os remendos com o que houver à mão, na electricidade, aquecendo-se todos no inverno à custa de calor humano e camisolas.

Finalmente, na mesma lógica de poupança de recursos, racionalização, aumento da eficiência, protecção ambiental e tudo mais, aliada à responsabilidade de quem cumpre os seus compromissos, conseguiu que a família se mudasse para um T0 de esferovite. Foi então que o gestor proclamou, orgulhoso, que tinha conseguido equilibrar o orçamento familiar! E toda a família aplaudiu!

Entretanto, o antigo gestor, o banqueiro e os fornecedores dos penduricalhos continuam a desfrutar dos rendimentos provenientes dos juros dos empréstimos que a família continua a pagar... mas a família está feliz, porque tem o orçamento equilibrado.

segunda-feira, 24 de dezembro de 2018

Mensagem de Natal 2018...





O que é uma mensagem de Natal?... Para que serve?...

Um desejo de feliz Natal, sem mais, que mensagem contém? Para que serve?... Do meu ponto de vista contém e serve para bem pouco. Uma mensagem como "sê feliz" dirigida a alguém não significa em si mesma praticamente nada. Até um inimigo nos pode enviar, com ou sem ironia, semelhante mensagem. E ela não nos diz nada acerca do modo como é suposto sermos felizes, ou da importância que isso tem ou não tem para o emissor da mensagem... Para nós, essa mensagem não nos serve, porque não nos orienta, não nos ensina, não nos acrescenta nada de novo que possa ser útil no nosso quotidiano.

Um "feliz Natal" maquinal, ditado pela agenda, tal como um "feliz aniversário", pode ser apenas uma resposta automática àquilo que esperam de nós... uma maneira fácil de nos libertarmos de alguma responsabilidade que não queremos assumir e de caminharmos para fora de cena com o nosso bom nome intacto.

A minha mensagem de Natal será bem diferente de um "feliz Natal". No entanto, também não estou certo que tenha grande utilidade. Para que possa sequer ter a intenção de proferir uma mensagem no Natal é necessário que possua um juízo crítico interior que separe aos meus olhos o que é preferível do que é preterível, é necessário que tenha uma vontade interior que o mundo e todos nós caminhemos mais de uma forma ou numa direcção do que noutra.

Uma mensagem de Natal será, portanto, numa versão mais branda, a manifestação dessa vontade. E, para que seja útil, será também minimamente instrumental, no sentido de que virá carregada de alguma coisa que possa servir a quem a lê. Mas... servir para quê?...

Tudo o mais que eu possa dizer para além de um vazio e inócuo "feliz Natal" será sempre uma ingerência na esfera privada dos outros que, advogam alguns, e cada vez mais, não me diz respeito. Bom... é falso que a esfera privada dos outros não me diga respeito. É falso que a esfera privada de cada um diga respeito apenas a si próprio e não diga respeito a todo o mundo. E isso é facilmente demonstrável. Mas para lá disso, a verdade é que alguma coisa que eu possa dizer acerca das qualidades da felicidade que se deseja no Natal, acerca do modo preferível de a alcançar, acerca do que nos impede de a alcançar, etc. , etc.... qualquer coisa que eu possa dizer acerca disso, será uma ingerência na vida dos outros.

Ninguém me perguntou ou pediu nada, e portanto mandam as regras da boa educação (quais?) que eu deseje um vazio "feliz Natal" a todos e prossiga com a minha vidinha.

Mas eu não professo essa escola da boa educação. A minha boa educação diz-me que nós vivemos em comunidade, quer queiramos ou sejamos capazes de o discernir ou não, e que os assuntos da comunidade devem ser abordados pela comunidade. A minha boa educação diz-me que todos nos devemos interessar pelo bem-estar de todos. E tal como uma boa mãe (ou pai) não pondera sequer que a educação do filho (ou filha) seja feita sem "ingerências na sua esfera privada", a minha boa educação impõe-me que ultrapasse a inocência e até às vezes a hipocrisia das mensagens de Natal para pelo menos deixar algo mais do que simples vazio... Talvez, como diziam outras pessoas, seja mesmo necessário desassossegar.

Há um disco que eu ouvia na minha infância, e que ainda hoje volta e meia ouço, com músicas de Natal. Nesse disco, chamado "os operários do Natal", a mensagem de Natal é uma ode ao trabalho que as pessoas têm para colocar de pé essa celebração, considerando esse trabalho como uma entrega, uma dádiva de si para com os outros. A mensagem de Natal é que a coisa mais valiosa é a amizade e o amor que as pessoas podem ter umas pelas outras. E que o Natal é o renascimento da esperança na construção de um mundo cheio de amor e amizade. O disco abre com o seguinte texto:

"Natal quer dizer nascimento, nascer.
É tradição chamar-se Natal ao dia 25 de Dezembro, porque nesse dia nasceu Jesus Cristo.
Para uns é o filho de Deus. Para outros é apenas um homem.
Mas de qualquer maneira, um homem bom.
Por isso, quando nasce um menino, é sempre Natal!
Quando tu nasceste também foi Natal, e foram os teus pais que o fizeram.
Tu és o fruto do amor do teu pai pela tua mãe.
Foi ela que durante meses e meses carregou contigo na barriga.
Depois, vieram as dores que teve para que tu nascesses.
Os teus pais foram os primeiros operários do teu Natal."

No refrão da primeira música canta-se:
"Hoje é Natal
e amanhã
vai ser Natal outra vez.
Porque afinal
quando é Natal
a gente nasce outra vez."

Esta é, portanto, uma mensagem que claramente apela ao renascimento. Quem festeja o solstício de Inverno, que ocorre todos os anos próximo da data do Natal, festeja no fundo a mesma coisa: o dia mais curto do ano, a partir do qual os dias passam a crescer, a partir do qual um novo ciclo de vida renasce, uma nova primavera, uma nova oportunidade. A igreja católica celebra o nascimento de Jesus Cristo, e isso é também uma celebração do renascimento da fé, da esperança num mundo mais cheio de amor.

A mensagem é, portanto, razoavelmente uníssona.

Mas... porque é que a mensagem é necessária?... Obviamente esta mensagem é necessária, tal como a vinda de Deus à Terra, porque de algum modo os seres humanos se deixaram emaranhar nos cabelos da vida e perderam o rumo, porque alguns de nós perderam a esperança, porque, efectivamente, o mundo está muito longe de ser dominado pela amizade.

Não sou católico. No entanto não deixo de ser capaz, quer naquilo que me chega da igreja católica, quer no resto, de distinguir o que considero ser bom ou mau. Talvez ao contrário de muitos católicos que, quer na sua própria religião, quer em todo o mundo, fazem questão de não distinguir nada. E, se assim for, fazem mal.

Portanto, vou socorrer-me das próprias palavras do Papa Francisco, na sua audiência geral de 19 de Dezembro de 2018 (https://www.youtube.com/watch?v=yfoBkrJLizQ&feature=youtu.be, a partir do minuto 15), e do Bispo de Angra João Lavrador, na sua mensagem de Natal e no programa radiofónico "Igreja Açores" transmitido pela Antena 1 Açores no dia 16 de Dezembro.

Diz-nos o Papa Francisco que o Natal é a humildade sobre a arrogância, a simplicidade sobre a abundância, o silêncio sobre o barulho. O Natal é preferir a voz silenciosa de Deus aos rumores do consumismo.

Numa meta-análise, e logo à partida, eu tenho de acrescentar que o Papa está a apontar o dedo, está a acusar, nomeadamente está a acusar-nos a todos, em geral, de arrogância, de abundância, de barulho, de consumismo. E, digo eu, faz ele muito bem. Os exemplos da humildade, da simplicidade e do silêncio sempre existiram... e nunca foram suficientes.

O Papa convida-nos a estar em silêncio diante do presépio.

De entre todas as coisas que se podem fazer no Natal, o Papa convida-nos a estar em silêncio diante do presépio.

Acrescenta:
Se o Natal for somente uma bela festa tradicional onde nós estamos no centro e não Ele, será uma ocasião perdida.

E, no entanto, no Natal faz-se geralmente o oposto daquilo que Jesus quer. E culpamos a nossa febre nas coisas que enchem os nosso dias de velocidade...

Francisco diz-nos que será Natal se dermos espaço ao silêncio, se nos entregarmos aos ideais de um mundo melhor, se estivermos próximos de quem está sozinho, se sairmos do nosso conforto para nos entregarmos com dedicação, se encontrarmos a luz mesmo na maior escuridão.

Alternativamente, não será Natal se procurarmos as luzes desse mundo, se nos enchermos de presentes, almoços e jantares, mas não ajudarmos pelo menos um pobre que se assemelhe a Deus, porque no Natal, Deus veio pobre.

A verdadeira surpresa do Natal não devia ser descobrir o objecto que está dentro de uma caixa, mas descobrir este outro caminho. E acrescenta o Papa que esta poderá parecer uma surpresa incómoda, mas é aquilo que agrada a Deus. Ou, do ponto de vista de um não crente, é aquilo que é necessário para podermos construir um mundo melhor.

O discurso do Bispo João Lavrador pode, se quisermos, ser apelidado de político e de radical. Novamente, eu acrescento que ainda bem!

Diz-nos o Bispo que a quadra natalícia apela naturalmente à nossa família, à nossa terra de origem, às nossas relações de amizade, mas que isso não é suficiente. Para além disso é necessária uma generosidade que integre todas as pessoas na nossa sociedade.

E eu gostava de realçar este ponto. Porque um apelo genérico ao amor é muito pouco. É perfeitamente normal, e expectável, que um pai (ou mãe) ame a sua filha (ou filho). Mas isso não é suficiente. Esse é, no meu próprio linguajar, um tipo de amor egoísta, quase um amor próprio, um amor por nós próprios, por aquilo que nos pertence ou nos é chegado. Isso é um amor fácil. E não é suficiente.

João Lavrador refere um sentido de esperança, que deve existir sempre, de que mesmo no seio da nossa sociedade mais carcomida, surjam rebentos de renovação, rebentos que um dia poderão frutificar num mundo melhor. Diz-nos que é necessário inclusivamente um sentido estético para que sejamos capazes de identificar esses rebentos de esperança.

E, conforme já antes referi, se é necessário referir a esperança, é porque existem situações condenáveis que devemos combater. João Lavrador refere de imediato a pobreza e pergunta: quem está a fugir à responsabilidade? E imediatamente avança duas respostas possíveis: a própria igreja e os governantes.

Pergunta: como é possível andarmos há dois séculos (desde a revolução francesa, suponho) a apregoar a fraternidade, como é possível a própria igreja andar há dois milénios a apregoar a fraternidade, e continuarmos com a vergonha da pobreza que temos hoje em dia?

João Lavrador não nos dá a resposta fácil, nomeadamente a que refere a ajuda imediata às necessidades mais básicas dos pobres. Antes começa por referir que é necessário um empenhamento de todos, e avança para aquilo que é essencial: é o próprio que está numa situação de pobreza que tem de se sentir capaz de cuidar de si. E se assim não é, é porque lhe faltam os meios, os recursos, a orientação, é porque o seu caminho está vedado, porque nós, através da nossa ganância, lhe fechámos o caminho.

Precisamos de comunidades atentas, orientadoras, que se preocupem verdadeiramente (e João Lavrador acentua este "verdadeiramente"). A responsabilidade das comunidades é em abrir caminhos, prover recursos, orientar, para que cada um seja capaz de alcançar uma vida melhor por si próprio.

Refere: "o assistencialismo às vezes faz com que as pessoas descansem". Se uma pessoa não tem horizontes, isto é, se não vislumbra qualquer possibilidade de ser autónomo, então naturalmente o rendimento mínimo ou um cabaz de produtos alimentares é tudo o que essa pessoa deseja.

João Lavrador fala na solidariedade, fala no acesso à habitação, no acesso à saúde. Também fala na educação, mas, e este é um ponto importante, não refere a formação dos jovens para o mercado de trabalho. Antes refere a formação de todos, novos e velhos, para a humanidade. A educação enquanto veículo capaz de nos transportar para um patamar mais alto de humanidade.

Também refere a justiça. Afirma que a nossa sociedade é implacável, uma sociedade que condena, mas que não dá às pessoas a possibilidade de se redimirem, de se reabilitarem, de se reintegrarem.

Eu acrescentaria que além disso é necessário permitir que as pessoas construam realidade diferentes, é necessário permitir que as pessoas mudem a realidade que temos, e não apenas que se integrem na realidade que outros construíram para elas. Mas em vez disso há muitas pessoas com visões maniqueístas da sociedade, identificando pessoas boas e pessoas más, e catalogando-as sem possibilidade de recurso da sua condenação sumária.

O progresso, termo supostamente utilizado por João Lavrador para se referir ao aumento da capacidade económica e tecnológica das sociedades, não é acompanhado por valores que salvaguardem os direitos das pessoas e dos povos. É no domínio económico de umas nações sobre as outras que vamos encontrar as fontes da guerra.

João Lavrador é radical, no sentido de que nos incita a procurar a raiz dos problemas. Afirma que não basta ficar à margem dos problemas a assistir e a encontrar bodes expiatórios. Se há indignação, é necessário descobrir a sua verdadeira causa e procurar saber como intervir aí, na raiz. A resposta não pode ser criar muros... É necessário indagar como é que estamos a ser solidários uns com os outros.

Insiste que não podemos excluir as pessoas, temos de as integrar, todas elas. E refere o caso da emigração, afirmando que é um direito humano. Que temos de encontrar modos de as pessoas poderem emigrar de forma condigna, mesmo que esse fenómeno nunca possa ser muito digno, uma vez que é a falta de possibilidades nas comunidades de origem que motiva a emigração.

Estes são desafios, diz João Lavrador, para todos nós. Porque nós é que dirigimos a política. Uma boa política é protagonizada por todos nós, todos nós somos intervenientes, pelo voto, pela reivindicação justa, pela participação activa e quotidiana.

Eu, que não sou católico, faço minhas estas palavras de João Lavrador e do Papa Francisco. Que bom será se o Natal puder ser uma oportunidade para olharmos para toda a sociedade à nossa volta, e para nós próprios, com outros olhos, com esperanças renovadas na possibilidade de construção de um mundo melhor. E se soubermos que isso não pode ser deixado aos outros, sejam eles quem forem, isso é da nossa responsabilidade.

Que bom será se no Natal pudermos sair mais à rua, se nos fecharmos menos no nosso lar, na nossa casa, na nossa família, na nossa comida, nas nossas prendas... e se em vez disso pudermos sair mais à rua, para o espaço público, onde os encontros com as outras pessoas são possíveis. Se pudermos olhar para além dos horizontes do nosso pequeno mundo e virmos um mundo mais vasto, e as relações que nele se estabelecem.

Talvez possamos entender, por exemplo, que os excessos de comida, de dispêndios de energia eléctrica, de papel e plástico de embrulhos, de prendas, de viagens de avião e de carro... isso tudo... se pudermos entender que isso tudo não é muito bom para a nossa casa comum. Se pudermos entender que a nossa felicidade não depende verdadeiramente disso, mas sim de tantas outras coisas difíceis de colocar numa caixa: o sermos solidários, o sermos justos, o amarmos e sermos amados.

Esta é a minha mensagem de Natal, para todos os dias em que houver vontade de renascer.

sexta-feira, 21 de dezembro de 2018

Ainda sobre as notícias falsas...

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Frustra-me isto que se passa agora sobre as notícias falsas. Em primeiro lugar, surpreende-me a ingenuidade daqueles a quem aparentemente nunca ocorreu que as notícias que lhes chegam possam ser falsas. De repente mostram-se chocados... como se isto fosse uma realidade de agora... como se notícias falsas não fossem uma tradição milenar. Surpreende-me a ingenuidade de quem lê notícias acreditando que pode acreditar, que não necessita de duvidar, de indagar, de investigar... porque delegou isso nalguma outra pessoa ou instituição que considera idónea, com base sabe-se lá em quê. E se me surpreende... é porque certamente eu próprio também fui ingénuo, acreditando que as pessoas tinham presente que tudo o que é noticiado deve ser triado pelo nosso juízo crítico bem alerta. Que estupidez minha acreditar nisso!... Pois se as pessoas acreditam no que lêem nos livros apenas porque está escrito nos livros!... 

Surpreende-me esta ingenuidade de se acreditar que as notícias ou são integralmente falsas ou são integralmente verdadeiras, como se a realidade não estivesse muitas das vezes algures pelo meio. Como na notícia de outro dia, que em primeira mão indicava 4 mortos, logo a seguir 3 e finalmente apenas 2 mortos... embora este seja apenas, e claramente, um caso anedótico. 

Surpreende-me aquilo que me parece ser uma crença na malevolência de quem produz notícias falsas, sem reparar que aqui, como ali nas outras notícias todas, a motivação é a mesma e chama-se dinheiro. 

Mas, em segundo lugar, e mais importante do que isto, entristece-me aquilo que me parece continuar a ser uma cegueira em relação ao modo como os canais mediáticos produzem e reproduzem modos de pensar (ou não pensar) e consequentemente modos de agir (ou não agir) e sentir (ou não sentir).

Parece-me bem que as pessoas se indignem e insurjam contra a produção deliberada de notícias falsas, independentemente das minhas surpresas todas que já mencionei. Mas o que deveras me frustra é perceber o modo como as pessoas aparentemente acreditam (conscientemente?) que tudo está bem, desde que não se produzam notícias deliberadamente falsas. 

Tudo estará bem, por exemplo, se metade (em peso) do jornal impresso for constituído por opiniões. Apesar de opiniões não serem factos nem notícias. Tudo estará bem se cada notícia for seguida de uma opinião ou até de um debate de opiniões. Tudo estará bem se a opinião for incorporada na própria notícia. Tudo estará bem se o público em geral for incorporando no seu pensamento (conscientemente?) a equivalência entre factos e opiniões... Dois mais dois é igual a quatro, afirmo. Isso é a tua opinião, alguém contesta. 

Tudo estará bem se se continuar a publicar mentiras por lapso, por negligência, por omissão de conteúdo relevante... desde que a seguir às garrafais parangonas se publiquem também minúsculos desmentidos. 

Tudo estará bem se todos os jornais, todas as rádios e todas as televisões forem beber as suas notícias às mesmas fontes. Tudo estará bem se as notícias forem todas transmitidas com claros enviesamentos para determinados pontos de vista sobre cada assunto. Tudo estará bem se uma série de assuntos relevantes para as vidas das pessoas continuarem a ser omitidos ou secundarizados pela notícia de que o clube de futebol de cima venceu ao clube de futebol de baixo. Tudo estará bem se a primeira metade do (tele)jornal é constituída por alinhamentos de notícias delineados de acordo com interesses que existem mas que não são expressos. Tudo estará bem se continuarmos a divulgar notícias verdadeiras dos casos mais sensacionais do homem que mordeu o cão. 

Quando um presidente de uma associação de empresários fala para os microfones e as câmaras, regozijando-se pela atribuição de verbas do Orçamento de Estado, explicando que isso terá um impacto muito bom na economia e na criação de postos de trabalho, o espectador é incitado a acreditar que isso é bom para todos e é bom para si também, ainda bem que o governo está a canalizar verbas para aquilo que verdadeiramente interessa, oxalá seja desta que o sobrinho João consegue um trabalho decente, com descontos para a segurança social... O espectador comum não é incitado a reflectir sobre a origem das verbas que compõem as receitas do Orçamento de Estado, não tem presente que essas mesmas empresas têm benefícios fiscais, enquanto os trabalhadores têm agravamentos fiscais em todo o tipo de impostos que não apenas no IRS, não é incitado a reflectir sobre a qualidade dos trabalhos que irão ser gerados, e muito menos sobre a apropriação do valor gerado por cada hora trabalhada nesses novos postos, não é de modo algum levado a entender que o que é bom para a economia não é necessariamente bom para todos, e que operações deste tipo resultam de conluios entre o poder político e o poder económico, e são efectivamente equivalentes a transferências de dinheiro de quem tem menos para quem tem mais. O tempo de antena foi, como sempre, para o senhor engravatado, nada é explicado, tudo segue ao sabor da corrente do pensamento dominante, e toda a gente acredita que isto é que é isenção e sentido de dever dos jornalistas, a bem do esclarecimento da população... 

Tudo estará bem se os jornalistas continuarem a ser, como sempre foram, meros trabalhadores, sujeitos à lógica concorrencial, dentro das instituições onde trabalham e fora delas, pressionados para a conquista de audiências. Tudo estará bem se as notícias continuarem a ser aquilo que são actualmente: um imenso espectáculo de diversões (acerca disso, uma sugestão de leitura: "how to watch tv news"). 

E as pessoas, aparentemente, continuarão a acreditar que é inócuo levarem com a notícia A ou a notícia B, desde que nenhuma delas seja uma "notícia falsa". 

Eu, muito ao contrário deste modo de pensar, sinto que esta vaga de "notícias falsas" pode já ter tido a grande vantagem de fazer com que algumas pessoas abram o olho... Mas sinceramente acho que já não sou tão ingénuo.

quarta-feira, 19 de dezembro de 2018

Que tempos são estes?...

Dois poemas para sentir muito e pensar muito, que me foram trazidos pela Antena2 nesta rubrica "o som que os versos fazem ao abrir":
https://www.rtp.pt/play/p3076/o-som-que-os-versos-fazem-ao-abrir



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Que tempos são estes - 1991

Há um lugar entre duas filas de árvores
onde a erva cresce monte acima
e a velha estrada revolucionária se quebra em sombras
perto de uma casa-abrigo abandonada pelos perseguidos
que desapareceram nessas sombras.

Fui até lá
apanhar cogumelos na borda do terror, mas não te enganes
isto não é um poema russo,
nem é um lugar qualquer, é aqui
o nosso país cada vez mais perto da sua verdade e do seu terror
as suas formas próprias de fazer pessoas desaparecer.

Não te direi onde é este lugar,
a malha escura dos bosques
abrigando uma linha de luz despercebida
encruzilhadas percorridas por fantasmas, o paraíso dos musgos;
já sei quem o vai querer vender, comprar, fazer desaparecer.

Não te digo onde fica, então
porque te digo eu seja o que for?
Porque tu ainda escutas,
porque em tempos como estes
ter-te aí a escutar, é necessário
falar sobre as árvores.


Adrienne Rich

(trad. Ana Luisa Amaral)


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Aos que virão a nascer - 1939


1

É verdade, vivo em tempo de trevas!
É insensata toda a palavra ingénua. Uma testa lisa
revela insensibilidade. Os que riem,
riem porque ainda não receberam
a terrível notícia.

Que tempos são estes, em que
uma conversa sobre árvores é quase um crime,
porque traz em si um silêncio sobre tanta monstruosidade?
Aquele ali, tranquilo a atravessar a rua,
não estará já disponível para os amigos
em apuros?

É verdade: ainda ganho o meu sustento.
Mas acreditem: é puro acaso. Nada
do que eu faço me dá o direito de comer bem.
Por acaso fui poupado (quando a sorte me faltar, estou perdido.)
Dizem-me: Come e bebe! Agradece por teres o que tens!
Mas como posso eu comer e beber quando
roubo ao faminto o que como e
o meu copo de água falta a quem morre de sede?
E apesar disso eu como e bebo.

Também eu gostava de ter sabedoria.
Nos velhos livros está escrito o que é ser sábio:
retirar-se das querelas do mundo e passar
este breve tempo sem medo.
E também viver sem violência,
pagar o mal com o bem,
não realizar os desejos, mas esquecê-los.
Ser sábio é isto.
E eu nada sei fazer!
É verdade, vivo em tempo de trevas!

2

Cheguei às cidades nos tempos da desordem
quando aí grassava a fome.
Vim viver com os homens nos tempos da revolta
e com eles me revoltei.
E assim passou o tempo
que na terra me foi dado.

Comi o meu pão entre as batalhas
deitei-me a dormir entre os assassinos,
dei-me ao amor sem cuidados
e olhei a natureza sem paciência.
E assim passou o tempo
que na terra me foi dado.

No meu tempo as ruas iam dar ao pântano.
A língua traiu-me ao carniceiro.
Pouco podia fazer. Mas os senhores do mundo
sem mim estavam mais seguros, esperava eu.
E assim passou o tempo
Que na terra me foi dado.

As forças eram poucas. A meta
estava muito longe,
claramente visível, mas nem por isso
ao meu alcance.
E assim passou o tempo
Que na terra me foi dado.

3

Vós, que surgireis do dilúvio
em que nós nos afundámos,
quando falardes das nossas fraquezas
lembrai-vos
também do tempo de trevas
a que escapastes.

Pois nós, mudando mais vezes de país que de sapatos, atravessámos
as guerras de classes, desesperados
ao ver só injustiça e não revolta.

E afinal sabemos:
também o ódio contra a baixeza
desfigura as feições.
Também a cólera contra a injustiça
torna a voz rouca. Ah, nós
que queríamos desbravar o terreno para a amabilidade,
não soubemos afinal ser amáveis.

Mas vós, quando chegar a hora
de o homem ajudar o homem,
lembrai-vos de nós com indulgência.

Bertolt Brecht

(trad. João Barreto)

sábado, 10 de novembro de 2018

Fake news?...

Tão fácil que é dizer "notícias falsas" em português...


Agora parece que está na moda. Não sabemos se a moda, a expressão, pegará ou não... já se verá. Talvez daqui a uns anos apareça uma entrada "feiqueniuz" no dicionário.

Eu não sei de onde veio isto. Sei que não é português. E tenho a impressão que há bem pouco tempo não havia cá disto. Só notícias falsas. Essas, as notícias falsas, andam cá desde a origem da humanidade. Foram sendo propaladas dos modos possíveis, consoante a época. Os livros serviram para feiqueniuz, o código morse, a rádio, a televisão... tudo serviu para feiqueniuz.

Há tratados e tratados escritos desde há muito tempo sobre notícias falsas. Mas parece que agora mesmo, há coisa de meses, algumas cabeças brilhantes resolveram dar relevo à coisa, num processo que acabou por se transformar, afinal, num óptimo exemplo de uma verdade que só não é evidente para quem anda mesmo a dormir: que as empresas que produzem e difundem as notícias têm um poder enorme sobre aquilo que pensamos e o modo como o pensamos.

Chocam-se agora as pessoas que haja um político que diz que há um determinado número de objectos quando o número é outro, ou que qualifica algo como sendo bom quando é mau, ou que existe quando não existe, ou vice-versa, ou outra combinação qualquer.

Não se chocaram tanto, aparentemente, quando lhes mostraram A e ocultaram B, porque eles passaram a conhecer A e nunca chegaram a conhecer B. Não se chocaram tanto quando lhes disseram que era A quando afinal era B, porque afinal A está de acordo com todos os A anteriores e eles não estavam à espera de B. E quando alguém lhes disse "mas isso não é A! é B!" não acreditaram, porque isso não era do senso comum.

Tanto não se chocaram que foram comendo, década após década, a papinha toda. Comeram a papinha toda sobre o sistema em que estavam inseridos como sendo algo que emana directamente de Deus. Comeram a papinha toda sobre Deus. Comeram a papinha toda sobre a ausência de alternativas e sobre o ter de ser. Comeram a papinha toda sobre um mundo muitíssimo perigoso e assustador, onde a melhor defesa é o ataque.

Desde há uns anos, aqui em Portugal, que as pessoas comeram a papinha toda acerca da dívida pública. Agora pagam felizes. Não fazem ideia o que é o euro, porque nem sequer sabem o que é o dinheiro... a sério que não sabem!... mesmo que estejam sempre a trabalhar para ele... não fazem ideia o que é o euro, mas comeram a papinha toda acerca da extrema necessidade de fazer parte do clube.

E por aí foram, comendo versões das coisas, acreditando que viam a luz... E tantas versões levaram, e tantos fazedores de opinião logo a seguir às notícias, e tantos debates a seguir aos fazedores de opinião, e tanto pluralismo e diversidade de opinião, porque tudo é opinião, e tantas diversões no entretanto para desopilar até ao próximo noticiário... levaram com tanto paleio em redes sociais, tanta opinião de opinião de opinião, tantos livros escritos a papaguear, tantas páginas na Internet, blogues, gurus e workshops, tanta ideia, tanta ideia e tanto paleio... que tudo agora para eles é nada mais do que uma amálgama de qualquer coisa sem grande adesão a seja o que for...

Antigamente havia uma lista do que não se podia dizer. Mas depois desta super-abundância de versões, passou a haver listas para tudo que ninguém consulta, tudo se pode dizer, e nada importa verdadeiramente... porque ademais a opinião da minha vizinha acerca da medicina que verdadeiramente resulta é tão válida como a opinião do médico lá do hospital... e isto de opiniões cada um tem a sua, e temos todos é que ter muito respeitinho, porque todos temos direito à nossa opinião.

E neste contexto, é natural que qualquer notícia que se queira destacar tem de fazer um esforço um pouco maior. É uma simples questão de competição pela nossa atenção por entre as resmas de parvalheiras diárias que sempre nos vão chegando.

É assim como uma droga à qual se vai criando habituação e cuja dose vai aumentando para manter os efeitos...

Agora chamam-se feiqueniuz. Aqui, deste lado do oceano, as pessoas ficam chocadas. Mas continuam a não parar para pensar um pouco acerca daquilo que julgam que sabem sobre as guerras mundiais, sobre a nossa história, sobre o nosso sistema económico.

A gente adormecida agora diverte-se com as histórias que lhes são dadas acerca de outras histórias que alguém inventa. E o mundo vai rodando...

Parangona no Diário de Notícias, a título exemplificativo, refere "processo legislativo sobre mecanismos de combate à desinformação na Internet".

A sério?...

Então vão mandar para a cadeia alguém que diga que tenho as unhas pintadas de vermelho, e vão continuar a publicar alegremente as notícias verdadeiras acerca das minhas unhas?

Porque a verdadeira informação é saber o nome dos ministros, é saber para onde o presidente da república tem viajado ultimamente, é saber, como a última notícia que ouvi na rádio desta manhã, que um australiano foi apunhalado até à morte numa rua de Melbourne.

Isso sim, são notícias verdadeiras de que precisamos para ficarmos bem informados! Haja pachorra!...

domingo, 14 de outubro de 2018

Não é o teu beijo...


(the kiss of the sphinx - Franz von Pieces)



não é o teu beijo

são todas as crenças que nele ponho
que quero pôr
mesmo sabendo
que não sei
se saboreio o amor

ou as intensas memórias do sonho
que há tanto tempo sonho
e naquilo que em ti vejo
eu insisto em sobrepor

awf, Angra, 3 de Junho de 2017

quarta-feira, 10 de outubro de 2018

Porque é que as pessoas com gripe não devem ir aos hospitais?



Qualquer pessoa responderá alegre e afirmativamente à questão "acha que é bom aumentar a produtividade?". Logo a seguir responderá afirmativamente e com ainda mais alegria à questão "quer ter mais férias?". Talvez se perguntarmos à pessoa como é que se mede a produtividade a sua alegria comece a diminuir um pouco... E este é um método simples para detectar a presença de ideologias nas cabeças das pessoas, que passam despercebidas aos respectivos hospedeiros.

Aumentar a produtividade é uma batalha sem fim que resulta em mais serviços e produtos (às vezes nem sequer de melhor qualidade) e piores pessoas.

Imaginemos que eu consigo fazer o trabalho de que fui incumbido em 8 horas. Imaginemos que desenvolvo e aplico métodos que me permitem efectuar o mesmo trabalho em 4 horas. O que é que acontece às 4 horas restantes?... Se eu for um trabalhador por conta de outrem (ou um falso recibo verde) a trabalhar no sistema nacional de saúde a resposta é muito simples: as restantes 4 horas serão passadas a produzir mais (e não sabemos se melhor). Isso permite-me ganhar mais dinheiro? Não. Permite-me ter mais tempo livre? Não. Isso faz os meus colegas mais felizes? Não. Isso poderia fazer os utentes do serviço ficar mais felizes... por exemplo através de uma redução dos tempos de espera para consultas. Mas a administração dos hospitais é, por motivos que estão muito longe do acaso, dominada por especialistas em finanças, a mando de gente que aparentemente tem no dinheiro o fim último da sua existência. E portanto, se um trabalhador conseguir reduzir o tempo de execução de um trabalho para metade, o que acontece é que a administração irá rapidamente definir isso mesmo como padrão, irá exigir o mesmo comportamento a todos os trabalhadores, e rapidamente irá arranjar maneira de reduzir o pessoal para metade, fazendo o mesmo trabalho que originalmente, mas gastando metade do dinheiro. Tcharan!

Qual é então o incentivo que alguém que trabalha por conta de outrem tem em aumentar a sua produtividade?... Mas as pessoas são parvas?... Sim, são. Seria parvo não o admitir! Mas são menos parvas quando o assunto em causa mexe no seu bolso...

De qualquer modo, só alguém muito desatento é que ainda não percebeu que os serviços públicos que podem dar lucro quando explorados por privados, todos eles, estão a ser convertidos ao longo de vários anos em serviços mínimos: algo que não mate os pobres, porque afinal são precisos "recursos humanos", e que não nos deixe muito envergonhados nas estatísticas (e nesse aspecto ajuda que os outros países sigam trajectórias semelhantes...), mas que por um lado não exija muitos impostos e por outro deixe a porta aberta ao negócio de quem se pode meter nessas andanças.

E para entender porque é que isto é assim, é preciso abrir os olhos, ao ponto de identificar ideologias em cabeça própria, o que é muito difícil, é preciso abandonar um pouco de ingenuidade, e é preciso aprender um pouco acerca de assuntos um pouco chatos.

Quem se contenta com a ideia simples de que "não há dinheiro" não vai entender nada do que eu vou escrever...

Se acreditarmos que efectivamente não há dinheiro, então acreditamos que o governo, coitadinho, está a fazer o que pode, que as administrações hospitalares estão a "racionalizar" o mais que podem, que os trabalhadores devem ter amor à camisola e dar o litro em prol de tudo o que não tem a ver com eles (em prol dos utentes, das estatísticas do serviço de saúde, da pátria, da família, de Deus), que os utentes devem fazer tudo o que está ao seu alcance, seja lá o que isso for...

Uma coisa que se entende que os utentes patriotas e co-responsáveis na árdua tarefa de pagar a dívida pública (e que ainda não perceberam que ela não é para ser paga, porque é uma maravilhosa galinha de ovos de ouro) devem fazer é passar a ser especialista em auto-diagnóstico. De preferência, os utentes devem tratar-se sozinhos e não necessitar sequer de ir aos hospitais. Os utentes devem compreender que os hospitais funcionam muito melhor sem eles e devem colaborar para não pôr lá os pés!

Mas que raio de país é este onde o ministério da saúde age como um ministério da doença, e em vez de promover a saúde, limita-se a aviar enfermos?

Talvez pudessem fazer o mesmo nas escolas!... É que a wikipedia tem lá tudo, e além disso já se sabe, as más companhias... a ignorância apega-se!... Mais vale as escolas funcionarem só com os pobrezinhos que precisam mesmo de aprender a apertar parafusos para conseguirem um emprego no estaleiro do próximo arranha-céus-com-mil-andares. Os que querem mesmo aprender, já se sabe... que com o conhecimento e a formação e a educação não se brinca... portanto nem que custe mil euros por mês... o melhor é ir para o colégio privado. As escolas públicas especializar-se-iam então nos casos da mais aberrante ignorância, e o ministério da educação passaria a chamar-se ministério da ignorância.

E à semelhança dessa nova invenção que é o internamento de doentes nas suas próprias casas (para não entupirem os corredores dos hospitais), também as escolas funcionariam como dispensadores de curtas sessões de esclarecimento de dúvidas, sendo os estudantes encaminhados para estudar em casa. Ah, e claro que iriam pagar taxas inibidoras... ou moderadoras, para garantir que as escolas, tal como os hospitais, ganham o máximo e gastam o mínimo a aturar chatos que vão lá só para saber qual é o diâmetro da Via Láctea ou para saber que é a resposta ao paradoxo de Zenão.



Bom... deixando a ironia, e passando um pouco para o sério, porque a questão é muito séria mesmo.

Este modelo de gestão do serviço nacional de saúde pode chatear muitos trabalhadores, que podem e devem manifestar o seu descontentamento (porque afinal o dinheiro existe... é só preciso descobrir onde), mas tem consequências muito mais graves do que isso: trata mal os utentes. Trata-os mal, ao ponto de os matar precocemente. E isso não é tema para se brincar.

Sim... é claro que num contexto onde é necessário dar mais atenção aos que estão entre a vida e a morte, é preferível que os que têm gripe não chateiem, mesmo que eles próprios, uma vez por outra, também morram. Este é o pensamento da miséria... É mesmo miserável.

Mas o serviço de saúde deve ser um serviço de saúde, e não um serviço de doença. O serviço de saúde deve existir para dar saúde às pessoas, e não apenas para tratar das suas maleitas mais graves. E, para quem já se esqueceu de algumas relações de causa-efeito fundamentais, muitos dos problemas mais graves começam com problemas mais pequenos. Por exemplo, com problemas suficientemente pequenos para serem menosprezados por quem os atende nos hospitais... Mais taxa moderadora, menos taxa moderadora, mais espera, menos fila, com senha ou com telefonema, exame e relatório, sim senhor doutor, não senhora doutora... o tempo corre, e a saúde vai-se... até a mental.

Ninguém nasce ensinado. E convém, num serviço nacional de seja o que for, que os respectivos funcionários cumpram o seu dever de difusão de informação. Se alguém souber o que é a diabetes, deverá também saber como é difícil fazer com que um diabético entenda o que deve alterar no seu modo de vida. E quem lida com velhotes sabe como é difícil simplesmente fazer com que tomem os medicamentos certos às horas certas... Portanto não é razoável esperar que uma campanha com meia dúzia de cartazes ou publicidades fugazes na rádio ou na televisão produza efeitos miraculosos. E portanto, como me parece razoavelmente evidente, é da competência do serviço nacional de saúde apoiar as pessoas na aquisição do conhecimento e na mudança do comportamento face a um estilo de vida mais saudável. Tal como é da competência do serviço nacional de educação apoiar as pessoas na aquisição do conhecimento e na mudança de comportamento face a um estilo de vida mais consciente, onde as pessoas possam ser mais autónomas na aquisição e no julgamento crítico do conhecimento.

Dando um exemplo simples: consultas de dentistas deviam ser ministradas regular e gratuitamente a toda a gente. E é claro que isso devia acontecer mesmo que as pessoas não apresentassem quaisquer sintomas de doença! Esse é, obviamente, o objectivo a alcançar! Só desse modo se conseguem detectar problemas antes que eles se tornem mais graves.

Mas, mas, mas...

O "mas" usual tem a ver com dinheiro. Mas quem é que paga a esses dentistas todos?... A resposta é sempre a mesma: quem tem dinheiro. Era assim que devia ser. E se assim não é, talvez fosse bom começar a investigar porque é que assim não é. Porque é que o Estado nunca tem dinheiro para nada, mas eu nunca vi tantos carrões e tantos hospitais privados à minha volta. E compreender e actuar sobre isso é urgente e é importante. Portanto eu devia começar a acabar as conversas logo que me colocam um "mas" desse tipo, afirmando liminarmente: instrui-te!

O "mas" seguinte poderá ser algo como: pronto, devia ser diferente... mas não é. E neste momento não há dinheiro e portanto como é que se faz?

Mas a verdade é que há gente a passar fome e o problema da pobreza não pode ser resolvido de hoje para amanhã, portanto como é que se faz?...

Volta-se à ironia! Constrói-se um mega banco alimentar, cujos trabalhadores voluntários e crentes num mundo melhor baseado na caridade, se regozijam todos os anos com o aumento da sua actividade, sem que a direcção sequer perca algum tempo a pensar como é que há-de acabar com a fábrica que cria pobres.

Haja pachorra!...

É claro que se encontrar um homem a morrer à fome e tiver comida eu vou partilhar com ele a minha comida! Mas também é claro que vou tentar saber as razões pelas quais ele não tem comida, e actuar sobre elas para impedir que amanhã tudo volte à estaca zero.

Será que perdemos totalmente este discernimento que me parece rudimentar?...

Se o Estado não tem dinheiro, é claro que temos que nos amanhar com o que há, mas devia ser igualmente clara a necessidade de despender algum do nosso tempo a tentar entender porque é que o Estado não tem dinheiro, e a implementar medidas para que amanhã isso não volte a acontecer!

Entretanto os doentes contagiosos deviam ser fechados num bunker... Pois... Talvez fuzilados e cremados de seguida, não?... Poupavam-se tantos recursos!...

É claro que não!

É claro que os hospitais deviam ser centros de saúde, onde qualquer pessoa, a qualquer instante devia poder recorrer para poder ser ainda mais saudável. E é claro que os doentes contagiosos devem ter um tratamento adequado para minorar o risco de contágio a outras pessoas. E é claro que isso requer pessoas, requer equipamentos, requer tempo e requer dinheiro.

E é claro que só gente que se preocupa mais a diminuir o número de trabalhadores nos hospitais, não investir em equipamentos, consumir todo o tempo dos outros e poupar todo o dinheiro próprio é que poderia fomentar campanhas que pretendem criar no cidadão a ideia de que responsabilidade e dever cívico implicam ir ao hospital só se for mesmo algo de muito grave!

sábado, 28 de abril de 2018

Era uma vez o homem...

O último episódio desta série, produzida em 1978. Na altura a minha família não possuía televisor, pelo que a série me chegou através das revistas que o meu pai ia comprando aos domingos, em Pereiró, Porto. Lembro-me de ler/ver as revistas quando ainda não conseguia sequer interpretar as datas que iam aparecendo aqui e ali...

Este último episódio tem agora 40 anos de idade. A quantidade de coisas que se passaram desde então!... E no entanto, enquanto o ser humano continuar a ser um cro-magnon, este episódio irá continuar actual.


segunda-feira, 16 de abril de 2018

O cão Dom Pantaleão e o outro cão...



Uma música para crianças, de José Barata Moura, que ouvia em criança e me fazia sentir e pensar... As crianças também pensam e também sentem. E apesar da tristeza do outro cão, eu nunca duvidei do caminho que queria seguir. Porquê?...

terça-feira, 3 de abril de 2018

Capitalismo - um sistema neutro?...




O capitalismo não é mau em si mesmo. Ou será?...

Capitalismo é um nome, mais um acabado em "ismo", mas que para variar se refere a algo bastante concreto: o sistema económico em que muitos de nós gastam as suas vidas. Um sistema económico pode ser entendido como um modo que as pessoas têm de se organizar para exercer as actividades que permitem suprir as suas necessidades, e tudo o que está directamente relacionado com isso, incluindo o modo como os recursos são alocados a essas actividades e como o produto dessas actividades é distribuído por todos.

O capitalismo adquire o seu nome de "capital". No linguajar dos economistas, o capital inclui todos os recursos que podem ser utilizados numa actividade produtiva, ou que podem ser transformados nesses recursos, à excepção do trabalho humano. O capital inclui assim os terrenos, os recursos naturais que neles se encontram, as máquinas, os edifícios, os agrafadores e o dinheiro que permite comprar isto tudo, entre outros. O sistema económico chamado capitalismo distingue-se dos demais pelo modo como o capital é repartido pelas pessoas e alocado às actividades produtivas.

Levanta-se então a questão de saber se este sistema é intrinsecamente mau, ou se, a existir maldade, ela é tão somente o resultado da maldade das pessoas que o integram. Tal como um jogo de futebol onde as regras não contemplassem sanções, e onde os jogadores arrancassem os olhos dos adversários... a maldade estaria apenas nos jogadores, ou poderia ser atribuída ao futebol em si?...

Do meu ponto de vista, o capitalismo é intrinsecamente mau. De seguida vou apresentar quatro características essenciais desse sistema económico. Discutivelmente, o capitalismo não poderia existir se qualquer uma dessas características não existisse. E todas elas, cada uma delas, é aos meus olhos intrinsecamente má.


1 - Propriedade privada ilimitada

Um dos grandes medos que algumas pessoas já tiveram, e talvez ainda tenham, do comunismo (outro "ismo", mas desta vez com as raízes na palavra "comum"), é o da abolição da propriedade privada. Isso significaria que cada um de nós deixaria de poder deter seja o que for... Basicamente seríamos expropriados de tudo aquilo que hoje possuímos, a posse de todos os bens passaria para "o colectivo" (seja lá isso o que for), que também seria responsável pela sua gestão. Compreendo que para algumas pessoas este seja um cenário aterrador.

O capitalismo não inspira semelhantes medos, ao permitir que cada um seja dono e senhor dos seus bens (embora se possa argumentar que sem a propriedade privada permitida pelo capitalismo ninguém teria medo de perder o que possui). Quais bens?... Bom, isso é outra questão. Mas a partir do momento em que fica definido que um bem pertence a uma pessoa, todo o sistema está montado para proteger essa relação e garantir que esse bem continuará a pertencer a essa pessoa, aconteça o que acontecer, a menos que ela decida em contrário.

Isso parece aliciante... no entanto, carrega consigo uma série de problemas. Os capitalistas (arrisco-me a dizer "todos nós") apressam-se a possuir tudo aquilo que possa ser valorizado por outro qualquer capitalista. E é assim que os seres humanos nascem para um mundo onde nada lhes pertence, onde tudo já foi tomado. Se tiverem sorte, herdarão um conjunto razoável de possessões. Se tiverem azar, terão de trabalhar a vida toda apenas para sobreviver. Este é apenas um exemplo dos muitos problemas que podem advir da propriedade privada dos bens, e que em geral é menosprezado pelas pessoas. Muito haveria para dizer acerca disso, mas não é isso que aqui me prende.

O capitalismo não apenas permite e protege a propriedade privada. O capitalismo alimenta-se, de uma forma essencial, da procura individual do aumento da propriedade privada. E por isso mesmo, o capitalismo não impõe limites à quantidade de capital que cada um pode possuir.

Quando, neste último parágrafo, disse "por isso mesmo", estava, em boa verdade, a pressupor aquilo que é uma ingenuidade: que o capitalismo necessita da procura individual do capital e que, portanto, não pode impor limites a essa procura. Como se este sistema económico tivesse sido pensado e implementado originalmente numa sociedade de gente toda ela igualmente pobre... Quando a verdade é bem distinta: o capitalismo em que actualmente vivemos é o resultado de sucessivos aperfeiçoamentos ao longo de séculos, defendidos e fomentados sobretudo por quem, em cada instante, faz parte do grupo dos privilegiados. Ou seja, é porque os privilegiados querem manter os seus privilégios que o capitalismo implica a propriedade privada sem limites.

Possuir bens para lá das necessidades de cada um é, aos meus olhos, algo intrinsecamente mau. E um sistema económico que se baseia na procura disso mesmo, e que sem isso não pode funcionar é, aos meus olhos, intrinsecamente mau.

Poderão aqui esgrimir a relatividade do conceito de necessidade: que o que uns consideram uma necessidade, os outros nem por isso, que o dinheiro da reforma do Cavaco Silva mal dá para as suas necessidades, coitadinho, etc. e tal. Não vou perder tempo a debater isso, porque me parece ignóbil.

Há muitas formas de perceber a maldade que acabei de referir. Deixo ao vosso critério o querer e o tentar encontrar essas várias formas, referindo apenas uma pista para uma delas: será justo possuir-se aquilo que não se produziu? será justo possuir-se aquilo que ninguém produziu, como por exemplo a superfície deste planeta?


2 - Rendimentos de capital

A existência da propriedade privada dos recursos, a sua desigual distribuição pelas pessoas, e a necessidade que elas podem ter de aceder a recursos alheios, origina o empréstimo. A procura incessante do aumento da propriedade privada leva ao estabelecimento de uma remuneração para esse empréstimo. E é assim que surgem os rendimentos de capital: o lucro, quando se emprestam recursos a uma empresa para ela os utilizar na sua actividade produtiva ("ela"?... quem é a empresa?... ela trabalha?...); o juro, quando se empresta dinheiro (que resulta da venda de recursos) a qualquer outra entidade; a renda, quando se empresta um terreno, um edifício, ou outro bem afim.

Hoje em dia, na sociedade em que vivemos, com o sistema económico que temos, lucros, rendas e juros são o pão-nosso-de-cada-dia. É comum as pessoas deterem uma ou outra acção de uma empresa, o que lhes pode (ou não) dar direito a dividendos (outro nome para os lucros que são distribuídos), muitas pessoas pagam rendas pelas casas onde habitam e quase todas as pessoas possuem uma conta à ordem ou a prazo ou outra aplicação financeira qualquer que lhe dá algum pequeno juro. Somos todos capitalistas... uns mais, outros menos.

E neste contexto, poucas pessoas se lembram de questionar a legitimidade da existência destes rendimentos. Quem trabalha, obtém um rendimento do seu trabalho. Isso parece justo. Mas o que é que justifica o rendimento de alguém que apenas emprestou o seu dinheiro?...

Este tema tem sido debatido através dos tempos, embora muito menos do que seria necessário. O capitalismo, conforme já atrás mencionei, é um sistema que foi evoluindo ao longo dos séculos, e que actualmente é muito sofisticado. É apenas natural, portanto, que os seus defensores fossem apresentando através dos tempos todo o tipo de potenciais justificações, mais ou menos rebuscadas, para a existência de rendimentos de capitais. Uns dizem que é o prémio que o emprestador recebe pelo risco de não receber de volta o que emprestou. Mas isso é uma falácia. O sistema legislativo, o sistema executivo e o sistema judicial são os garantes do capitalismo. Não poderiam ser também os garantes de quem empresta?... Outros dizem que é uma compensação pelos ganhos que deixam de obter ao emprestarem o que é seu. Mas isso é outra falácia. Se se estão a referir a perdas causadas por uma subida generalizada dos preços, façam todas as contas em termos reais, fixando taxas de rendimento iguais às taxas de inflação, e está o problema resolvido. Se se estão a referir a custos de oportunidade, então estão apenas a dizer que os rendimentos de capitais se justificam porque... existem outros rendimentos de capitais. Outros dizem outras coisas... mas por muito que digam, a realidade é só uma: os rendimentos de capitais existem porque são uma maneira de quem tem mais se aproveitar desse poder para ganhar mais um pouco sobre os outros. Curto e grosso. E isso é objectivamente mau. E, novamente, se não fosse assim, o capitalismo não poderia existir.

Aliás, é até um exercício bastante interessante o de conceber um sistema económico em tudo semelhante ao capitalismo, mas onde não existissem rendimentos de capitais: em termos reais, taxas de lucro e de juro seriam nulas e as rendas não existiriam. Como seria um mundo assim?... Vale a pena pensar...


Quando eu era pequeno, havia ao fundo da rua uma mercearia, daquelas que vendiam tudo aquilo de que as pessoas precisavam. É interessante pensar como uma loja com uma área de vinte metros quadrados era tão boa a satisfazer as necessidades das pessoas nessa altura, como hoje um hipermercado de dez mil metros quadrados!... E como as pessoas de hoje ficariam tão insatisfeitas com as mercearias dessa altura!... Caso para dizer "bom trabalho, capitalistas!"... Bom... nessa mercearia havia um livro onde o merceeiro anotava os montantes que as pessoas ficavam a dever. As pessoas compravam o que necessitavam e diziam "ponha na conta", e o merceeiro punha. No final do mês, o merceeiro adicionava todas as parcelas e determinava quanto é que cada pessoa lá da rua lhe estava a dever. Claramente este merceeiro não era um bom capitalista, porque se o fosse, em vez dessa tecnologia do livrinho, socorrer-se-ia de um cartão em plástico atribuído aos clientes "especiais" da mercearia, e que permitia a esses clientes o acesso a uma linha de crédito para consumo com juros bonificados!...

Imaginemos agora que não existia o livro da(s) conta(s). Os clientes só poderiam comprar pagando a pronto. Seria possível viver assim?...


3 - Plutocracia

Dito de forma breve: um euro, um voto. No capitalismo quem manda não são as pessoas, são os euros.

Metade das pessoas não votam para a eleição de representantes nos órgãos institucionais que os têm, como a assembleia da república (que devia ser grafada com iniciais maiúsculas). Na sua maioria estarão convencidas que não adianta nada votarem. A outra metade poderia regozijar-se por ter o poder de determinar quem são ou não são esses representantes, embora apenas metade dessa metade o faça, uma vez que apenas esses são os vencedores das eleições. Esses acreditam que estão a determinar as futuras decisões políticas, isto é, as decisões sobre aquilo que é comum à sociedade. Mas será mesmo assim?

Antigamente, e em termos de política económica, os governos podiam socorrer-se de diversos instrumentos. Falava-se de política cambial quando um governo tomava medidas que conduziam a uma valorização ou desvalorização da moeda nacional face às restantes moedas. Falava-se de política monetária quando o governo decidia pela emissão de mais ou menos moeda. Falava-se de política orçamental, quando o governo decidia gastar mais ou menos dinheiro, ou quando alterava os destinos dados a esse dinheiro. Falava-se de política alfandegária quando se negociava com os outros países a imposição de taxas à entrada de produtos estrangeiros no país.

Nos nossos dias, a única coisa que se ouve é "tem de ser", "não há alternativa", "tem de ser", "a restrição orçamental", "não há alternativa", "a política de contenção", "a importância da estabilidade", "tem de ser", "não há alternativa"...

A política cambial já era, a política monetária já foi, a política alfandegária onde é que ela já vai!, a política orçamental... tem de ser... contida... A única coisa que resta aos governos de hoje em dia é decidir se vão afectar os fundos mais para aqui ou mais para acolá. Mas como esses fundos são na verdade muito pouco profundos, e toda a gente anda à míngua, os governos desdobram-se em esforços para conseguir evitar a rebelião e manter o status quo.

Quem é que ordenou a cessação dos antigos instrumentos de política económica?... Para benefício de quem?...

A resposta do consenso capicua: fomos todos nós... para bem de todos nós...

Sim, sim... eu lembro-me muito bem da tia Mariquinhas defender com fundamentos sólidos a entrada de Portugal no euro!... Sim, sim... eu lembro-me muito bem do senhor Anacleto Fagundes a dizer que tínhamos de abolir a emissão de moeda pelos bancos centrais nacionais para impedir os surtos de inflação!... E como eu me lembro de ouvir a minha avó a dizer "meu filho, isto sem livre circulação de capitais não vai lá"!

A verdade evidente é que os governos estão, usando os termos da propaganda do PCP, "ao serviço dos grandes interesses económicos", tal e tal... É claro que estão!... E mesmo que acreditemos que os membros do governo são efectivamente autónomos na sua acção, a verdade é que eles actuam num sistema capitalista. E num sistema capitalista, quem tem o poder de pôr as coisas a mexer é quem detém o capital. E portanto, se um governo quer pôr as coisas a mexer, tem de fazer cócegas ao capital. Não há volta a dar-lhe!...

"Menos Estado e melhor Estado", faz parte da lista de chavões que os defensores do capitalismo utilizam para impregnar as pessoas dessa vontade de expurgar o Estado de tudo aquilo onde as empresas podem ir buscar algum dinheiro. Não que alguém defenda a extinção do Estado (e muito menos do capitalismo, claro!), porque sem o Estado um capitalismo nos moldes actuais dificilmente se aguentaria (quem manteria "forças de segurança" capazes de assegurar tamanhas desigualdades económicas? quem canalizaria tanto dinheiro da "classe média" para o financiamento de actividades arriscadas como a "investigação científica"? quem pagaria a criação de infraestruturas para que as empresas singrassem? quem trataria de produzir um tão grande manancial de pessoas já formadas, formatadas, e ávidas de dar o corpo ao manifesto? quem cederia às empresas terrenos ao preço da chuva, juros bonificados, prémios e todo um chorrilho de incentivos à inovação, à modernização, ao investimento tecnológico, à reconversão, ao desenvolvimento e ao mais sei lá o quê?...).

E é neste contexto, de uma economia dominada por empresas, que a plutocracia vinga. Quem é que manda nas empresas?... Numa assembleia de sócios ou de accionistas, não é uma cabeça um voto, é um euro um voto. E é assim que nos gerimos.

Isso estaria bem se inicialmente (seja lá o que o "início" for) todos tivessem os mesmos euros no bolso. Poderíamos então dizer, talvez de uma forma impiedosa, mas pelo menos com o mínimo de fundamento, que a culpa dos que não têm é deles mesmos, pelos erros que cometeram no passado. Mas não existe "início" que nos valha, momento algum do tempo onde todos possuam o mesmo... Em vez disso, todos nascemos para um mundo completamente desigual.

Distribuir desigualmente o poder de decisão sobre o que é colectivo, fazer esse poder depender da sorte, da vigarice e de tantos outros factores completamente arbitrários aos quais a justiça, o respeito e a dignidade são completamente alheios, parece-me algo que é fundamentalmente mau.

Fazer as pessoas acreditar que isso é normal, ou bom, sem sequer as pôr a pensar no assunto, isso parece-me diabólico. E, novamente, o capitalismo não existiria se o poder não dependesse do capital possuído.


4 - Concorrência

Concorrer... Não deixa de ser muito curioso que o tal dicionário que eu consulto indique, como primeiro sinónimo desta palavra "cooperar". Correr em conjunto, contribuir para alcançar um fim comum...

Mas no sistema capitalista a concorrência não significa cooperação, significa o seu oposto: competição. Talvez as pessoas não se sentissem muito satisfeitas se todos os discursos fossem recheados da palavra "competição"... talvez percebessem e sentissem na pele que estão enfiados num sistema que só funciona com competição e que, ao contrário dos jogos de futebol lá da rua, os que perdem perdem mesmo, sem recurso. Mas as pessoas já não se importam tanto de ouvir falar de competências e de competitividades.

Fala-se de competitividade das empresas... mas no fundo não são as empresas que competem, são as pessoas.

O pensamento dominante na nossa sociedade actual apressa-se a considerar a competição uma coisa boa, desde que respeite alguns limites de decência. Claro está, que esbofetear outros competidores é indecente, mas não partilhar com eles o conhecimento, não os ajudar, e eventualmente lançá-los para uma consequente situação de pobreza, isso já é muito decente! E porquê?... Porque quem não produz, não merece ser recompensado! Segundo este modo de pensar tão impregnado em todos nós, competir é bom porque permite desenvolver as competências que nos permitem vencer na vida e merecer um rendimento elevado.

Quem é hospedeiro de semelhante ideologia já não repara que está a avaliar as pessoas pela quantidade de produtos e serviços que ela é capaz de produzir. Note-se que a palavra "qualidade", neste contexto, já não se refere à distinção, por exemplo, entre a produção de armamento ou de alimentos, refere-se tão somente à homogeneidade das características dos produtos e serviços que são gerados nas linhas de montagem. As pessoas já não são boas por serem verdadeiras, amigas, corajosas ou algum outro valor que aqui se queira considerar, que não o valor do dinheiro. As pessoas são boas se gerarem dinheiro.

E diz-se então, pasme-se!, que as pessoas merecem uma posição mais bem paga quando são capazes de gerar mais dinheiro. Neste sistema, homens e mercadorias confundem-se...

Imbuídas de espírito competitivo, as pessoas esquecem-se que nem todas podem ser ganhadoras. Esquecem-se do outro significado da palavra concorrência. Esquecem-se dos outros valores que não o dinheiro... A concorrência melhora as mercadorias, mas piora os homens. E isso é algo intrinsecamente mau.


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Qualquer sistema é bom se os homens forem bons.
Qualquer sistema é mau se os homens forem maus.

E daqui poderíamos concluir que não é assim tão importante o sistema em que vivemos, não fosse o facto de maldade e bondade coabitarem o interior de cada um de nós. E é por isso que a escolha do sistema económico em que queremos viver é importante. O sistema económico que temos não emana de Deus. O sistema económico liberal e capitalista foi construído a pulso, ao longo dos séculos, por quem dele sempre lucrou, e com recurso às mentes e à propaganda mais bem paga.

Pessoas boas e cultas não deviam nunca aceitar semelhante sistema. E historicamente não aceitaram (analisem-se todos os importantes momentos de luta entre quem possui e quem não possui ao longo da história). O facto de as nossas sociedades serem as mais bem formadas de toda a história, devia dizer-nos algo acerca dessa mesma formação.

Ao menos as pessoas queiram ver...