sábado, 29 de fevereiro de 2020

O capitalismo, os pássaros e o novo aeroporto de Lisboa...


Desde há já muitos anos que se fala da eventual necessidade e possibilidade de construir um novo aeroporto que sirva a região da Grande Lisboa.

(É interessante esta coisa de uma infraestrutura "servir" uma região!... Eu julgava que os serviços eram prestados às pessoas... mas parece que os aeroportos não servem tanto as pessoas que moram nos respectivos concelhos, quanto servem os passageiros aéreos que os utilizam. Portanto diz-se que o aeroporto "serve" a região... fazendo uma equivalência implícita entre servir passageiros aéreos e servir todas as pessoas que vivem numa região. Mas será essa equivalência válida?...)

Ainda pequeno achava assustador os aviões aterrarem em Lisboa praticamente por entre os prédios, quase numa continuação do Campo Grande! Anos mais tarde, lembro-me de ouvir o Miguel Sousa Tavares, que apesar de todas as parvalheiras, ainda tem a qualidade de produzir e revelar pensamentos autónomos, a dizer que era uma grande vantagem poder ter um aeroporto quase à porta de casa. Eu sempre pensei que ele não devia morar assim tão perto do aeroporto, caso contrário não lhe iria achar muita graça... É que os pássaros podem ser estúpidos ou não, mas as pessoas têm obrigação de não o ser, e mesmo assim não fogem das imediações dos aeroportos, mesmo quando isso lhes dá direito a pequenos tremores de terra periódicos, distúrbios de sono, alterações de humor, perda de sensibilidade auditiva ou maior exposição a partículas em suspensão. Não fogem, porque não podem!... Certamente o Miguel Sousa Tavares não fugiu, porque não teve necessidade, porque se morasse lá perto, teria fugido.

Depois falou-se na Ota, de cuja existência eu passei a saber, apesar de só mais tarde, ao circular na A1, ter ficado a saber onde ficava... Falou-se na margem sul... Falou-se de muita coisa. Os anos foram passando, e o aeroporto de Lisboa foi ficando mais congestionado. Fizeram-se obrinhas e obronas no aeroporto existente, que a seu ritmo se foi transformando num centro comercial de passagem obrigatória entre a praça de táxis e o parque de estacionamento dos aviões.

Agora veio a taradice do turismo. O número de turistas em Portugal praticamente duplicou nos últimos 6 anos, tal como o número de passageiros aéreos que utilizaram os aeroportos de Lisboa ou do Porto. Actualmente, o aeroporto de Lisboa é utilizado por mais de 30 milhões de passageiros por ano.

Claramente, podemos afirmar com segurança, é chegada a hora de investir num novo aeroporto!

Ou será?...

Uma das características do capitalismo é que não conhece limites. Não conhecer limites é uma consequência, mas também uma necessidade intrínseca do capitalismo. É uma consequência, porque o modus operandi do capitalismo é o de transformar todas as adversidades em oportunidades para fazer negócio. E é uma necessidade, porque no momento em que algo, seja um recurso, seja a procura num mercado, seja um preço, seja o que for, no momento em que esse algo atinge um limite, todas as "regras" de funcionamento do capitalismo, tal como o conhecemos, começam a desabar.

Vejamos a coisa em prática no caso do aeroporto de Lisboa: há uma procura crescente, há a possibilidade de aumentar a oferta para satisfazer a procura, isso significa mais negócio... então bora lá!

Mas...
1ª questão: será que não existem mesmo limites?

Esta questão é mais difícil de responder do que possa parecer. À partida, creio que qualquer pessoa reconhecerá que devem existir limites para tudo, mesmo que não saibamos bem onde estão. Por exemplo: o céu de Lisboa não poderá suportar mais do que um número X de aviões a voar em simultâneo. Ou as ruas de Lisboa não poderão suportar mais do que Y turistas a passear ao mesmo tempo nelas.

No entanto, o capitalismo é a melhor máquina que existe a transformar essas dificuldades em oportunidades de negócio e a afastar os limites para cada vez mais longe. Se os céus de Lisboa não comportam mais do que X aviões, os aviões poderão aterrar em aeroportos mais distantes, criando-se as condições para que os passageiros se desloquem até Lisboa de outro modo. Se as ruas de Lisboa não suportam mais do que Y pessoas em simultâneo, fazem-se ruas com dois pisos e estende-se a cidade de Lisboa. Tudo é possível!...

Poderão existir impactos que serão mais difíceis de contornar, limites mais difíceis de obviar. Pensemos, por exemplo, no abastecimento de água à cidade. Será mais difícil contornar esse limite... Mas talvez uma ou outra obra de engenharia, e talvez um pouco de racionamento ou subida dos preços... alguma coisa há-de se inventar para ultrapassar isso.

E os pássaros?


Os pássaros são espertos, disse algum político há pouco tempo, e portanto saberão adaptar-se à construção no seu habitat de mais um aeroporto. Bom, para aferir a veracidade de tal afirmação seria necessário definir com algum rigor o que se entende por esperteza. Em boa verdade, os pássaros não são conhecidos por saberem muita matemática. Mas apesar disso eu tenho a certeza que se irão adaptar, porque se o aeroporto for construído no seu habitat, não lhes restará outra alternativa.

O que é que significa adaptar?... Os pássaros certamente serão perturbados. Grandes extensões de terreno serão desmatadas e desflorestadas, destruíndo qualquer possibilidade de aí os pássaros poderem alimentar-se, construir os seus ninhos ou simplesmente viver. Uma extensa área será asfaltada. Isso, juntamente com a desflorestação poderá afectar a humidade e a temperatura locais. Talvez os pássaros convivam bem com isso... talvez alguns insectos que lhe sirvam de alimento já não... Haverá um tráfego constante de aviões que constituirão ameaças de morte para pássaros voando perto. Os que não se afastarem por algum motivo, serão objecto de uma experiência de selecção, neste caso pouco natural. Haverá intenso ruído... talvez isso afecte qualquer coisinha a capacidade de os pássaros comunicarem entre si ou com o meio (serão igualmente capazes de ouvir os seus predadores?).

Enfim, não sou ornitólogo... embora certamente não seja estúpido... e sei que adaptação, neste caso, significará simplesmente: alguns irão para outras paragens, outros morrerão, e tarde ou cedo a área ficará propícia para as aeronaves, brinquedinhos do ser humano.

Mas, se quisermos que as aves lá permaneçam, então isso poderá constituir um limite, um limite à expansão da actividade económica, um limite à construção de aeroportos e atracção de turistas e "entreprenôres"?

Não faz mal. O senhor entreprenôr irá pegar num casalinho de cada cor e construir uma espécie de arca de Noé ornitológica que colocará mesmo à porta do aeroporto para que os turistas possam visitar e conhecer a magnífica fauna voadora do lindíssimo "PortugAll". Tudo por apenas uns trocos.

A questão sobre os limites não se deveria nunca colocar em termos da possibilidade física da coisa. Os limites não deveriam ser entendidos como aquilo que ainda é possível, ou que já não é possível fazer, mas sim como aquilo que nós queremos, ou não queremos, que seja feito. O que nos leva à segunda questão.

2ª questão: será que é isso que nós queremos?

O que é que nós queremos, afinal? Se a população mundial continuar a crescer, se o seu rendimento disponível continuar a subir, se o seu tédio continuar a aumentar, se a febre pelas viagens continuar a transformá-las no objectivo supremo da existência de cada vez mais seres... é automático concluir que o número de potenciais visitantes às nossas cidades continuará a aumentar e fortemente. Mas é mesmo isso que nós queremos?

Neste momento eu moro em Angra do Heroísmo. É uma cidade pequenita, numa ilha pequenita, no meio do oceano. O número de turistas que visitam esta cidade é uma fracção muito pequena daqueles que visitam Lisboa. Mas já é o suficiente para me dificultar a vida quando saio à procura de um restaurante para almoçar num dos meses de Verão! Ao ponto de chegar a suspirar de alívio quando o Verão termina!

Talvez em Lisboa as pessoas já estejam mais fartas dos turistas do que eu aqui na cidade onde moro. Não sei. Talvez elas não queiram, verdadeiramente, encher a cidade com ainda mais turistas. Talvez, vistas as coisas por esse prisma, elas não estejam assim tão interessadas na aplicação de dinheiros (públicos ou privados) na construção de mais um aeroporto.


O problema é que o capitalismo coloca as coisas sob um outro prisma: o do dinheiro. O prisma do dinheiro e da ausência de tomadas de posição conjunta sobre problemas de conjunto.

Talvez algumas pessoas não estejam interessadas em ter tantos turistas à porta de casa, mas no dinheiro todos estão sempre muito interessados. E os turistas trazem dinheiro, claro. Os turistas são dinheiro!

Se os lisboetas pudessem reunir-se todos e decidir em conjunto o que fazer com os turistas que os visitam e o dinheiro que trazem... talvez também conseguissem chegar a acordo acerca de um qualquer limite para o seu número.

No mundo petrolífero, organizações como a OPEP (organização de países exportadores de petróleo) agregam os interesses da oferta. No nosso mundo, há uns anos atrás, cooperativas de consumidores agregavam os interesses da procura. Mas no mundo do capitalismo neo-liberal as agregações são mal vistas. Bom... oficialmente são mal vistas, embora existam na realidade por todos os lados, mesmo que invisivelmente para os olhos destreinados.


Uma concertação de lisboetas a impor um limite ao número de turistas que podem visitar a cidade de Lisboa seria algo muito diferente daquilo a que o nosso sistema económico nos tem habituado!... Sobretudo porque implicaria que o conjunto dos lisboetas também teria de chegar a um acordo acerca da repartição do dinheiro que esses turistas trariam.

Esta ideia da concertação pode parecer abstrusa, e no entanto talvez apenas ela permita ir um pouco mais de encontro às reais vontades dos lisboetas.

Os representantes dos lisboetas e dos seus vizinhos dos concelhos limítrofes, por eles eleitos, deviam poder representar eficazmente os seus interesses. No entanto, se um grupo de lisboetas disser "queremos mais dinheiro, logo queremos mais turistas" e outro grupo disser "não queremos mais turistas, mesmo perdendo dinheiro", adivinhem lá que grupo é que os tais "representantes" irão apoiar!

Enfim... questões de representatividade, democracia e colectivismo à parte, a verdade é que é possível desejar um futuro diferente. Um novo aeroporto não é um ditame de deus! Nem os turistas ou outros passageiros aéreos mandam mais que os residentes das áreas "servidas". Tudo depende, ou devia depender, daquilo que estes últimos verdadeiramente querem.

Mas, o que acontecerá então se não houver um segundo aeroporto?

Resposta: o capitalismo toma conta da ocorrência.

Se a oferta não aumentar e a procura continuar a aumentar, eventualmente os preços irão aumentar. O mesmo que tem acontecido com os preços das casas... estão a ver o filme?...

E qual é o problema disso?... Segundo os teóricos que suportam o nosso sistema económico lindinho, não há problema nenhum. Leis da oferta e da procura, mercados livres, preços que flutuam, pessoas que só compram o que querem quando querem, pessoas que só vendem o que querem quando querem...


Um dos muitos problemas que este sistema económico tem é que despreza as pessoas. Valoriza muito o dinheiro que elas têm, isso sim. Mas se elas não tiverem dinheiro, então serem pessoas ou serem penedos tanto faz.

Creio que já contei esta história noutras ocasiões, mas vem novamente a propósito. Quando fazia parte da "comissão de finalistas" do curso de economia que frequentei, gerou-se a questão de saber qual seria o preço alvo para a viagem de finalistas que iríamos encomendar. A comissão de finalistas tinha à sua guarda uma pequena maquia que tinha sido acumulada ao longo dos cinco anos do curso, à custa de contribuições de todos os nossos colegas. Essa maquia seria então descontada ao preço das viagens, de modo a tornar as viagens mais acessíveis. Ainda assim, conscientes de que nem todos os colegas tinham a mesma capacidade económico-financeira, ou seja, que nem todos os pais dos colegas tinham o mesmo dinheiro, alguns membros da dita comissão, e eu também, resolvemos questionar os nossos colegas sobre o montante máximo que estariam dispostos a pagar. Com os resultados das respostas construímos um histograma que tinha a forma expectável de um sino. Apontamos então para um valor à esquerda, antes da respectiva cauda, isto é, um valor que a grande maioria dos colegas pudesse suportar. Qual não foi então o nosso espanto quando a maioria dos membros da "comissão de finalistas" rejeitou a nossa proposta e acabou por aprovar um valor para a viagem de finalistas que apenas uns 25% dos colegas conseguiam suportar. Toda a maquia reunida por todos os colegas ao longo de cinco anos serviu então para abater ao preço das viagens dos colegas mais endinheirados. O argumento esgrimido por quem aprovou tal alarvidade foi então "não podemos restringir a liberdade daqueles que podem e querem pagar mais". Eu não tive dúvida alguma que estávamos perante brilhantes economistas!

É assim... Para a economia e os economistas, o que conta é o dinheiro, e a voz das pessoas é tanto mais audível quanto mais dinheiro transportar.

Portanto, voltando aos aeroportos, o que acontecerá no caso de não se construir um novo aeroporto é que os preços das viagens irão aumentar. Tal como os preços das casas já aumentaram, dizia. Só que, não havendo concertação de interesses entre todos os implicados, isto é, todos os habitantes da Grande Lisboa, uns irão beneficiar mais com isso do que outros, e alguns irão ficar impedidos de viajar.

O que também não terá grandes repercussões, porque por essa altura esses já terão sido expulsos da Grande Lisboa.

Viva o capitalismo! Viva!

Vivam os pássaros inteligentes!

Vivam os grandes pássaros metálicos!

Amen.