terça-feira, 29 de setembro de 2020

Estamos satisfeitos com o número de mortos...

 


Ainda não ultrapassámos a linha vermelha relativamente ao número de mortos... foi o que acabei de ouvir da boca do presidente da república, rés pouco pública, portuguesa.

Em tempos atribuíram a Staline a frase "uma morte é uma tragédia, um milhão é uma estatística".

Eu não sei se ele disse isso ou não, porque não estive lá para ver e ouvir. Mas sei que as pessoas tendem a copiar-se profusamente, e muitos anos antes de Staline ter nascido já se tinha escrito que "uma morte é uma tragédia, mas um milhão faz um herói".

Se em tempos se idolatravam os maiores sanguinários, hoje, felizmente, começamos a mostrar sinais de maior juízo. É claro que aquela frase é hoje usada como exemplo de um pensamento doentio de alguém insensível à tormenta que causa nos outros.

Quando começou a pandemia, os que falavam de economia pisavam terreno sensível, prontos para comentários do tipo "és um estalinista!" ou "este não é o momento para pensar no dinheiro, as vidas das pessoas estão em risco!".

Agora, volvidos seis meses, tudo é diferente!

Agora até o presidente da república pode ser estalinista e dizer coisas como a que acabei de ouvir, e a contestação, se existe, nem se chega a ouvir.

E isto diz muito sobre o modo como a opinião pública é manipulada.

E ainda, diria eu, é um sintoma da profunda ignorância acerca do funcionamento do nosso sistema económico. Porque isto não tinha, e não tem, de ser assim.

The Battle Hymn of the Republic, updated...


Escrito em 1900 por Mark Twain, sobre o imperialismo dos EUA, no contexto da guerra entre Filipinas e EUA, mas com alcance que infelizmente ainda perdura.


Mine eyes have seen the orgy of the launching of the Sword;

He is searching out the hoardings where the stranger's wealth is stored;

He hath loosed his fateful lightnings, and with woe and death has scored;

His lust is marching on.


I have seen him in the watch-fires of a hundred circling camps;

They have builded him an altar in the Eastern dews and damps;

I have read his doomful mission by the dim and flaring lamps—

His night is marching on.


I have read his bandit gospel writ in burnished rows of steel:

"As ye deal with my pretensions, so with you my wrath shall deal;

Let the faithless son of Freedom crush the patriot with his heel;

Lo, Greed is marching on!"


We have legalized the strumpet and are guarding her retreat;

Greed is seeking out commercial souls before his judgement seat;

O, be swift, ye clods, to answer him! be jubilant my feet!

Our god is marching on!


In a sordid slime harmonious Greed was born in yonder ditch,

With a longing in his bosom—and for others' goods an itch.

As Christ died to make men holy, let men die to make us rich—

Our god is marching on.


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Este poema foi efectivamente censurado durante muitos anos, tendo sido publicado apenas em 1958 (ao que nos diz a wiki-coisa).
O poema segue o tema original:


Aqui fica uma versão actualizada:


E ainda outra:



terça-feira, 22 de setembro de 2020

A solução da energia nuclear...

Estamos no ano 2020 e o "aquecimento global" parece finalmente ter-se tornado numa "cena". Escrevo assim, porque verdadeiramente não sei o que isso quer dizer. Talvez a maioria das pessoas que rodeiam o calhau oceânico onde agora vivo saibam que existe algo chamado aquecimento global, que isso é um problema com más consequências e que uma das causas para isso é a queima de combustíveis fósseis. Talvez noutros sítios deste calhau planetário também seja assim. Essa tomada de consciência é boa, embora seja pena que o "ambiente" continue a ser uma coisa mal definida, às vezes (mal) identificada com campos verdinhos (que aqui vêm geralmente acompanhados de vaquinhas a pastar) e que muitos outros problemas ambientais, alguns dos quais mais graves, continuem a ser menosprezados ou mesmo ignorados.

A mensagem propagandeada (e bem) é então de que a queima de combustíveis fósseis liberta dióxido de carbono para a atmosfera, e que o aumento da proporção desse gás na atmosfera acidifica os oceanos e aumenta o efeito de estufa, conduzindo ao aumento da temperatura média à superfície da Terra, o que conduz a uma série de consequências nefastas (degelo das calotes polares, subida dos oceanos, maior frequência e intensidade de incêndios, maior propensão para fenómenos atmosféricos extremos, etc.).

A mensagem implícita é: temos de queimar menos carvão, petróleo e derivados.

Mas toda a actividade económica que sustenta o nosso bem-estar necessita de fontes de energia!

(Central Termoeléctrica de Sines, actualmente em processo de encerramento)

Nas últimas décadas houve grandes avanços tecnológicos que permitiram aumentar muito a eficiência da transformação da energia eólica e da radiação solar em energia eléctrica. Isso lançou a onda das "energias renováveis".

(Aproveitando a boleia dessa onda das energias renováveis, tem-se feito muita campanha (e bem financiada... quiçá com o dinheiro dos nossos impostos) na mobilidade eléctrica, com especial enfoque nos veículos automóveis eléctricos. Seria bom, no entanto, que o trigo fosse separado do joio. Uma coisa é a produção de energia eléctrica a partir de fontes renováveis como o vento, outra coisa é a utilização de carros eléctricos, cuja energia eléctrica pode ser produzida em centrais a carvão, que utilizam baterias de lítio cuja reciclagem é um berbicacho, e que não eliminam de todo os problemas que o sistema rodoviário apresenta (ruído, ocupação dos espaços públicos, segurança rodoviária, etc.). Mas isso é outro assunto.)

Entretanto, muitas pessoas bem informadas acerca dos problemas associados à queima dos combustíveis fósseis começaram a levantar objecções à tentativa de substituição dessa fonte energética pelas fontes renováveis vento e sol. E com bastante razão.

De facto, quando se diz que o vento é uma fonte de energia "limpa", não estamos a ser totalmente correctos. A instalação de turbinas eólicas tem grandes impactos no meio ambiente. Esses impactos não são apenas estéticos, mesmo que isso também seja importante. Para instalar e manter as turbinas é necessário abrir estradas até e ao longo das cristas dos montes (e nunca é demais realçar como as estradas são inimigas dos habitats e dos respectivos residentes). As pás das turbinas são um perigo para muitas aves. O ruído que provocam perturba a vida animal numa área considerável ao seu redor.

Outras objecções podem ser levantadas à transformação da energia da radiação solar em painéis fotovoltaicos. Mas bem para além disso, é preciso sempre considerar que estes equipamentos têm uma vida útil limitada e que, portanto, têm de ser mantidos e eventualmente substituídos. E o fabrico, transporte e instalação destes equipamentos tem impactos significativos no meio ambiente, também através do consumo de energia.

Neste contexto, têm surgido várias vozes a advogar a defesa da energia nuclear, como sendo, pelo menos no imediato, a única fonte de energia capaz de sustentar o crescimento económico, sem contribuir para o aquecimento global, e sem apresentar os inconvenientes associados às eólicas ou aos painéis solares.

Quando vivi em França, em 1995, fui surpreendido como muitas casas e lojas eram aquecidas internamente até mais de vinte graus, enquanto o exterior podia estar a menos vinte. Ao ponto de as pessoas andarem de t-shirt, terem calor, e deixarem as janelas abertas para arrefecer. Ao mesmo tempo que as lojas, para atraírem clientes, mantinham as portas escancaradamente abertas, sem sequer ter uma cortina ou algo que impedisse a saída do ar quente e a entrada do ar frio. Só depois percebi a fonte de tanta despreocupação: toneladas de energia eléctrica barata, vinda directamente de centrais de energia nuclear.

Será a energia nuclear uma solução?

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A energia nuclear é renovável?

As centrais de energia nuclear consomem urânio. O urânio não se renova. Mais tarde ou mais cedo essa fonte irá extinguir-se.

Mas será que existem fontes de energia verdadeiramente renováveis? Essencialmente, chamamos renováveis às fontes de energia que dependem directamente (ou quase) do nosso Sol. Um painel fotovoltaico pode converter a radiação recebida directamente do Sol em energia eléctrica. As diferenças de temperatura originadas pelo Sol à superfície da Terra e na atmosfera geram correntes de ar cuja energia pode ser parcialmente capturada por turbinas eólicas. Essas correntes de ar transportam também humidade e originam o ciclo da água, cuja energia pode ser parcialmente capturada por centrais hidroeléctricas.

Mas um dia o Sol deixará de emitir energia. E nesse dia, as energias a que agora chamamos renováveis, deixarão de ser renovadas.

Assim, ser renovável ou não, depende da escala temporal que queiramos considerar. A vantagem das energias que dependem directamente do Sol é que este irá continuar a brilhar durante muito tempo: uns bons milhares de milhões de anos.

A uma escala temporal bem mais reduzida, os próprios combustíveis fósseis podem ser considerados uma fonte de energia renovável. Afinal o petróleo não é mais do que o resultado do aprisionamento da energia solar em matéria orgânica, posteriormente sujeita a uma metamorfose a alta temperatura e pressão durante alguns milhões de anos.

Mas poderemos reduzir a nossa escala temporal a apenas alguns anos, e mesmo nesse curto período uma árvore consegue utilizar a energia solar para aprisionar carbono, dando-nos madeira que podemos queimar numa salamandra. Portanto, também a lenha pode ser considerada uma fonte de energia renovável, tal como a matéria orgânica utilizada nas centrais de biomassa.

Mas voltemos à energia nuclear. Essa energia não é renovável, numa escala temporal que poderá ir para além da vida do nosso Sol. O urânio é o produto de acontecimentos fora do nosso alcance, como a explosão de estrelas. Talvez no futuro consigamos encontrar uma forma de utilizar a energia solar para produzir urânio a partir de elementos químicos mais leves. No entanto, isso parece muito improvável enquanto possibilidade, e parece muito irracional do ponto de vista de eficiência, uma vez que provavelmente gastar-se-ia muito mais energia a produzir o urânio do que se aproveitaria depois no seu consumo.

Neste momento, os estudos mais optimistas sobre a capacidade de extracção de urânio até da água do mar, conjugados com a maior eficiência possível na sua utilização, indicam que a Terra contém urânio suficiente para suster as necessidades humanas durante alguns milhares de anos.

Se o urânio não é renovável, o máximo que se pode considerar é que ele pode ser uma solução temporária, enquanto não encontramos uma fonte alternativa.

Numa altura em que os gritos de alerta acerca do aquecimento global se tornam cada vez mais altos e frequentes, faz algum sentido que haja proponentes da utilização da energia nuclear, nem que seja apenas como uma solução temporária. Mas, mesmo nesses moldes, convém analisar com um pouco mais de profundidade se esta é ou não uma solução recomendável.

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As centrais de energia nuclear não são limpas nem seguras.

O urânio é radioactivo e os produtos da sua cisão também são radioactivos.

Na verdade, muitos átomos (ou isótopos... formas específicas dos átomos de cada elemento) são instáveis e podem transformar-se noutros elementos emitindo alguma radiação (lista de isótopos radioactivos). Só que alguns elementos levam mais tempo a fazê-lo do que outros. A radioactividade dos elementos pode então medir-se numa escala, e esses elementos serão classificados como mais ou menos radioactivos. Afinal, todos nós estamos sujeitos a alguma radioactividade no nosso dia-a-dia.

A questão é que os elementos envolvidos na operação de uma central de energia nuclear são muito mais radioactivos que os elementos que nos circundam no dia-a-dia.

A radioactividade é perigosa para todos os seres vivos, não apenas para os seres humanos. As partículas ou radiação emitidas por um isótopo radioactivo são altamente energéticas (ver radiação ionizante) e conseguem alterar a estrutura das moléculas que compõem as células dos seres vivos. Esta alteração das moléculas pode implicar a morte da célula ou, com azar, o surgimento de uma mutação cancerígena.

As centrais de energia nuclear utilizam como combustível (embora não se trate de uma reacção de combustão) material radioactivo e produzem resíduos radioactivos.

Os resíduos radioactivos são muito perigosos. Também os resultados de uma combustão normal numa lareira podem ser muito perigosos. Mas a perigosidade dos resíduos das centrais nucleares é diferente. Por um lado, a radiação que emitem atravessa paredes e não é detectada pelos nossos sentidos. Por outro lado, mantêm-se perigosos durante muito tempo. Durante muitíssimo tempo. Durante tanto tempo que nos devem fazer pensar muito bem antes de decidir ir por aí...

De facto, existe uma questão ética importante em todas as questões relacionadas com a preservação do meio ambiente e que tem a ver com o não comprometer as possibilidades dos seres vivos vindouros. Ora os resíduos das centrais nucleares irão manter-se radioactivos durante milhões de anos (ver tempo de meia vida do isótopo de iodo 129). Por mais encapsulados e enviados para as profundezas dos oceanos ou do subsolo que sejam, esses resíduos manterão a sua perigosidade por mais tempo do que qualquer planeamento humano consegue alcançar. E, portanto, a tal questão ética é premente!

Mas a radioactividade das centrais nucleares não se resume ao combustível e aos resíduos.

As centrais de energia nuclear transformam a energia libertada na cisão dos átomos em energia eléctrica. Esse processo é mediado por água: a energia que os átomos libertam converte-se em calor, o calor é transmitido à água, e a água aquecida move turbinas que produzem a electricidade. A água utilizada nesse processo fica contaminada, e alguma dela pode escapar para o meio envolvente caso existam fugas, o que infelizmente é mais vulgar do que se pensa.

Existe um outro ciclo de água nas centrais de energia nuclear que se destina exclusivamente a arrefecer e manter termicamente estável o primeiro ciclo anteriormente descrito. Ora este circuito de arrefecimento gera enormes quantidades de água morna que tipicamente é despejada para grandes massas de água existentes perto das centrais (rios, lagos, mares). E isso constitui, só por si, um tipo de poluição com bastante impacto para os seres que vivem nessas massas de água. De resto, este tipo de poluição é comum às centrais de combustíveis fósseis.

Por outro lado, depois de se utilizar uma porção de combustível, o resíduo não é imediatamente manipulável. Primeiro ele tem de ser arrefecido em piscinas durante vários anos. E isso gera mais água contaminada.

Mas não é apenas a água que fica contaminada. Também algumas peças de vestuário dos funcionários e todo o edifício da central fica contaminado.

Ou seja, há uma série de outras fontes de radioactividade envolvidas na operação de uma central nuclear que, embora menos perigosas, também têm de ser consideradas. Ao longo das décadas em que as centrais de energia nuclear têm operado, muitos têm sido os casos de pequenas fugas de água contaminada para o exterior do edifício...

Finalmente, há todo o custo da construção da central e da sua manutenção ou encerramento, e há também todo o custo ambiental da mineração do urânio.

As centrais nucleares não são limpas, mesmo que possam ser consideradas mais limpas que as centrais a carvão, e também não são seguras, mesmo que possam ser consideradas mais seguras que uma central a carvão. Acima de tudo, elas transformam um tipo de problema, noutro tipo de problema, com o enorme fardo de criarem um problema para as gerações vindouras por mais tempo do que a nossa imaginação consegue alcançar.

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E isto tudo é mesmo necessário? Não haverá uma alternativa?

O debate actual pode resumir-se ao seguinte: precisamos de energia, existem estas fontes de energia, todas elas têm vantagens e inconvenientes, qual é a que apresenta mais vantagens e menos inconvenientes?

Esse debate é falacioso, porque parte de uma premissa errada. Infelizmente, imensas discussões económicas, sociais e políticas partem desta mesma premissa errada: a de que a felicidade humana está dependente do crescimento. Crescimento num sentido lato. Acreditamos, sem pestanejar, que a nossa felicidade depende do crescimento da economia, de veículos mais rápidos, de podermos ir mais longe no universo, da utilização de mais energia, de mais viagens de férias, de mais comida, de mais roupa, de mais tecnologia, de mais conhecimento, de mais ciência, de mais sexo, de mais prazer, de mais tudo e mais alguma coisa.

No entanto, parece que não nos ocorre estoutro simples raciocínio: se a nossa felicidade depende de termos mais de tudo, inclusive mais de nós mesmos, então os antigos, coitadinhos, estiveram condenados à infelicidade! Todos eles! Desde o australopiteco! Será isso verdadeiro?...

Não seremos nós capazes de sermos felizes sem esta corrida frenética rumo ao topo de uma montanha que queremos sempre cada vez mais alta?

Às vezes penso que no estádio actual das coisas as pessoas dificilmente conseguiriam imaginar uma sociedade sem "progresso", isto é, em que as pessoas vivem do mesmo modo que os seus avós viveram e em que sabem que os seus netos irão viver do mesmo modo que elas próprias vivem. No entanto, foi assim que viveu a humanidade durante mais de 99% da sua existência. E custa-me a acreditar que isso os tenha condenado à infelicidade.

Infelicidade é sabermos que, no mundo actual, por mais tecnologia e ciência e velocidade e energia que tenhamos, vamos continuar a ter de ir trabalhar num trabalho de que não gostamos e vamos continuar a sujeitar os outros seres vivos à miséria. Mesmo que a humanidade inteira já produza mais penduricalhos do que os que é capaz de consumir!... Será isto mesmo necessário?

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O verdadeiro problema nos debates sobre a energia.

Todas as formas de "produzir" energia têm impacto ambiental. Quando isso é feito à escala em que a humanidade hoje em dia faz as suas coisas, esse impacto é enorme. O mesmo deve ser dito em relação à utilização dessa energia. As nossas casas quentes têm um impacto, os nossos duches quentes, os produtos plastificados que usamos, os aviões em que voamos, todas as formas de "consumir" energia têm o seu impacto.

Acreditamos, porque nos fizeram acreditar, que precisamos de mais energia para sermos felizes. Corremos atrás disso. Mas quando finalmente começamos a perceber que esta corrida não pode continuar, sentimos imensa dificuldade em voltar atrás.

Quando era criança, quase ninguém voava de avião. Só alguns, e só muito de vez em quando. Hoje em dia todos o fazem por dá cá aquela palha. No entanto, se propusermos agora um regresso ao número de viagens que se fazia há 40 anos atrás, muita gente irá ficar revoltada.

O verdadeiro problema relacionado com a energia é a dependência que construímos dela.

De cada vez que surge um problema relacionado com a produção ou o consumo de energia, a humanidade inteira (e nós também!) dedica-se à pesquisa de vias alternativas que nos permita continuar a aumentar a quantidade de energia produzida e consumida, alegando, propositada ou reflexivamente, que isso é indispensável ao nosso bem-estar.

Temos de saber parar.

Não, a solução não é construir centrais de energia nuclear. Não, a solução não é queimarmos mais carvão. A solução não é enchermos todas as montanhas com turbinas eólicas. A solução não é barrarmos todos os rios. Nem é conduzirmos automóveis eléctricos.

A solução é aprendermos a ser felizes doutros modos. Por exemplo, encontrando formas de extinguir os trabalhos de que não gostamos.

("O burro e o gaiteiro", 2009)

Até lá, tudo aquilo que venha do baú das invenções para nos "ajudar" nesta questão energética, só estará a contribuir para agravar a nossa dependência e, com isso, os problemas de muitos outros seres vivos do nosso calhau.

segunda-feira, 7 de setembro de 2020

David Graeber - reinvenção da felicidade...


No passado dia 2 de Setembro David Graeber deixou-nos. À data em que escrevo isto não tenho conhecimento da causa desse muito infeliz acontecimento. Sei que, pelo menos para mim, foi inesperado, e que certamente foi muito antes do tempo: tinha 59 anos de idade e uma cabeça que debitava modos de ver o mundo próprios. Muitos de nós arrogam-se a genuinidade de um pensamento livre, autónomo, independente, até inovador, até direitos de autor, sem nos darmos conta de que apenas modificamos umas coisitas pequenas a tudo aquilo que fomos apanhando pelo caminho. Mas David Graeber era daquelas pessoas que verdadeiramente parecia pensar nas coisas à sua maneira, quer quando produzia ideias diferentes, quer quando produzia ideias iguais.

Entre outras coisas, deixou-nos dois livros que estão na minha lista de coisas a fazer (sempre adiadas pelas horrorosas e mundanas necessidades...): "Bullshit jobs" e "Debt: the first 5000 years". Portanto, se as coisas correrem bem, voltaremos a isto nos próximos tempos, e por mais que uma vez.

Entretanto fica um pequeno excerto de um dos últimos vídeos públicos, do passado mês de Julho, e o respectivo texto em baixo.

É urgente olhar para a realidade com olhos diferentes. O problema é que já estamos de tal modo formatados, que não acreditamos noutras narrativas... A urgência, no entanto, é objectiva, e permanece.

(vídeo completo aqui)

Inglês:

"The period right after the Black Plague was the Golden Age for the working classes in most of Western Europe and I always say that if you wanna see how the class struggle is kinda going in any particular time and place in world history, the easiest way to check is to see how many days people had to work. Well in the 14 hundreds right after the population went way down, wages went way up, there’s a massive distribution, you suddenly get these sanctuary laws saying, you know, it’s illegal for peasants to wear ermine, which they really didn’t need to have a law about before and... all of a sudden like a third to one half the days were saints’ days and holidays of one kind or another. But the interesting thing is that it was all thrown into this collective consumption rather than individual consumption. Capitalism only happened when they broke with that. So if you read like you know these sort of British calendar rituals are usually referring to that period you know which was the heyday when the Lords of Misrule (https://en.wikipedia.org/wiki/Lord_of_Misrule) and Abbotts of Unreason and the Prince of Sots and all these names for these sort of make-believe organizations, forms of government, [where you'd] kind of jump in during holidays... and, you know, they were great! I mean like I remember reading descriptions of this and I was like, okay, on the second Tuesday after Lent, you know, women will form marauding bands and kidnap men and hold them for ransom and on this day they’ll have cheese races and then on that day, you know, and so forth and so on, this endless novel, build dragons and carry on with your dragons and set them on fire and so forth and so on. So I think if there’s something to be learned from post-Plague societies it’s to use our imagination to recreate society in that way. In a way that’s why everybody started running out to meet each other as soon as lockdown ended - seemed like it could turn into that kind of a festive life. We need to reinvent what we think of as happiness because you know we’ve got this dynamic between these sort of solitary hedonistic pleasures and this pure chemical need to do more and more work until you justify it, which is literally killing us. We need to go the other way out/above."

Português (tradução livre):

"O período que se seguiu à Peste Negra (cerca de 1350) foi o período dourado das classes trabalhadoras na maioria da Europa ocidental e eu sempre digo que se queres averiguar como a luta de classes está indo em qualquer situação particular ao longo da história mundial a maneira mais fácil é verificar quantos dias é que as pessoas tinham que trabalhar. No século XV, logo depois de a população ter diminuído muito e os salários terem aumentado muito, há uma grande distribuição [de riqueza] e de repente tens estas leis a dizer que é ilegal os agricultores vestirem arminhos... leis que antes não eram necessárias... e de repente um terço ou metade dos dias eram dias santos ou feriados de um ou outro tipo. Mas o interessante é que fazia tudo parte deste consumo colectivo, em vez de ser contabilizado no consumo individual de cada um. O capitalismo só surgiu quando se deixaram disso. Portanto se leres sobre os rituais do calendário britânico és sempre dirigido para esse período de apogeu da folia em que havia uma data de organizações fictícias (https://en.wikipedia.org/wiki/Lord_of_Misrule) que a sociedade adoptava durante os feriados... e eram óptimas! Lembro-me de ler descrições de... por exemplo, na segunda terça-feira depois da quaresma as mulheres formavam seitas que raptavam os homens, pedindo depois um resgate por eles... noutro dia havia corridas de queijos e noutro outra folia qualquer... sempre nesta novela interminável, construir dragões e andar com eles e depois atear-lhes fogo, etc, etc. Portanto eu penso que se há qualquer coisa a aprender de sociedades pós-pragas, ou pós-pandemias, é usar a nossa imaginação para recriar a sociedade desse modo. De certo modo, foi por isso que as pessoas saíram a correr para se encontrarem umas com as outras quando o confinamento terminou - parecia que se podia tornar nesse tipo de vida festiva. Precisamos de reinventar o nosso modo de pensar a felicidade porque neste momento temos esta dinâmica entre os prazeres hedonísticos solitários e esta necessidade puramente química de trabalhar mais e mais para poder justificar [a sua recompensa] que está literalmente a matar-nos. Nós precisamos de sair disto de outro modo."


Angra do Heroísmo, 7 de Setembro de 2020