quinta-feira, 18 de março de 2021

Um parafuso a mais...

 

tenho um sortido

de parafusos contorcidos

apanhados por aí

nos caminhos que percorro

à velocidade que consigo

com um par de rodas

e um par de pernas

a caminho do antigo.


parafusos,

filetes revolvidos,

voltas sulcadas nos fusos

de vidas que dão voltas...

mas são rectilíneas!


encontro-os por aí

caídos no chão duro

que nos ampara a todos.

base firme

sobre a qual ora construímos

as mais frutíferas paixões

ora as desmioladas opiniões

que ornamentam os tolos.


à velocidade que consigo

sigo à margem dos que vão

fugidos daqui

futuros de si

de chaves na mão.


só eu sei que

quando lá chegam

não chegam apenas mais leves

mas também menos conexos.

afinal é para permitir

raciocínios complexos

e dar miolo aos sexos

que se sulcam e aparafusam

pernos de revolvidos filetes.


páro no meu caminho por isso.

pego no pedaço perdido

parafuso sempre contorcido

e levo-o até casa comigo

para o adicionar ao sortido.


tenho-os de todos os tipos

guardados em frascos de vidro

consoante o comprimento.

aparentemente fúteis,

guardo-os com carinho

pois certo chegará o momento

em que se tornarão úteis

a unir peças no caminho.


awf, angra do heroísmo, março 2021


(na parede do hospital Júlio de Matos, Lisboa, 2013)

terça-feira, 26 de janeiro de 2021

Sobre comer animais...

É claro que os seres humanos se comem uns aos outros diariamente e de muitas formas. Mas deixemos isso de lado e concentremo-nos na versão estrita da coisa mais comum: mastigar e engolir bifes de vaca ou filetes de peixe.

Cada cabeça sua sentença. Todos são livres de pensar, de sentir e de opinar sobre este assunto (e todos os outros), mas naturalmente as coisas tornam-se mais difíceis quando se tenta encontrar um padrão que se considere "correcto" para conduzir a nossa vida ou para conduzir a vida de todos.

E talvez a discussão possa então começar precisamente por aí, pela separação entre aquilo que é factual e aquilo que é ético ou moral. Será que existe moral sem sistema nervoso que a pense e sinta?... Para quem acredita na existência de um ou de vários deuses, possivelmente a resposta será afirmativa. No entanto, isso parece-me uma batota, porque nesse caso o deus ou os deuses estão lá precisamente a fazer as vezes de sistema nervoso pensante e senciente.

De facto, é possível sentir um grande alívio de alma quando se observa a natureza, quer nos seus eventos isolados, quer nos seus ciclos, quer no longo prazo, acreditando em algo como "as coisas são como deviam ser" ou "tudo está no seu lugar" ou "a natureza sabe o que faz"... que é tudo o mesmo que dizer que nós mesmos não sentimos necessidade de adicionar à nossa experiência qualquer juízo de valor. Quando a leoa mata o impala, o máximo que podemos dizer é "coitadinho!", mas entendemos que é a natureza, e é mesmo assim...

A moral só surge quando nós pensamos nela e a sentimos, quando fazemos juízos de valor acerca do mundo, quando tentamos separar o que achamos que está correcto daquilo que achamos que está incorrecto.

Logo a seguir surgem os conflitos entre os seres humanos, talvez mais uma das características únicas da nossa espécie, motivados pelas diferentes perspectivas sobre "a moral verdadeira". Nós não guardamos a nossa moral só para nós, nem nos cingimos a querer saber como é a moral do outro. Em vez disso nós queremos que os outros adoptem a nossa própria versão de moral. E isso, em boa verdade, faz todo o sentido. Porque os nossos juízos de valor são sempre conduzidos pela nossa razão e pela nossa emoção, e a sua aplicação, ao jeito de um filtro, àquilo que nos chega através dos sentidos, desperta inevitavelmente em nós mais pensamentos e emoções que nos podem ser agradáveis ou desagradáveis. Posto de um modo simples, se nós consideramos incorrecto atirar um papel para o chão, ser-nos-á difícil aceitar que outra pessoa atire um papel para o chão, só porque o "sistema moral" dessa pessoa é diferente do nosso e já está! Em vez disso, sentimo-nos mal. Não gostamos. Pensamos que está errado. E ou porque sentimos que temos uma mensagem de verdade a transmitir, ou apenas porque queremos evitar o nosso próprio desgosto, sentimo-nos impelidos a evangelizar o outro com a nossa versão da "moral verdadeira".

Com muita consciência pós-moderna de que, afinal, cada um tem direito à sua moral, parece-me que temos cada vez mais a tendência de evitarmos esses ímpetos evangelistas. No entanto, conforme tenho referido muitas vezes em muitos outros contextos, o meu juízo de valor sobre esse assunto diz-me que isso é um erro. Porque no momento em que deixamos de debater com os outros as diferentes versões de moral, permitimos que surjam fossos entre as pessoas, que crescem sem limites, e que fragmentam a sociedade toda. O que vivemos no nosso mundo no dia de hoje, 24 de Janeiro de 2021, talvez não seja tão alheio assim a esse movimento de recuo para uma posição confortável de "cada um é que sabe de si" e de ausência de debate.

Isto tudo para dizer que cada pessoa terá a sua versão sobre se comer outros animais está certo ou está errado, que as tentativas de evangelização podem ser catastróficas, mas que a ausência de discussão também. E, portanto, eu vou tentar dar o meu pequeno contributo para a discussão, sendo que, à partida, não tenho uma opinião bem formada sobre isto, e talvez a própria escrita do texto me ajude a iluminar alguma coisa no meu espírito.

Comecemos então pelo início. No início era o nada. Pronto. Depois veio o verbo?...

A certa altura surgiu a vida. Mas o que é a vida?... Tenho a impressão de que toda a gente sabe o que é a vida, mas que se quisermos ir ao detalhe, na verdade ninguém sabe o que é a vida!

Na escola aprendemos que um ser vivo é um ser que nasce, cresce, vive (!), e morre. Isso parece-me uma definição idiota. Há muitas coisas que nascem, crescem, vivem e morrem, como os edifícios, e não são seres vivos. Podemos então adicionar outros requisitos... Por exemplo, um ser vivo deverá ser capaz de produzir cópias de si próprio. Mas há muitos objectos capazes de produzir réplicas de si próprios que não são seres vivos!...

Sem querer entrar mais a fundo nesta questão, remeto para um texto que escrevi no passado, onde afirmo que a vida, dadas as condições físicas e químicas apropriadas, não é um milagre, antes é inevitável.

À micro-escala, um vírus é um conjunto de átomos que deambula na fronteira daquilo que se pode considerar um ser vivo, sendo que há, por entre os estudiosos, quem considere que os vírus são seres vivos, e quem considere que não são.

Imaginemos agora que uma molécula incorpora outra molécula na sua própria constituição, passando as duas moléculas a ser uma terceira molécula, diferentes das originais. Podemos dizer então que uma molécula comeu a outra?... Ou será que devemos dizer que a outra é que comeu a uma?... Quem é que comeu quem?...

No contexto das moléculas, "comer" é equivalente a uma reacção química. E no contexto da construção de uma moral acerca do que se deve ou não deve comer, creio que ninguém irá emitir juízos de valor acerca do ser correcto ou não ser correcto existir uma reacção química.

Assim, creio que não existirão objecções morais à ingestão de vitaminas na forma de comprimidos (e vamos imaginar que os comprimidos caíram do céu, por um momento).

Um pequeno aparte: se nós somos constituídos de matéria, de átomos organizados em moléculas, e se quando ingerimos vitamina C ela passa a circular no nosso organismo, reagindo aqui e acolá, e desse modo transformando-o, será que somos nós que comemos a vitamina, ou será que é a vitamina que nos come a nós?...

A partir daqui, os dados estão finalmente lançados para a discussão. Porque a partir de moléculas simples, podemos avançar para os vírus. E se ninguém levanta objecções acerca da ingestão de moléculas simples, provavelmente poucos levantarão objecções à ingestão de vírus.

As leveduras são seres vivos. Creio que sobre isso há um consenso. E suspeito que haverá também um consenso acerca da não objecção à ingestão de leveduras, pelo menos tentando olhar ao ponto de vista da levedura, porque se olharmos ao nosso ponto de vista então temos de ter algum cuidado com a levedura que ingerimos, se não queremos arranjar um problema de saúde.

Podemos então seguir toda uma cadeia imaginária de seres, segundo os nossos padrões, cada vez mais complexos. Juntamos sensores que permitem "tocar" no meio envolvente. E outros que permitem "cheirar". E outros que permitem "ver". E quando estamos perante seres vivos que conseguem "ver" o mundo, aí começamos a pensar que esses seres também precisam de "processar" o mundo. Ou seja, além de o sentirem, também precisam de o pensar.

Mais uns passos à frente e estamos a chegar ao fim da linha, com mamíferos, golfinhos, primatas e nós mesmos: habitualmente, e apesar de sermos capazes de estupidezes impensáveis no reino dos fungos, colocamo-nos sempre no extremo superior da complexidade, da perfeição, da consciência.

Se é então possível estabelecer uma cadeia contínua desde as vitaminas até aos seres humanos, atravessando no seu início essa distinção, mais difusa do que parece à primeira vista, entre seres vivos e seres não vivos... e se não vemos problema algum na ingestão de vitaminas e leveduras, mas vemos problema na ingestão de seres humanos (antropofagia), a questão que logicamente segue será: onde, ao longo dessa escala de complexificação crescente dos seres vivos, é que o nosso julgamento moral nos começa a fazer comichão?

Passemos agora para o extremo supostamente mais complexo. Porque é que quase todos os seres humanos (tanto quanto me apercebo) têm um inequívoco e muito forte sentido moral em relação à antropofagia?

Imaginemos o caso real de sobreviventes de um acidente de aviação que ficam perdidos no topo de uma montanha gelada, que estão rodeados de cadáveres e que não têm mais nada para comer. Será errado comerem carne dos cadáveres?... Bom... isso a mim não me choca muito... mas creio que muitos discordarão de mim. Há o "espírito" dos mortos, há os familiares das vítimas, há sei lá que outras considerações que se juntam num imbróglio complexo no qual não me quero meter agora.

Mas matar outro ser humano para o comer é algo que certamente parecerá a quase todos nós errado. Aqui não está apenas em causa o comer carne humana, mas também o tirar a vida a outro ser humano. No entanto, e novamente, a consideração de que tirar a vida a outro ser humano é errada é, ela própria, um juízo moral, sobre o qual, aliás, e infelizmente (digo eu), não existe consenso. Mas admitamos que sim...

Parece então que o problema não se centra tanto no acto de comer, mas sim no acto de tirar a vida, de matar.

Se consideramos incorrecto matar outros seres humanos, será que consideramos correcto matar macacos. Porque há quem tradicionalmente mate macacos para os comer.

Não sou perito em história, mas parece-me que desde tempos imemoriais os seres humanos se consideraram numa classe à parte dos outros seres vivos. No entanto, pelo menos ao longo dos últimos séculos, fomos percebendo que muitas características que julgávamos únicas em nós, afinal também eram partilhadas por outros seres. E então começou o que sempre me pareceu ser uma corrida na demanda do santo graal, daquela característica única que nos possa separar de todos os outros seres vivos. Uns disseram que era a consciência, outros que era a habilidade manual, outros que era sei lá o quê... E essa busca parece nunca acabar. Do mesmo modo que quando tiram alguma característica diferenciadora a um povo, logo ele se apressa a ir encontrar outra que a possa substituir, nem que seja a sua ascendência celta ou algo do género.

No entanto, aos meus olhos, nós fazemos parte de um contínuo. Entre nós e os outros seres vivos existem diferenças, claro que sim, tal como existem diferenças entre um pardal e um golfinho, mas essas diferenças são mais de grau, ao longo de uma mesma escala, do que propriamente diferenças radicais. Em algumas mitologias, alguns deuses deram aos seres humanos uma coisa especial que não deram a nenhum outro ser vivo. Mas cá em baixo, no mundo real, essa coisa especial sempre foi objecto de muito controvérsia e... se calhar... simplesmente não existe.

Portanto, o mesmo fundamento que podemos aplicar à questão de tirar a vida a um humano, para julgar esse acto como incorrecto, talvez também possamos aplicar à questão de tirar a vida a um orangotango ou a um chimpanzé.

Ou a um cão. Aqui, em Portugal, todos se escandalizam porque os asiáticos comem cães. Mas porquê?... Porque é que isso nos escandaliza?... Porque, culturalmente ou não apenas, estamos habituados a olhar para os cães como "nossos amigos", e fieis companheiros, e seres sensíveis, que pensam, que expressam emoções. Entretanto, nos países asiáticos, talvez as pessoas olhem para os cães como nós olhamos para os porcos. E, no entanto, é possível ter um porco como animal de estimação, tal como se tem um cão. Um porco também sente, também pensa, também expressa emoções. Veja-se por exemplo este documento, todo, ou apenas a página 19.

Portanto, e novamente, os seres vivos podem ser ordenados conforme a sua complexidade, ou consoante outra característica qualquer, sendo que (quase) todas elas variam ao longo de um contínuo. E se num extremo dessa escala nós nos chocamos com o tirar a vida e comer outros animais, e no outro extremo nem por isso, é porque algures pelo meio alguma coisa acontece que faz um clique cá dentro. O que será isso?

Para muitos, incluindo Carl Sagan e eu próprio, essa característica que avaliamos é a semelhança connosco. É a empatia, real ou imaginada, é aquilo que conseguimos reconhecer de nós próprios no outro ser que está à nossa frente.

O "direito à vida" não é, e nunca foi, para nós um direito universal. Nunca nos lembramos de escrever tratados e normas sobre o direito à vida das leveduras. O direito à vida é por nós considerado com maior ou menor gravidade precisamente em função das semelhanças que encontramos entre o outro e nós próprios. É assim quando avaliamos o direito à vida de cães, porcos ou peixes, mas também o é, feliz ou infelizmente, num tribunal dos EUA: se os elementos do juri forem capazes de reconhecer no réu muitas características que conhecem em si próprios, mais dificilmente o irão condenar.

Gostava, neste ponto, de acrescentar mais uma variável ao problema: a questão da alimentação humana enquanto actividade económica.

De facto, lá para trás neste texto, assumi que o saco de vitaminas tinha caído do céu. Mas na verdade, nenhum alimento cai do céu, pelo menos em sentido figurado. Se o nosso juízo moral abarca questões sobre tirar a vida a outros seres vivos, também me parece que devia abranger questões sobre a qualidade da vida de outros seres vivos, a começar pela qualidade de vida dos próprios seres humanos. E isso remete para considerações sobre os modos como as economias se organizam para produzir e comercializar os produtos alimentares. Essa é uma questão muito complexa em si mesma, e portanto vou deixá-la de parte, pelo menos por agora.

Há depois o maior ou menor impacto ecológico que a produção de alimentos tem. Se tudo tem um impacto, nem tudo é igual: uma plantação de vacas causa um impacto diferente de um conjunto de pescadores com cana sentados nas rochas à beira-mar. Novamente, isto também é um assunto em si mesmo...

Há ainda a questão de saber que vida levam os animais até ao momento em que os matamos para os comer: serão vidas livres ou subjugadas? isso far-lhes-á mossa? sentirão dor?...

Finalmente, há as nossas considerações mais antropo e egocêntricas: nós precisamos de comer, sempre fizemos assim, e gostamos.

Portanto, assumindo que queremos fazer aquilo a que estamos habituados, queremos comer aquilo que nos apela mais aos olhos e ao paladar, queremos preservar os equilíbrios ecológicos existentes, queremos respeitar a vida e a morte dos outros seres vivos... claramente temos aqui um enorme conflito de interesses.

Num assunto onde os conflitos de interesses são inerentes a cada um de nós, não deve ser surpresa alguma que não exista sequer uma sombra de consenso global.

O que fazer então?

Bom, certamente antes de começarmos a tentar evangelizar quem quer que seja com o nosso código pessoal de conduta moral, talvez fosse melhor tentarmos resolver os conflitos internos que nós próprios temos. Eu tenho esse conflito de interesses. Eu quero poder existir alterando a vida de todos os seres humanos, mas não alterando a vida de qualquer outro ser vivo!...

O compromisso que tento encontrar inclui o seguinte:

  • diminuir o consumo de animais
  • ordenar os seres vivos pela capacidade que eu lhes reconheço de sentir e pensar (reconhecendo que é um método pouco preciso!), e diminuir mais fortemente o consumo dos animais que considero mais sencientes e pensantes
  • preferir, na medida do possível (o que geralmente é na medida da carteira) os alimentos (animais ou vegetais), cujos processos de fabrico e comercialização impliquem os menores impactos ambientais e os menores sofrimentos para os animais, e também que sejam o mais justos possível em termos económicos (o que basicamente se pode resumir a analisar para onde vai o dinheiro que eu pago na compra dos alimentos: para o bolso de um ricaço ou para os bolsos dos trabalhadores?)
  • como exemplo: prefiro caçar o meu próprio peixe no mar, porque os peixes (pelo menos alguns) estão na minha escala pessoal abaixo das galinhas, porque sei que não há desperdícios no processo, porque o impacto ecológico do que faço é pequeno, porque os peixes vivem livres até ao momento da captura, porque quando os caço tenho o cuidado de os matar o mais rapidamente possível...
  • não aderir a práticas que me parecem completamente alheias às considerações que acabo de tecer, mas...
  • não ser completamente inflexível no sentido de ofender os outros nas suas crenças, nos seus padrões morais, nos seus costumes
  • e nesse sentido, não tentar evangelizar os outros acerca do que considero mais ou menos correcto, sobretudo quando eu me sinto um assassino.

Resolver estas questões de uma forma melhor, que nos deixe mais confortáveis a todos, parece-me que terá de envolver algumas mudanças muito radicais ao nível do funcionamento da economia global e das cabeças das pessoas. Também as novas tecnologias (incluindo as "bio") podem ser chamadas a intervir, embora isso no meu ver seja uma parcela das questões económicas.

Se há alguma coisa neste assunto que eu defendo sem hesitação, é que não podemos nunca ficar agarrados a uma maneira de fazer as coisas, justificando-a por si mesma, porque sim, porque sempre foi assim. Todas as melhorias implicam mudança.

Finalmente, e voltando ao princípio, defendo que estas questões devem ser mais debatidas. Não numa tentativa de encontrar "a moral verdadeira" ou de impor um ponto de vista sobre os outros, mas precisamente numa tentativa de crescimento interior e de coesão social. Já nos bastam os discursos de ódio incentivadores de clivagens!

quarta-feira, 6 de janeiro de 2021

O desperdício alimentício...

Todos os textos que consegui encontrar acerca deste tema partem do princípio de que o desperdício alimentar é mau, e de que o leitor está completamente consciente de que isso é mau e que deve ser combatido.

Por exemplo, no portal de Internet da Comissão Europeia pode ler-se:

"In the EU, around 88 million tonnes of food waste are generated annually with associated costs estimated at 143 billion euros (FUSIONS, 2016).

Wasting food is not only an ethical and economic issue but it also depletes the environment of limited natural resources."

Talvez quem escreve esses textos saiba que, afinal, não é assim tão óbvio que o desperdício alimentar seja uma coisa má. Mas uma coisa é certa: uma mentira repetida até à exaustão torna-se, na cabeça de um público pouco atento, indistinguível de uma verdade. E se isso é assim com uma mentira, com uma meia-verdade é-o ainda mais.

Este assunto é complexo. Portanto a sua análise não será simples nem curta. Quem quiser ler um pequeno artigo que o faça rir, por favor procure "funny cats" no youtube, e boa sorte!

Vamos tentar partir de uma análise mais simples, num contexto que nos é mais familiar: a nossa casa. Na nossa casa, não gostamos de desperdiçar alimentos. Certo? Bem... nem aí a coisa é assim tão evidente.

Precisamos de definir, antes de mais, o que é isso de desperdício alimentar. O conceito usualmente aceite diz-nos que o desperdício alimentar é a classificação e tratamento como lixo de produtos que ainda poderiam ser utilizados na alimentação humana, sem colocar em risco a saúde dos consumidores. Assim, uma banana que está muito madura ainda pode ser comida sem risco para a saúde, portanto deitá-la ao lixo será um desperdício. E assim também com os restos de um jantar.

Mas, o que acontece em nossas casas se ninguém gostar de comer a cabeça do peixe?... No final do jantar a cabeça do peixe está em perfeito estado para consumo, mas ninguém a quer consumir. Portanto deita-se fora. Portanto há um desperdício. Como é que se combate este desperdício? Incentivando as pessoas a comerem aquilo que antes não gostavam?... Talvez com longas campanhas sobre hábitos alimentares... Nada que não esteja previsto.

Mas, quão tristes ficarão os membros da família se a cabeça de peixe, de que ninguém ali gosta, for deitada no lixo?...

Imaginemos que essa família tem um gato, e que deixa para o gato as partes do peixe de que ninguém gosta. Nesse caso não existe desperdício alimentar. Ou existe?... Afinal a nossa definição de "desperdício alimentar" falava de "alimentação humana"... Mas, bolas, se o gato não comer isso, terá de comer outra coisa qualquer!... E de qualquer modo o PAN tudo fará para que as pessoas não sejam discriminadas com base na sua espécie! Portanto, dar-se-á a cabeça de peixe ao gato, não será considerado qualquer desperdício alimentar e todos ficarão mais felizes.

Vejamos a coisa do prisma do alienígena que está sentado na lua a olhar cá para baixo. No primeiro caso, a família não tem gato, entra um peixe em casa, sai uma cabeça para o lixo. No segundo caso, a família tem gato, entra um peixe em casa, não sai lixo. Quem é que ganha com isso?...

Podemos acreditar que neste segundo caso todos ganhamos com isso. Mas vejamos as coisas mais de perto. A matéria de que o peixe é constituído não desaparece, apenas se transforma. Quando o peixe entra em casa, essa matéria acabará por sair dessa casa, sob uma forma ou outra, aconteça o que acontecer. Se o peixe não for comido, a matéria sai pouco alterada em forma de lixo doméstico. Se o peixe for comido, a matéria sai bastante mais alterada, em forma daquilo que os corpos dos animais excretam, fezes e urina, mas incluindo também gases exalados, unhas, cabelos e pele.

Qual é a diferença, em termos de impacto para o ambiente, se o peixe sai de casa em forma de lixo ou em forma de fezes?... Talvez por aqui possamos começar a perceber que as respostas não são assim tão imediatas ou óbvias.

Imaginem que depois de longas análises sobre o tratamento de resíduos domésticos concluímos que tanto dá o peixe sair da casa num formato ou no outro. Nesse caso, talvez possamos afirmar que a situação da casa com gato é melhor, porque o mesmo peixe serviu para mais: não apenas serviu para alimentar a família, mas também serviu para alimentar o gato.

Mas, alimentar o gato é um dos objectivos a atingir na luta contra o desperdício alimentar?...

Não se iludam pelo aspecto idiota das perguntas que coloco, porque elas são muito sérias.

Porque é que alimentar o gato pode ser um dos nossos objectivos?... Será por sentirmos que o mesmo peixe está a alimentar outra vida?...

Bom, imaginemos que as águas residuais, por onde fluem os excrementos da família e do gato, são tratadas numa estação de tratamento que inclui, numa das etapas do tratamento, a digestão da matéria orgânica por algum tipo de microorganismo. Creio que essa é uma situação comum, nos dias que correm. Senão, podem imaginar que a estação de tratamento se chama "oceano" e que as águas residuais no oceano servem de alimento a uma quantidade imensa de algas e outros micro e macroorganismos.

Talvez possamos concluir que, afinal, dê por onde der, o peixe irá sempre alimentar outros organismos, sejam eles quais forem. De facto, a menos que o peixe tenha um fim muitíssimo invulgar, e seja cremado num tanatório ou se transforme em fóssil ou algo do género, ele será sempre alimento para outros seres vivos, mesmo que viva a vida inteira livre e feliz da silva no oceano.

Nesse caso talvez tenhamos vontade de argumentar algo como: mas não vamos comparar a vida das algas com a vida do gato!

Porque não?... Claro que vamos comparar. As famílias que têm um gato dão mais importância à vida do gato do que à vida das algas que se alimentam de excrementos. Porquê?... Talvez porque um gato seja um mamífero, e nele possamos reconhecer comportamentos semelhantes a outros mamíferos e também a nós próprios. Talvez porque o gato é peludo e nós gostamos, por algum motivo misterioso, de coisas peludas. Talvez porque aquele é o "nosso" gato, do qual já conhecemos as manhas, e que também nos conhece.

De qualquer modo, quando comparamos a vida do gato à vida das algas, deve ser claro para todos que não é fácil, filosoficamente, determinar preto no branco que uma vida vale mais do que a outra, pelo menos sem entrar com juízos do tipo de "a vida do ser X vale mais PARA MIM". Dito de outro modo, e resumindo, trata-se no fundo daquilo de que gostamos mais ou menos, do nosso bem estar.

Mas, se é disso que se trata, então não faz sentido que tenhamos agora de aprender a gostar das partes dos alimentos de que antes não gostávamos!... Se as campanhas de luta contra o desperdício da cabeça do peixe nos fazem sentir mal, mais nos vale comprarmos um gato, que assim deixa de haver desperdício de cabeças e todos ficam mais felizes. Portanto, substituamos já a campanha da luta contra o desperdício alimentar, por uma campanha do tipo "um gato em cada casa"!

Ah, é claro que o gato volta e meia sai à noite e mata um pardal ou uma sardanisca, mas o que é que se há-de fazer?... Bom... talvez em vez de um gato possamos optar por um porco. Afinal, os gatos têm pinta de serem muito esquisitos com a comida, e os porcos têm fama de comer as coisas mais incríveis. Ou uma cabra! Adopte já a sua cabra!...

Mas, se o objectivo é apenas o de não sentirmos que a comida vai para o lixo sem antes ter feito alguma coisa que possamos considerar útil... então talvez possamos montar a nossa própria central de tratamento de resíduos orgânicos, da qual possamos extrair calor, gás e outros materiais úteis! Ah, mas se calhar mais vale fazer isso em centrais de tratamento maiores, que são mais eficientes! Mas, se o nosso concelho possuir uma estação de tratamento então, ah!, mais vale deitar as coisas ao lixo!

Espero, com estas minhas histórias parvas, que percebam onde estou a querer chegar: não é fácil estabelecer qual é o problema do desperdício alimentar nas nossas casas, enquanto consumidores, nem determinar qual é o melhor modo de agir.

Será que queremos todos comer as coisas que ainda são alimento mas das quais não gostamos?... É esse o futuro risonho que estamos a delinear para a humanidade?...

Ninguém normal gosta de comer espinhas de peixe. Mas isso não quer dizer que elas não possam ser comidas e que não contenham nutrientes. Há certamente muitos processos físico-químicos capazes de transformar espinhas de peixe em algum tipo de farinha ou papa comestível. Nesse caso, deitar as espinhas de peixe ao lixo pode ser considerado um desperdício alimentar...

Mas continuemos ainda a acompanhar a nossa família, deslocando agora o problema daquilo que se deita fora, para aquilo que se adquire e se consome. Podemos pensar que o ideal seria a nossa família aprender a comer o peixe inteiro, incluindo cabeça, espinhas, escamas e entranhas (os romanos faziam com elas um pitéu, apodrecido ao sol, a que chamavam garum), mesmo no caso do peixe-porco... e assim reduzir as suas necessidades de aquisição de peixes. De facto, um peixe mais pequeno serviria para alimentar toda a família.

Não apenas o peixe poderia ser mais pequeno, mas também os recursos consumidos na sua confecção poderiam ser poupados: menos água, menos energia, menos condimentos, menos tempo.

Começemos com este último: a poupança de tempo.

Neil Postman conta a história verídica de ter feito parte de uma comissão de avaliação do projecto de desenvolvimento de um avião supersónico nos Estados Unidos. Como membro da comissão, ele distribuíu um inquérito por potenciais utilizadores desse avião a perguntar se gostariam de poder viajar mais depressa, tendo a resposta sido um rotundo "sim". A pergunta seguinte era: o que é que faria com o tempo extra. A resposta maioritária a esta questão foi: "veria mais televisão". No final a comissão optou por colocar televisores nos aviões já existentes. Ponto final!

Entretanto, cá entre nós, conta-se a anedota do tipo que foi de férias para um lugar exótico (segundo os seus padrões), onde havia um homem que se sentava todas as tardes a pescar. O tipo meteu conversa. Ao perceber qual era a técnica de pesca utilizada pelo homem, não conseguiu evitar sugerir algumas melhorias. "Para quê?", perguntou o homem. "Bom, assim você pode pescar não apenas o que necessita para comer, mas mais algum peixe, e pode vendê-lo". "Para quê?", insistiu o homem. "Bom, com esse dinheiro você pode comprar um barco, e então já não precisa de pescar aqui sentado, e poderá pescar no mar alto, onde há mais e melhor peixe". "Para quê?". "Bom, assim você terá dinheiro suficiente para fazer a sua empresa de pesca". "Para quê?". "Bom, assim você poderá deixar o trabalho da pesca para os outros e poderá fazer o que bem lhe apetecer". A isto o homem que pescava respondeu simplesmente "eu já faço aquilo que me apetece!".

Portanto, será a campanha contra o desperdício alimentar uma campanha no sentido de utilizarmos menos tempo a cozinhar?... Não me parece. Até porque, creio, se muitas pessoas no planeta tivessem mais tempo livre, passariam mais tempo a cozinhar!

Passemos agora à possibilidade de poupança dos outros recursos. Aqui a coisa torna-se mais interessante.

Parece natural a ideia de que "poupar água" é uma coisa evidentemente boa. Mas será?... Imaginemos que vivemos no topo de uma montanha. Ao lado da nossa casa corre um pequeno fio de água potável, ao qual recorremos sempre que precisamos de água. Um dia, cansados de ir até à água, instalamos um tubo para que a água venha até nós. Neste contexto, não fará sentido ensinar aos nossos filhos "quando lavares os dentes, fecha a torneira, para poupar água!". De facto, não faz sequer sentido ter torneira. Pelo contrário, se instalarmos uma torneira, e quanto mais tempo a mantivermos fechada, pior.

Pensemos na energia. Se a energia que consumimos não for renovável, então talvez fosse bom utilizarmos energia renovável. E, para não cair no mesmo erro dos textos que assumem que existe um problema e que toda a gente sabe qual é e portanto não precisam de o explicar, digo apenas que a utilização de algo que não é renovável obviamente não se pode perpetuar, logo requer uma alternativa. Nesse caso, a campanha contra o desperdício alimentar poderia passar a ser uma campanha pelo uso exclusivo de energia renovável! Além da adopção de um gato, claro!

Mas, se utilizarmos energia renovável, qual é o problema de utilizarmos mais ou menos energia?... O Sol irá aquecer-nos de igual modo. E a água continuará a brotar da fonte de igual modo.

Já irei regressar à questão do uso da água. Por ora, foquemos a nossa atenção no próprio peixe que a família consome. Se, à conta da família consumir o peixe até à última escama, ela puder consumir menos peixe, melhor! Ou será?...

Imaginemos que existe no meio da floresta uma árvore que dá frutos comestíveis. Qualquer coisa... sei lá... dá nozes!

Se ninguém souber da existência dessa árvore, as nozes irão cair ao chão e irão ser comidas pelos seres da floresta. Dito assim, até parece uma coisa mística!... Mas os seres da floresta são todos muito terrenos: esquilos, ratos, fungos, caracóis, etc. Esses seres serão eles próprios consumidos mais tarde por outros seres. Se a floresta existir há muito tempo e nela o homem não colocar o dedo, é provável que existam equilíbrios ecológicos estáveis, mesmo que cíclicos. Em todo o caso, como ninguém sabe da existência da nogueira, a sua produção anual de nozes não será contabilizada como desperdício alimentar.

Porém, se a humanidade souber da existência da árvore, a questão poderá colocar-se: as nozes que caem ao chão devem ou não ser consideradas como "desperdício alimentar"?... Afinal são produtos que podem ser utilizados na alimentação humana!... Assim, de acordo com esta definição, a única forma de evitarmos o desperdício é darmos as nozes a comer a seres humanos ou quase-humanos (gatos), talvez considerando a possibilidade de devolver à floresta as respectivas fezes. Vejam só a diferença que faz o conhecimento ou a ignorância da existência da nogueira!...

Se os humanos retirarem as nozes da nogueira, irão afectar os equilíbrios ecológicos existentes. Isto, colocado sem contexto ou mais explicação no discurso do hoje em dia pode parecer uma tragédia. Mas não é. A natureza evolui, e até os continentes deambulam pela superfície da Terra sem necessidade da intervenção divina ou humana. Isso significa que há constantemente factores que afectam os equilíbrios ecológicos existentes. E nós somos um desses factores.

A verdadeira questão, nisto e em tantas outras coisas, é sabermos que temos o poder para alterar muito os equilíbrios, eventualmente levando-os a ultrapassar pontos de não retorno (talvez o caso mais evidente seja o da extinção de espécies, coisa em que o ser humano conseguiu superar em muito a natureza... talvez com excepção da colisão com outro planeta!), e com esse conhecimento, e também com o conhecimento do nosso desconhecimento, sermos capazes de definir os equilíbrios que pretendemos alcançar.

Que (des)equilíbrios pretendemos alcançar?... Onde é que eles estão delineados na dita "estatégia nacional de combate ao desperdício alimentar" que nos vão enfiar à força pela goela abaixo?... A isso é que é importante responder. E de que maneira!...

Porque não falo apenas nos equilíbrios ecológicos, senão também dos equilíbrios económicos, e com eles os equilíbrios sociais. Afinal qual é a visão de futuro?...

Curioso, que os mentores desta campanha, tão adeptos do instrumental do marketing que não conseguiram evitar espetar uma análise SWOT na dita estratégia nacional, não tenham também recorrido à receita que vem logo à cabeça no cardápio de qualquer empreendedor ou qualquer empreendimento: visão, missão, objectivos...

Afinal, qual é a visão?

Mas voltemos à utilização de menos peixe por parte da família, a ver se a pertinência da questão que acabo de levantar se torna mais clara.

A questão, conforme afirmei, é a de saber que equilíbrios ecológicos pretendemos manter, ou em que nível. Se retirarmos todas as nozes da floresta, podemos afectar irreversivelmente o seu equilíbrio. Mas se retirarmos apenas algumas, talvez se atinja outro equilíbrio. Talvez a população de esquilos diminua um pouco e com isso a população de outros seres aumente ou diminua um pouco... mas tudo encontre uma outra forma de existir.

Retirarmos peixe do mar é como retirarmos nozes desta mítica nogueira que vive isolada no meio da floresta: nós não temos de fazer nada, só temos de esperar, e ir lá buscar. É assim que funciona a pesca no mar.

Durante muito tempo os seres humanos pensaram que os oceanos eram tão grandes que a sua actividade pesqueira não poderia afectar o que quer que fosse. Depois perceberam que não era assim, mas continuaram a pescar. Afinal, os peixes do oceano têm características que os tornam semelhantes aos bens públicos: a captura de qualquer agente individual afecta muito pouco o resultado global e é muito difícil limitar a nível global a quantidade pescada. Ou seja, a humanidade, e sobretudo em determinados sistemas económicos e ideológicos, funciona muito mal quando é necessário agir colectivamente. Talvez o facto de estarmos todos imbuídos de um espírito de individualismo e salve-se quem puder, e sermos pouco educados para o trabalho colectivo na implementação de soluções colectivas para problemas colectivos tenha alguma coisa a ver com isso... Mas isso sou eu a dizer.

O que temos agora na pesca é uma situação em que são fixadas quotas: montantes máximos que se podem pescar. Independentemente de sabermos se as quotas são bem distribuídas pelos pescadores de todo o mundo e de sabermos como poderão ou não ser fiscalizadas, a lógica subjacente é a de que é possível retirar do mar uma determinada quantidade de peixe em cada ano, mantendo ainda assim determinados equilíbrios ecológicos nos oceanos e mares. Se os equilíbrios almejados são ou não "bons" é outra questão, e talvez a questão mais importante.

Voltemos à questão do consumo de água. Nos dias que correm, quase todos nós recorremos a água potável canalizada. Para que esse fornecimento seja possível, é necessário que a água tenha sido retirada àquilo que seriam cursos de água naturais, ou aquíferos naturais. É uma espécie de "desvio" da água para outros fins, equivalente ao desvio das nozes da floresta. Além disso, a água sofre quase sempre um tratamento para garantir que o seu consumo directo não coloca em risco a saúde das pessoas. E esse tratamento implica geralmente a utilização de substâncias químicas, frequentemente com cloro. Toda a "indústria" responsável por isso tem um impacto no meio ambiente.

E, já agora, aproveitemos o balanço para dizer que "impacto no meio ambiente" significa precisamente um impacto nos equilíbrios ecológicos existentes. Não significa, ao contrário da ideia de algumas pessoas, que o ambiente fica danificado porque fica com mau aspecto... Essas são as pessoas que consideram que um campo de golfe é muito melhor para o ambiente do que um matagal com silvas, o que é profundamente errado, mesmo que as silvas sejam invasoras nesse local.

O consumo de sal, de pimenta, de água canalizada, de peixe e de outras matérias primas ou subsidiárias na culinária tem sempre impactos ecológicos. E enquanto nós, seres humanos, existirmos, iremos sempre causar impactos ecológicos.

Não pretendo com este discurso legitimar a máxima cristã (ou católica... não sou especialista dessas matérias) do "crescei e multiplicai-vos" ou da subjugação da natureza à vontade dos seres humanos. Pelo contrário, do meu ponto de vista o ser humano nunca teve legitimidade para extinguir uma única espécie de ser vivo, e portanto já causou, e continua a causar, muito mais impacto do que devia.

O que pretendo dizer é que a existência de seres humanos tem inevitavelmente impactos no meio. Portanto, e regressando à nossa família piscívora, se pretendemos causar menos impacto no meio, então temos de ser sérios. Uma pequenina demonstração de seriedade seria por exemplo transformar o nome da campanha de "luta contra o desperdício alimentar" em "luta contra o impacto ecológico". Um pequenino pormenor que porventura faria toda a diferença!

Portanto, e fazendo um resumo excessivo do que ficou dito até aqui, fundamentar a necessidade de combate ao desperdício alimentar com base no destino dado aos alimentos não consumidos é enganador. Muito enganador, aliás... mas já voltaremos a este assunto. Por outro lado, fundamentar a necessidade de combate ao desperdício alimentar com base nos recursos consumidos só faz sentido se lhe estiverem subjacentes preocupações com os equilíbrios ecológicos existentes.

Mas a actividade económica, toda ela, tem impactos nos equilíbrios ecológicos existentes. Serão os defensores do combate ao desperdício alimentar também combatentes da lógica do crescimento económico?... A julgar pelo número de pessoas que espontaneamente concordam com a luta contra o desperdício alimentar, e pelo número de adeptos das correntes de decrescimento económico, isso não parece provável.

Mas deixemos os "adeptos" de parte e foquemo-nos nos responsáveis, nos impulsionadores desta tão grande e tão justa campanha. Lembremo-nos que nós, enquanto cidadãos, se quisermos aprovar uma qualquer norma legal sobre o mais mixuruco assunto, teremos de suar as estopinhas. Mas os promotores desta campanha não suaram muito para terem do seu lado os organismos da União Europeia, as Nações Unidas, os governos de muitos países, e para aprovarem legislação adequada (como a "Estratégia Nacional para o Combate ao Desperdício Alimentar") com a respectiva dose adequada de verbas.

Ou seja, perdoem-me se tenho de expor esta pequenina hipocrisia, mas são as instituições que gerem dinheiros públicos (ou privados) que ao mesmo tempo são os maiores promotores das políticas do crescimento económico, responsáveis pelos problemas ecológicos que enfrentamos hoje e teremos de enfrentar amanhã, e que canalizam verbas e boas intenções da população toda em geral para o combate ao desperdício alimentar, alegando o seu impacto sobre o meio ambiente!

Sejamos sérios!...

Voltemos ao peixe!

A família está farta de ter de tratar destes assuntos por sua conta, do gato, das fezes e do cheiro a peixe na roupa e no cabelo, e opta agora por ir comer peixe ao restaurante. Dependendo do restaurante, alguns servirão doses muito nouvelle cuisine que darão para a cova de meio dente, e outros tentarão seduzir a sua clientela pela estratégia da quantidade. Para estes, não é do seu interesse reduzir a dose em cada prato ao estritamente necessário. Note-se que o estritamente necessário, conforme recomendações de peritos na matéria, é quase sempre menos do que aquilo que nós estamos dispostos a comer. Mais do que isso é gula. E essa é precisamente a arma de muitíssimos restaurantes!

Portanto... será que a estratégia de combate ao desperdício alimentar é também uma campanha para lavagem cerebral dos donos de restaurantes, no sentido de os conduzirem todos para o lado bom da força, ou seja, aquele que nos dá apenas aquilo que nos faz bem?... Não me parece. Isso certamente iria reduzir em muito o negócio da restauração...

Mas optemos pelo caminho intermédio: o restaurante serve quantidades generosas, mas tem o cuidado de embalar o que não for comido para que o cliente leve consigo para casa, mesmo que por trauma de passado pobre ele não tenha a lata de pedir isso mesmo. Ora essa opção, num contexto em que as pessoas optem pelos restaurantes com elevada frequência, tem o mesmo efeito: ameaça o negócio!

Portanto, novamente enfrentamos o antagonismo entre o impacto ecológico da nossa actividade e o seu benefício económico. Há que decidir!

Imaginemos, por completo desvario, que os promotores da Estratégia Nacional Contra o Desperdício Alimentar defendem efectivamente a redução das quantidades vendidas nos restaurantes, e com isso a sua actividade, porque estão efectivamente preocupados com os desequilíbrios que a actividade dos seres humanos causa na natureza. Na mesma linha, eles promovem uma campanha de sensibilização de toda a população para consumir apenas o indispensável. Toda a actividade económica diminui, e com ela o respectivo impacto ambiental. Reduz-se a necessidade de produção de alimentos e reduz-se a necessidade de utilização de recursos como a água, os pesticidas, os gasóleos agrícolas, a própria terra.

Seria bom que esta luta contra o desperdício alimentar incluísse, na sua visão de um mundo futuro, alguma coisa nesses termos. Mas, se assim fosse, e se tivesse sucesso, parte dos terrenos que agora são utilizados na agricultura e na pastorícia deixariam de ser afectos a esses fins.

Nessa circunstância, qual é então a dita "estratégia" relativamente aos terrenos que se iriam tornar devolutos?

Isso não está clarificado nos textos que abordam este assunto, mas devia. É, efectivamente, uma questão da maior importância. Porque mais importante do que saber o que fazer com terrenos devolutos (não será difícil encontrar ocupação alternativa) é evidenciar ao que vimos nós afinal!

Se efectivamente esses maiorais fossem sérios, e se as suas intenções fossem efectivamente as de preservar alguns equilíbrios ecológicos existentes, ou de reestabelecer alguns que já se perderam, então os terrenos devolutos deviam ser restituídos à natureza.

Infelizmente, restituir terrenos à natureza é algo tão excepcional nas políticas públicas que, se isso não estiver tão riscado em forma legal como o esforço que irá ser feito para não se deitar cabeças de peixe ao lixo, é praticamente garantido que não será feito. Muito mais provável é que esses terrenos passem a ser utilizados noutras actividades económicas com tanto ou maior impacto no meio ambiente, como a silvicultura, a mineração, a construção de barragens ou simplesmente de mais centros comerciais.

Todavia, convém não continuar no desvario das boas intenções colocadas à força em instituições com histórias que deviam falar por si. Se tais compromissos não estão nos documentos legais ou expressos nas missões e visões de documentos marketinguianos tão bem elaborados, certamente não será por acaso.

Mais provável é que não se pretenda reduzir a actividade agrícola, pecuária ou piscatória. Mais provável é que com isto tudo se consiga simplesmente aumentar aquilo que é conhecido no jargão dos entendidos como "capacidade de carga" do planeta Terra, ou seja, a quantidade de pessoas que se considera que a possam habitar, num determinado momento, de forma sustentável.

Talvez o objectivo seja então o de, mantendo o impacto ecológico actual, mitigar as necessidades alimentares não satisfeitas na população (poderíamos dizer que seria uma troca de gatos por pobres famintos). Afinal, é do senso comum que não se deve deitar comida ao lixo porque há crianças a morrer à fome em África!... Abordemos então esse assunto.

O assunto das criancinhas a morrer à fome em África é, só por si, suficiente para encher umas quantas páginas. Vou tentar resumir algumas ideias. A primeira é a de que a ideia de que as pessoas morrem à fome por falta de comida é, em grandessíssima medida, falsa. No mundo em que vivemos, dominado pelo sistema e pela ideologia capitalista, tudo se compra e tudo se vende. Se as pessoas morrem à fome é porque não têm dinheiro para comprar alimentos. Duvidam?... Se sim, então juntem-se a mim na "Estratégia Nacional para Dar Dinheiro A Quem Não O Tem". Vamos encher os bolsos dos etíopes de dinheiro e vamos ver o que acontece a seguir!... Até já consigo ver os McDonalds a surgirem nas savanas!...

Poderemos pensar que a quantidade de alimentos existente no planeta é limitada, e portanto se for muita comida, via McDonalds ou não, para a Etiópia, é possível que falte comida na Europa. Mas embora isso excepcionalmente possa ser verdade, quase sempre não o é. A quantidade de alimentos existente no planeta não é fixa. Agora faça a seguinte experiência: saia à rua. Dirija-se a uma zona não urbana. Será que consegue encontrar algum pedaço de terra que não esteja a ser utilizado na agricultura e que o possa ser?... O mais provável é que responda: sim. Mas se não for esse o caso, pense melhor. Repare que onde há vontade, o ser humano faz milagres! Os israelitas conseguiram elevadas produtividades em terreno da pior qualidade. E se os preços dos produtos alimentares aumentarem o suficiente, até eu tratarei de conquistar terreno ao mar para lá cultivar alfaces!

Finalmente, é necessário ser adepto de um sistema económico mundial com profundos impactos no ambiente para se defender que o peixe que não é consumido em Portugal seja enviado para a Etiópia. Para já não referir a questão ética de matar a fome aos pobres com os desperdícios dos ricos... que, isso sim, será tema para outro texto.

O corolário destes últimos parágrafos é simples: se queremos diminuir as necessidades alimentares não satisfeitas das populações mundiais, temos de apostar fortemente na alteração do sistema económico mundial. Combatermos o desperdício alimentar irá ter pouco ou nenhum resultado a esse nível.

E, novamente, acerca deste assunto, já sabemos o que os promotores desta luta contra o desperdício alimentar defendem: mais capitalismo. E, portanto, mais hipocrisia.

Reparem, como um bónus a este texto, que se dermos dinheiro às pessoas para elas poderem comprar alimentos, mas se não dermos muito dinheiro, apenas o indispensável, elas irão quase garantidamente trocá-lo pelos alimentos que forneçam o maior número de calorias por euro. Ou seja, irão matar a fome, sem dúvida, mas muito dificilmente irão promover hábitos de alimentação saudável. É assim que, actualmente, e a nível global, a obesidade é um problema dos países (ou comunidades) "em vias de desenvolvimento" e não tanto um problema dos países (ou comunidades) mais ricos.

E a própria obesidade devia ser chamada a depor neste julgamento que aqui faço. Porque a máxima do "come tudo porque há crianças a morrer à fome em África" certamente já levou muito boa gente a comer mais do que precisava, simplesmente para não deixar ficar no prato. Comer mais do que é necessário é uma forma de combater o desperdício alimentar?... Se não, então será que podemos dizer que nas comunidades onde há mais obesidade há desperdício alimentar, pois as pessoas comem mais do que necessitam?... Se sim, será que o combate ao desperdício alimentar não se devia converter em combate à obesidade?... E, conforme já afirmei, para combater a obesidade não basta lavar o cérebro das pessoas sobre os alimentos mais saudáveis - é também necessário dar-lhes o dinheiro necessário para os poder adquirir! Vale a pena pensar nisso.

Esta campanha mistura tudo...

Apelo novamente à seriedade.

A campanha contra o desperdício alimentar parte do princípio de que toda a gente entende que o desperdício alimentar é mau. Serve-se disso para não referir explicitamente quais os problemas que se tenta resolver quando se combate o desperdício alimentar. As referências à carência alimentar de algumas pessoas são uma tentativa de relacionar dois assuntos que, na sua génese e na sua resolução, não estão relacionados. E as referências ao impacto ambiental causado pela produção, transporte, armazenamento, transformação, confecção e comércio de produtos alimentares, bem como à recolha de resíduos e respectivo tratamento, são hipócritas e desonestas.

Eu sou um combatente acérrimo dos desperdícios. Quem me conhece sabe bem que como comida feita há uma semana só para não a deitar fora, uso roupa até estar esburacada, conserto todos os objectos até ao inconsertável antes de os deitar fora. Faço-o por vários motivos, mas também pela consciência plena de que tudo aquilo que fazemos tem um impacto raramente negligenciável (ao contrário de quem acredita que a sua presença é insignificante no mundo, ou dos amantes da natureza que mudam de guarda-roupa a cada estação).

Mas se quero ser sério, e se seriamente me preocupa o impacto ambiental das minhas acções, então não me posso ficar pelo combate, dentro e fora da minha porta, ao desperdício alimentar. Tenho também (a consciência obriga) de defender, e se possível de uma forma integrada, a implementação de políticas de decrescimento económico, políticas de literacia funcional de todas as populações, políticas economicamente mais equitativas, a implementação de técnicas de agricultura, pastorícia e de pesca com menos impacto no ambiente, o consumo de produtos locais, a diminuição das viagens para todo o lado por puro divertimento, políticas de redução de natalidade para estancar o crescimento populacional a nível mundial, etc.

A Estratégia de Combate ao Desperdício Alimentar não é uma política que tenha sido exigida pela população. Antes, e curiosamente, foi-nos imposta num ápice de cima para baixo. E em relação ao que acabei de referir no parágrafo anterior, as instituições que a fundamentam parecem estranhamente (ou não) silenciosas. E isto devia no mínimo deixar-nos desconfiados.

Fica o grito de alerta!

sábado, 2 de janeiro de 2021

Carlos do Carmo...

 

Morreu ontem, dia 1 de Janeiro de 2021. Tenho pena. Dele queria sempre mais. Não só isso. Já fazia parte de mim. Fico com medo que essa parte de mim também morra. Ouço-o e sinto saudades de nem sei bem o quê... mas fico feliz de o sentir vivo ainda. E então sinto gratidão.

Tinha uma voz deliciosa, afinada, certeira, um timbre doce, macio. Sobretudo, aquele exercício que o José Mário Branco exigia de si e dos outros, de construir um contexto verosímil para transmitir uma determinada mensagem carregada de significado e sentimento (ao invés de se cantar o Barco Negro como se fosse trálálá uma grande alegria), esse exercício sempre pareceu natural no Carlos do Carmo. Parecia que cantava sempre com o coração e com a cabeça, em uníssono.

Aprendi a gostar de Carlos do Carmo com os vinis que os meus pais tinham lá por casa: "um homem na cidade", de 1977, e "dez fados vividos", de 1978. Senti-lhe o cheiro das castanhas assadas, o barulho do eléctrico, o movimento do cacilheiro, e isso e o próprio Carlos do Carmo transformaram-se para mim, e para sempre, num pedaço de Lisboa. Não sabia se era fado o que ouvia. Pouco me importava, e pouco me importa ainda hoje, mesmo depois de o fado ter sido classificado como "património cultural imaterial da humanidade" por alguns iluminados. Assumir que uma coisa tem valor porque alguém diz que sim sempre me pareceu um atestado de incompetência que passamos a nós mesmos, para dizer o mínimo... mas isso é assunto para outro texto.

Ouvi da boca do Carlos do Carmo as mais belas interpretações de uma série de poetas e compositores. Eis algumas:

E como estas já têm quarenta anos, para quem acredita que o modernaço é que é (ao mesmo tempo que acredita que a medicina antiga é que é), ficam aqui mais algumas:

 Estas e muitas outras... já cá cantam, e cantarão!