quinta-feira, 18 de outubro de 2012
Estorninhos e a especialização na ciência...
Tenho a sorte de trabalhar num sítio que ainda tem algumas árvores no seu entorno. Ontem, ao sair da cantina, reparei no canto de um grupo de aves no topo de umas árvores. Parei e disse "ouçam!... estão a ouvir?... são estorninhos!... repara como o canto deles parece o som das armas de laser de um filme de ficção científica!...". Na verdade a frase não é minha, mas de uma amiga.
Perguntou-me então um amigo que me acompanhava "porque é que não foste para biologia?".
Isto de "ir para" uma qualquer área do saber... e ficar lá... Porque é que eu havia de "ir para biologia"? Porque conheço algumas poucas coisas sobre esse assunto?... Mas eu conheço porque gosto. É o gosto que nos faz, sem esforço, ficar a saber mais sobre as coisas de que gostamos. Mas eu não gosto apenas de assuntos da biologia. Também gosto de assuntos de história, de arqueologia, de física, de química, de música, de arquitectura, de tudo e mais alguma coisa. O que fazer então?... Claramente, "ir para" essas coisas todas!
É o que tento fazer.
Mas é difícil. Muito difícil. Já bastaria o facto de o conhecimento que a humanidade foi acumulando ser já demasiado para uma pessoa só o conseguir abarcar. Mas querer saber acerca de uma grande quantidade de temas não implica a obrigatoriedade de se saber tudo sobre cada tema. Portanto com esse constrangimento, de nunca poder saber tudo, podemos nós bem. O que torna o processo muito difícil não é isso, mas antes o modo como toda a sociedade se organiza no sentido de criar especialistas.
A especialização das pessoas em regiões muito limitadas do saber permite o avanço da ciência, do conhecimento e dos resultados da aplicação desse conhecimento, num mundo em que esse conhecimento é cada vez maior e que, portanto, tem uma complexidade crescente. Mas, como em tantos outros casos, a especialização não resulta apenas em benefícios para a sociedade e para o nosso pequeno mundo.
Sem querer fazer uma análise exaustiva de todos os malefícios que resultam da especialização do conhecimento e da actividade das pessoas, refiro apenas dois que me parecem muito importantes. A especialização, como já outros disseram, faz-nos saber cada vez mais de cada vez menos. E isso retira às pessoas a capacidade de ver a floresta, tão atentos que estão não apenas nas árvores, mas num qualquer tipo de células que uma determinada árvore possui. E a incapacidade de abarcar as questões na globalidade das suas causas e consequências pode ter, e em geral tem, resultados catastróficos. Como costumo dizer, o nosso planeta é uma grande nave espacial onde cada um sabe muito bem o que deve fazer para que um determinado aspecto da máquina funcione na perfeição, e há muita gente que é mesmo muito boa nisso, mas onde muito poucos se detêm para pensar no rumo que a nave leva.
Por outro lado, levando-nos a saber cada vez mais de cada vez menos, a especialização constrói barreiras artificiais entre as pessoas. Não só nos atrofia a capacidade de sermos empáticos, de compreendermos o outro e de nos pormos na sua pele, mas dificulta todo o processo de comunicação entre as pessoas, uma vez que as põe a falar linguagens diferentes com recurso a sistemas de codificação e descodificação também diferentes.
A ciência dos especialistas é uma torre de Babel.
Finalmente, para terminar esta história, adicionemos o último ingrediente: o propósito. A actividade científica permite-nos aperfeiçoar e aumentar o nosso conhecimento. Além disso, para quem a executa por gosto, dá um prazer imenso! Mas será mesmo necessária?...
A ciência, como todas as outras coisas, pode revelar-se muito necessária num determinado contexto, mas muito menos necessária noutro contexto. A sua necessidade não é absoluta. Pelo contrário, é ditada, como todas as coisas, pelo seu propósito.
No início do século XXI temos uma conjugação de factores que torna, a meu ver, a actividade científica muito menos pertinente do que foi outrora. Por um lado possuímos um manancial de conhecimento colossal, por outro lado possuímos aplicações desse conhecimento na melhoria das nossas condições de vida que ameaçam soterrar-nos em máquinas de lavar e telemóveis. Mas ao mesmo tempo temos uma desigualdade na repartição desse conhecimento pelos ocupantes do planeta como nunca antes existiu, e continuamos a ter problemas por resolver, dos mais diversos tipos e nas mais diversas regiões do planeta.
Há muitas pessoas que colocam a questão de saber se a fé e a ciência estão ou não relacionados e são ou não compatíveis. Rios de tinta já foram escritos sobre este assunto. O que nem todos parecem ter reparado é que muitas pessoas têm fé na ciência, tal e qual.
Existe então uma fé no modo como o avanço da ciência irá permitir resolver os problemas que ainda hoje afligem a humanidade. No entanto, uma observação mais atenta permitiria perceber que quase todos os problemas que ainda hoje nos afligem já antes foram resolvidos em algum local do planeta ou momento da história. Ou seja, não é a falta de conhecimento que nos impede de resolver esses problemas, antes é a falta de cooperação entre as pessoas, a falta de disseminação do conhecimento já existente e a iníqua distribuição de recursos entre todos.
Só um aparte para dizer que o problema do aumento da longevidade, um dos problemas da humanidade na área da saúde, não é um problema, porque não tem e nunca terá solução.
Vejamos um exemplo. Fala-se muito, neste início do século XXI, no "problema energético". Este "problema energético" pode traduzir-se do seguinte modo: como é que a humanidade vai conseguir, de forma sustentável, satisfazer as suas necessidades crescentes de consumo de energia. Acredita-se então que este é um bom exemplo de um tema em que devemos investir recursos na actividade científica, repleta de especialistas, para encontrar o santo graal do sector energético: uma fonte limpa e inesgotável de energia.
O advento dos aerogeradores parece corresponder um pouco a esta ideia do santo graal da energia. No entanto, isso seria esquecer que a energia do vento e a energia da água já são utilizados há milénios pela humanidade em todo o mundo. E essas são fontes limpas e inesgotáveis de energia. Onde está então o problema?... O problema está na potência requerida. O que se exige da ciência é que encontre uma fonte que não só seja limpa e inesgotável, mas também que forneça energia com potências crescentes, que acompanhem o aumento das necessidades energéticas da população.
Ora, quando os pressupostos de análise consideram crescimentos infindáveis da população humana no planeta e das necessidades energéticas de cada pessoa, não existe ciência que nos valha. Acreditar que a ciência nos pode valer na resolução de problemas que são logicamente impossíveis de resolver é não apenas uma questão de fé, mas também uma questão de estupidez.
O que nos basta então para que o famigerado "problema energético" seja resolvido é simplesmente que o aumento das necessidades energéticas estanque (ou no valor actual ou noutro qualquer, que pessoalmente preferiria inferior) e que o conhecimento e a tecnologia actualmente existentes sejam disseminados pelas pessoas. O que é necessário não é mais ciência, nem mais tecnologia, nem mais especialistas.
Todavia, é também claro que se insistirmos na ciência, na tecnologia e nos especialistas (e muitos irão fazê-lo, simplesmente porque isso lhes é economicamente vantajoso), iremos muito provavelmente encontrar outras fontes energéticas melhores que as actuais. Só que isso, em vez de resolver o "problema energético", apenas o adiará, à custa de contribuir para um mundo mais desigual, com barreiras cada vez maiores ao entendimento entre todos.
Alguns poderão ler neste discurso uma apologia ao obscurantismo. Nada mais falso. Eu sou um apologista veemente do método e do conhecimento científico. Sobretudo defendo que se todos fossem mais cientificamente letrados perceberiam que já existe o conhecimento suficiente para que todos possamos viver bem. E entre solucionar os problemas existentes com conhecimento que já possuímos ou solucionar os problemas existentes com conhecimento que acreditamos que venha a surgir, criando problemas novos no processo, parece-me que a nossa opção deve ser clara.
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