(imagem retirada daqui)
Com o trabalho conjunto e esforçado de jornalistas, analistas, fazedores de opinião, empresários, políticos, economistas, todos os que adoram este sistema económico que temos e ainda os outros que pensam pouco, estamos a conseguir dar um cunho de conhecimento científico - mais do que isso, aliás, algo que toda a gente tem de saber se quer dar a impressão, lá no café da esquina, que anda bem informado, que vê as notícias e que lê os jornais - àquilo que não passa de uma opinião: a de que o recente "regresso de Portugal aos mercados" foi um tremendo sucesso, algo que todos devemos festejar e até algo de que nos devemos sentir orgulhosos - afinal Portugal não é a Grécia!...
Que quem beneficie muito com este sistema económico o defenda, eu compreendo. Não gosto, mas compreendo. Mas que quem sofra com ele todos os dias também vá atrás é algo que me deixa... Se não me deixa doente, deixa-me com pena das pessoas ou com vontade de fugir delas... essas maravilhas da natureza... ou da criação do Senhor.
Vamos então a ver o que aconteceu e juntar a isso alguns factos, não opiniões, mas factos, e depois o leitor poderá, quero eu acreditar, formular a sua própria opinião e com algumas bases mais sólidas.
O Governo de Portugal vendeu títulos de dívida no valor de 2,5 mil milhões de euros a uma taxa de juro média de 4,891%. Desses títulos, 93% foram vendidos a entidades estrangeiras. Tudo isto foi considerado um sucesso. Os pressupostos que subjazem a esse juízo de valor são os seguintes: quanto maior for a apetência dos estrangeiros pela nossa dívida melhor, e portanto quanto mais dívida for vendida melhor, quanto menor for a taxa de juro melhor, quanto maior for a proporção de dívida vendida ao estrangeiro melhor.
Em termos excessivamente simples a causa imediata da crise da dívida do Estado português foi a subida das respectivas taxas de juro. Nesse sentido, é evidente que uma descida do valor das taxas de juro é benéfica. No entanto, isso só é verdadeiramente assim se admitirmos que todo o sistema económico, político e financeiro que está por trás disto tudo é imutável.
O sistema económico que temos é um que aceita como perfeitamente legítimos os rendimentos do capital. Ou seja, considera-se que é tão legítimo um rendimento proveniente do trabalho de uma pessoa como o rendimento proveniente de um depósito bancário que essa pessoa tenha feito. Além disso, no nosso sistema capitalista considera-se que o dinheiro é o motor da economia, mais do que os produtos reais e mais do que as pessoas e o seu trabalho. Isso serve de justificação para que o dinheiro, o capital, e todos os seus rendimentos (lucros, juros e rendas) fiquem sujeitos a taxas de imposto menores do que as taxas de imposto que são aplicadas aos rendimentos do trabalho.
O sistema político que temos é um sistema eleitoralista e populista, que não possui entraves legais ao endividamento do Estado e não responsabiliza os políticos responsáveis pelo aumento desse endividamento. Resumindo as coisas, é um sistema pouco transparente onde os políticos eleitos gastam dinheiro público a seu bel-prazer, os cidadãos ficam felizes com a ponta do iceberg das despesas efectuadas, materializada em rotundas, estádios e afins, e os políticos ficam impunes quando depois se descobre o buraco financeiro.
O sistema financeiro que temos permite que as taxas de juro flutuem livremente ao sabor de uma coisa aparentemente misteriosa e omnipotente chamada mercado, que não é mais do que os interesses de quem tem mais dinheiro, conduzidos por instituições não democráticas, orientadas por interesses obscuros, chamadas agências de notação ou de "rating".
O actual estado destes três sistemas não resulta de mandamentos de Deus. Antes resulta de um grande conjunto de leis que foram elaboradas e aprovadas, em grande medida à revelia do conhecimento ou dos interesses das respectivas populações, ao longo das últimas décadas em Portugal, na Europa e um pouco por todo o mundo. Não foi fácil para os interesses dos mais ricos conseguir instituir este regime, mas conseguiram-no.
Ora, no actual regime, é natural que os políticos se endividem brutalmente. Qualquer pequena subida das taxas de juro, motivada por qualquer interesse obscuro de uma qualquer agência de notação, pode desencadear uma crise da dívida soberana. Foi o que aconteceu com Portugal, com a Grécia, com a Irlanda... Mas é também o que vai acontecendo nos Estados Unidos, na Itália e até na própria Alemanha.
Aclamar o "regresso de Portugal aos mercados" é, portanto, ignorar estas causas mais profundas, de tal modo que todo o sistema possa permanecer inalterado, mantendo as suas características mais plutocráticas (o poder ao dinheiro) do que democráticas (o poder às pessoas) e mantendo os rendimentos de capital chorudos para quem mais tem, e não evitando que situações semelhantes possam voltar a acontecer no futuro.
Mas há mais.
Apesar deste sistema ter sido construído a punho, admitamos por um momento que ele é inalterável, como os tais jornalistas e economistas e políticos nos querem fazer crer. Esta recente emissão de títulos de dívida pública portuguesa continua a ser muito má. Senão vejamos.
Logo à partida, a emissão de mais títulos de dívida pública significa que a dívida pública portuguesa está a aumentar. Ora, o que seria positivo seria diminuir o valor da dívida, não aumentá-lo ainda mais! É que um aumento do valor da dívida não implica apenas a obrigação legal (as leis são instrumentos nas mãos de alguns, mas enfim) de a pagar no futuro, mas implica também a existência de juros. Mais dívida significa portanto que mais dinheiro nos irá ser sacado em impostos para pagar juros aos omnipotentes credores (lembremo-nos que numa plutocracia o poder pertence às pessoas na proporção do dinheiro que possuem).
Depois, uma taxa de juro de 4,9% continua a ser um valor exorbitante. Se alguém tem qualquer ponta de dúvida acerca da completa impossibilidade de pagar a dívida pública com valores de taxas de juro desta ordem por favor leia o texto que publiquei aqui neste blogue no passado.
Para existir qualquer possibilidade de pagamento integral da dívida em algumas décadas (pelo menos até ao resto das nossas vidas, vá...) seria necessário possuir taxas de juro inferiores à taxa de crescimento do PIB. Ora o nosso PIB não está a crescer, mas a decrescer. Precisávamos, portanto, de taxas de juro negativas!... Esta taxa continua a ser uma exorbitância e mantém a impossibilidade de pagamento da dívida pública.
Finalmente, vem a cereja no topo do bolo: a questão da maioria dos títulos terem sido vendidos a entidades estrangeiras. O juro que resulta e resultará destas vendas de títulos da dívida é dinheiro que nos é cobrado através de impostos (muito mal distribuídos, mas enfim) que é pago aos credores, isto é, às pessoas que compraram títulos e dessa forma emprestaram o seu dinheiro ao Estado português. Com o nosso actual sistema fiscal, isso significa que estamos a tirar dinheiro à população que menos dinheiro tem e estamos a dá-lo à população que mais dinheiro tem e que, por isso mesmo, o empresta ao Estado português. Chamando os bois pelos nomes, o juro da dívida pública portuguesa é uma transferência de dinheiro dos mais pobres para os mais ricos.
Agora vamos imaginar que os ricos até são uns tipos simpáticos, e ao receberem grandes maquias em juros gastam um pouco desse dinheiro na comunidade onde se inserem. Vamos imaginar, mesmo que seja difícil, que pagam impostos nessa comunidade, que criam empresas nessa comunidade, que fazem donativos a instituições de reconhecido interesse social. Agora respondam-me por favor: o que é que seria mais vantajoso para nós, ou menos prejudicial, pagar enormes quantias de juros a entidades nacionais ou a entidades estrangeiras?...
O que é que significa então, neste contexto, o tão aclamado "regresso de Portugal aos mercados"? Significa o seguinte:
- Que todas as causas primárias do sistema que temos, que são completamente injustas e não democráticas, são ignoradas e continuarão inalteradas, prontas a gerar novas crises no futuro;
- Que a enorme transferência de dinheiro da população mais pobre para a população mais rica vai prosseguir e vai continuar a ser encarada com toda a legitimidade e até como algo mais importante do que os próprios salários das pessoas que trabalham;
- Que os juros que pagamos pela dívida pública vão continuar a ser superiores à taxa de crescimento do PIB e que, portanto, confirmarão a impossibilidade de pagamento da dívida e o completo afundamento das contas públicas;
- Que a perpetuação da crise das contas públicas continuará a servir de justificação, por parte dos políticos, economistas, empresários, jornalistas, fazedores de opinião e analistas do costume, para o desmantelamento do Estado Social;
- Que se irão perpetuar as enormes transferências de capital para o estrangeiro, sem quaisquer perspectivas de reinvestimento futuro desse capital no nosso país.
Obrigado. O título é simplesmente delicioso.
ResponderEliminarGostei muito da tua análise da coisa, aprendi bastante e vai de encontro ao que penso também. A crise é tratada com a mesma receita que a ela nos trouxe mas num esquema amplificado. Como é que isto é possível à frente dos olhos de toda a gente é coisa que me transcende - uma verdadeira questão metafísica.
As ideias de mudança, de uma ecologia profunda, de uma economia assente na sustentabilidade que as pessoas sérias e verdadeiramente inteligentes defendem e buscam, parece uma impossibilidade. A configuração do mundo actual é malévola, tudo é mais ou menos manipulado por poucas elites desde a política às televisões. É um crime pensar diferente.
A oportunidade de surgir uma mudança de paradigma a nível mundial (ou pelo menos local) parece estar a passar. As tentativas são abafadas e esbarram nos interesses poderosos que se movimentaram rapidamente, assegurando a perpetuação do sistema.
A minha esperança na humanidade decresce a cada dia que passa.
A educação está ao serviço deste mecanicismo pensante, deste homem instrumentalizado escravo de si mesmo.