quarta-feira, 18 de dezembro de 2024

Não foi Cristo que fundou o cristianismo...

"É em vão que se tentará extrair desta desordenada mitologia uma qualquer tradição histórica. Torna-se até difícil perceber como é que qualquer história se poderia alguma vez enredar em tais ficções.

Esta observação não se aplica apenas ao vidente de Patmos. Aplica-se também ao autor anónimo da carta aos hebreus, ao apóstolo Paulo, aos nossos evangelistas. Ao que parece, nenhum deles deverá ter colhido recordações vívidas a respeito de Jesus. Alguma coisa delas teria ficado na sua obra, capaz de lhe conferir aquela sensação de real que lhe falta sempre. Não deixa de ser estranho que um homem de temperamento suficientemente vigoroso para fundar uma nova e grande religião não tivesse deixado na memória dos seus discípulos nenhuma imagem precisa capaz de nos revelar os seus traços, nenhum eco do que pode ter sido o seu sotaque, nenhum sinal claro da sua actividade, nenhum rasto da sua passagem. O carácter fictício das informações que nos são fornecidas sobre ele, pelas suas primeiras testemunhas, leva-nos a pensar que a sua personalidade não passa de um mito.

A conclusão pareceria simples e decisiva se fossem Átis ou Mitra que estivessem em questão. Como se trata de Cristo, os espíritos mais livres têm dificuldade em aceitá-la. Não só porque um fardo enorme de hábitos e de preconceitos milenares continua a pesar sobre todos nós, mas também porque não obstante os exemplos fornecidos pelas outras religiões, é difícil compreender que um mito desta natureza se tenha podido formar e ganhar consistência ao ponto de se impor durante tantos séculos a milhões de adeptos.

Os cristãos simplesmente acreditavam em Cristo na medida em que, no que se dizia sobre ele, entreviam uma resposta às suas íntimas preocupações, um remédio para os seus males. Ora, todos os evangelhos, fossem eles de Marcos, de Lucas, de Mateus ou de João, apresentavam-no sob o ângulo mais favorável. Em todos eles Jesus aparecia como um deus muito grande e muito bom, que se fez semelhante aos homens para pôr termo aos seus sofrimentos, que sabia ler os corações e que com uma só palavra podia curar as piores enfermidades. Havia sido visto a ter compaixão pela multidão e a multiplicar pães no deserto para alimentar. Aos seus discípulos pedia apenas que acreditassem nele. Em troca desta fé, garantia-lhes uma vida eterna de felicidade. Como poderia a massa de pobres, esmagada pela miséria e corroída por preocupações, não ser atraída por ele entregando-lhe a sua confiança. Portanto, o sucesso que obtiveram os missionários de Jesus, não é mais singular do que o dos representantes de outros deuses salvadores. É da mesma ordem e decorre das mesmas causas. Explica-se muito facilmente, sem necessidade do surgimento repentino de um homem sobreeminente, pelo trabalho árduo de operários anónimos que deram uma forma concreta ao ideal místico da massa crente. 

Não foi Cristo que fundou o cristianismo. Antes foi o cristianismo que progressivamente elaborou a imagem de Cristo."

in "As origens sociais do cristianismo - Estudos sobre a história dos dogmas" de Prosper Alfaric.

(imagem de Quino)


E assim fez Homem um Deus à sua imagem.

sábado, 14 de dezembro de 2024

Voyager 1 no reino de Deus...

Deus e o mal. Se Deus é omnipotente e omnisciente e bondoso, como pode o mal existir? Este problema aflige ou simplesmente espicaça a mente dos seres humanos, de alguns seres humanos, desde há milhares de anos. Se nunca pensou no assunto, tire uns segundos para o efeito e junte-se ao clube. Verá que não há resposta satisfatória para o problema.

Muito foi discutido e escrito acerca deste assunto. Personagens, livros, datas, afirmações, posições, interpretações... Bom, talvez seja tempo de eu também me juntar a estoutro clube.

Deus existe? Como é que podemos saber se ele existe ou não? Também já muita tinta correu sobre o assunto. A certa altura, um sujeito pragmático concluiu: por via das dúvidas, não vá Deus existir mesmo e ser vingativo, o melhor é mesmo acreditar que existe! Sem dúvida um argumento sólido. (ironia)

Se Deus quisesse ter a certeza que acreditávamos nele, não nos daria ele provas irrefutáveis da sua existência?... Também essa questão já foi levantada e respondida de várias formas.

Mas, será que o mal existe?... Alguns disseram: o mal é a ausência do bem. Outros disseram outras coisas. Muita gente disse muita coisa.

Pergunto eu agora: se são as pessoas a discutir e a decidir sobre a existência ou inexistência do mal, como pode isso servir de critério para aferir a existência ou inexistência de Deus?

Bem e mal... Nós, seres humanos, definimos cada um deles por oposição ao outro. Saramago fez Jesus sentar-se num barquito no meio do nevoeiro do mar, juntamente com Deus e o Diabo. Aí, estes dois delinearam o plano que iria espalhar a respectiva adoração pelo mundo. Esse plano incluía a lista de atrocidades que desde então a humanidade perpetrou. É a vidinha!... Não se espalha a noção de bondade sem a de maldade!

Quem disse, afinal, que Deus tinha de ser bom? Foi o Homem.

Quem disse, afinal, que Deus tinha de ser perfeito? Foi o Homem.

Quem disse, afinal, que ser bom implica não ser mau? Foi o Homem.

Quem disse, afinal, que ser mau é não ser bom, ou fazer coisas más, coisas que não são boas, porque são más, porque são feitas com maldade, porque a maldade é o que está nas coisas más, que não são boas? Foi o Homem.

Quem disse, afinal, que Deus existe? Foi o Homem. E que Deus não existe? Foi o Homem. E que não há forma de saber se existe ou não existe? Foi o Homem. Quem disse o Homem, quem o leu, quem o citou, quem discutiu com ele? Foi o Homem.

Quando as câmaras fotográficas da sonda Voyager 1 estavam prestes a tornar-se inúteis, isto é, quando a sonda estava já tão longe de qualquer astro do Sistema Solar que os seus planetas apareciam apenas como um pixel na imagem, e não se prevendo a aproximação de qualquer outro corpo celeste durante os próximos milhares de anos (sendo que a vida útil da sua fonte energética seria de apenas algumas décadas), a equipa responsável por ela (da qual fazia parte Carl Sagan) tomou a decisão de orientar as câmaras para o Sol e fotografar, pela última vez, todos os planetas visíveis. A fotografia da Terra tornou-se famosa. Esta mesma, tirada a 14 de Fevereiro de 1990, a mais de 6 mil milhões de quilómetros de distância (hoje a Voyager 1 continua a afastar-se de nós a cerca de 17 km por segundo, encontrando-se já a uns 24 mil milhões de quilómetros de distância):

https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/7/73/Pale_Blue_Dot.png

Os raios visíveis na fotografia resultam da incapacidade da sonda Voyager 1 em bloquear totalmente a luz directa do Sol. No raio mais à direita, quase a meia altura, pode ver-se um pontinho mais claro. É a Terra!

A propósito, Carl Sagan escreveu o seguinte (tradução minha):

"A esta distância, a Terra pode não parecer ter qualquer interesse especial. Mas para nós é diferente. Considere novamente aquele ponto. É aqui. É a nossa casa. Somos nós. Nele, todos os que ama, todos os que conhece, todos os de que alguma vez ouviu falar, todos os seres humanos que jamais existiram, viveram as suas vidas. Todas as nossas alegrias e sofrimentos, milhares de confissões religiosas, ideologias e doutrinas económicas, todos os caçadores e recolectores, todos os heróis e cobardes, todos os criadores e destruidores de civilização, todos os reis e camponeses, todos os casais jovens apaixonados, todas as mães e todos os pais, crianças esperançosas, inventores e exploradores, todos os professores de moral, todos os políticos corruptos, todas as superestrelas, todos os líderes supremos, todos os santos e pecadores da história da nossa espécie viveram aí - nesse grão de pó suspenso num raio de luz do Sol.

A Terra é um palco minúsculo numa vasta arena cósmica. Pense nos rios de sangue derramados por todos aqueles generais e imperadores para que, em glória e triunfo, pudessem tornar-se momentaneamente mestres de uma fracção de um ponto. Pense nas intermináveis crueldades infligidas pelos habitantes de um canto deste pixel nos quase indistinguíveis habitantes de outro canto qualquer, quão frequentes os seus desentendimentos, quão desejosos de se matarem mutuamente, quão fervorosos dos seus ódios.

As nossas posturas, as nossas imaginadas auto-importâncias, a ilusão de que temos uma posição privilegiada no Universo, são postas em causa por este ponto de luz pálida. O nosso planeta é uma partícula solitária numa enorme envolvência de escuro cósmico. Na nossa obscuridade, em toda esta imensidão, não há vestígio que indique que ajuda virá de fora para nos salvar de nós mesmos.

A Terra é o único mundo conhecido até agora a albergar vida. Não há nenhum outro sítio, pelo menos no futuro próximo, para onde a nossa espécie possa migrar. Visitar, sim. Ficar, ainda não. Goste-se ou não, por agora a Terra é onde nos mantemos de pé.

Já foi dito que a astronomia é uma experiência humilde e que ajuda a construir o carácter. Possivelmente não há melhor demonstração da loucura do orgulho e preconceito humanos do que esta imagem distante do nosso minúsculo mundo. Para mim, ela enfatiza a nossa responsabilidade de lidarmos mais delicadamente uns com os outros, e de preservarmos e estimarmos o ponto azul claro, a única casa que alguma vez conhecemos."


Lá estão, nesse pontinho minúsculo, os doutos senhores discutindo a existência de Deus, a sua bondade, a bondade dos seres humanos, a bondade em si mesma, tudo e mais alguma coisa.

Cá fora, aqui ao lado da Voyager 1, silêncio e escuridão. Umas parcas partículas, umas ondas, uns fraquitos campos... Escuridão quase tudo, e cloreto de sódio?, nem vê-lo, nem na espectrofotometria. Nem bem, nem mal. Uma lata a deambular no nada. Deus?... Quem sabe?...

Afinal, disse alguém, 'Deus quer, o Homem sonha, a obra nasce'. Portanto, vamos lá de novo:

Quem disse, afinal, que Deus tinha de ser bom? Foi o Homem, porque Deus quis.

Quem disse, afinal, que Deus tinha de ser perfeito? Foi o Homem, porque Deus quis.

Quem disse, afinal, que Deus existe? E que não existe? E que não há forma de saber se existe ou não existe? Foi o Homem, porque Deus quis.

Daqui, deste ponto de vista, a milhares de milhões de quilómetros de distância, os seres humanos são animais que resolveram divertir-se com o cérebro que têm, e andam às voltas, em círculos, a correr atrás de si mesmos, das suas próprias ideias, citando-se uns aos outros sem sair do sítio, como cães desvairados a correr atrás da própria cauda.

Agora vejam eu, a correr atrás da minha própria cauda:

Deus está onde está o mistério. Deus é mistério, é magia. Deus explica tudo o que desconhecemos. Se tudo tem antecedente e consequente, Deus, este Deus que agora defino, não tem. Ele é. E isso é porreiro. Antes era Deus, depois Deus fez e disse e quis e nós sonhámos e tal, e depois nós kaput, e depois Deus. Já está. Nesta linha, Deus faz as vezes do telómero que fecha o cromossoma daquilo que podemos explicar. E, de cada vez que conseguimos explicar mais alguma coisa, Deus permanece lá, na extremidade, a explicar o resto, o inexplicado. Saber mais ou menos, explicar mais ou menos, não altera nada disto. Venha a ciência toda que pudermos inventar, e Deus estará sempre lá, antiquado vanguardista, na fronteira do conhecimento.

Ou não. Só depende de nós. Tal como o bem e o mal.

E agora voltem a olhar para o pequeno pixel que é o nosso planeta Terra..., ..., ..., e ponham-se a mexer. Não para correr atrás de novas caudas, próprias ou alheias, mas porque aquilo que aqui fazemos é da nossa responsabilidade, e há imenso por fazer!

(Vá, larga as caudas, os cus, as citações, as ondas... Não te prendas a uma onda qualquer, que a teus pés venha morrer. Ondas há muitas! Como os deuses! Pensa tu. Faz tu. É melhor não esperar pelos deuses.)


quinta-feira, 12 de dezembro de 2024

Da barbárie e do amor...

Ontem mesmo, numa qualquer rede social perto de si, uma pessoa disse que os Estados Unidos da América foram o único país a utilizar bombas nucleares contra outros países. A afirmação era ainda mais contundente, na verdade, porque dizia que a lista de países que o haviam feito continha neste momento apenas uma entrada, a desse país, o que deixa em aberto a possibilidade, infelizmente cada vez mais verosímil, de outro país ser adicionado à lista.

Quando era jovem e passeava tanto quanto podia pelos vales e cumes, pelos bosques, rios e ribeiras, florestas, prados e cascalheiras, perguntava-me porque é que era sempre tão difícil encontrar mais pessoas interessadas nesses passeios, quando afinal havia tantas pessoas a gostar de florestas e rios e ribeiros. Cedo percebi que as pessoas não fazem necessariamente aquilo de que gostam, mas sim e apenas aquilo que colocam à cabeça da sua lista de prioridades.

Eu comentei a afirmação sobre as bombas nucleares expressando a minha tristeza, ainda para mais sabendo que os Estados Unidos não lançaram apenas uma bomba, mas duas, e não o fizeram num sítio ermo, mas sim no centro de cidades populosas. Outra pessoa sentiu vontade de rir ao ler o meu comentário, e logo comentou, e não ficou sozinho nesse seu comentário, que os Estados Unidos fizeram isso mas conseguiram acabar com a guerra.

Os últimos anos têm sido para mim uma revelação muito desagradável da desumanidade que vai dentro de tantos corações e tantas cabeças. As cabeças munem-se de douta argumentação e partem a realidade aos bocados. Os corações escolhem um bocado em detrimento dos demais. Cabeças e corações unem-se então na idolatria do "nós" e no achincalhamento do "outros" e constroem paulatinamente uma impenetrável blindagem de pedaços de verdades descontextualizadas, de mentiras bem fundamentadas, de todos os pedacinhos da realidade que convêm, tudo bem unido numa matriz de grande necessidade de justiça, de identificação, de construção de um mundo melhor. Para o "nós".

A barbárie constrói-se assim. O mal, essa banalidade, resulta não apenas do silêncio conivente da maioria da população, mas também desta incapacidade de colocar o amor à frente na lista das prioridades. O amor, daquele tipo de amor que supostamente deveríamos festejar daqui a uns dias, quase no final de Dezembro, e que tanto é apregoado por tantas religiões neste planeta e ao longo da história. Ama o próximo. Ama o longínquo. Ama.

Sim, os bárbaros amam. Os bárbaros, os guerreiros, não gostam da guerra, não querem a guerra, estão dispostos a tudo para acabar com a guerra, inclusive lançar bombas nucleares sobre os inimigos. Mais dificilmente estarão dispostos a ceder ou a ver nos seus inimigos seres humanos iguais a eles mesmos.

Nos últimos anos fiquei a saber que assassinar os genes palestinianos é mau, mas justifica-se se desse modo conseguirmos finalmente paz no Médio Oriente. Fiquei a saber que arrasar a Ucrânia e a sua população é mau, mas justifica-se se desse modo pudermos dar uma lição ao Putin. Fiquei a saber que arrasar cidades inteiras, matando centenas de milhares de inocentes numa fracção de segundo, justifica-se se for para ganhar uma guerra. Fiquei a saber que promover o terror à escala global, alterando regimes em países estrangeiros como se fossem sua pertença, produzindo e vendendo armas, acicatando divisões nas populações e promovendo activamente a criação de grupos armados, começando e acabando guerras de botões e sangue com telefonemas, tudo isso se justifica, e é bom, se em troca pudermos instalar no mundo uma "democracia" à nossa moda.

Os fins justificam os meios, portanto. A barbárie. Defendida a dólares, euros, balas e explosivos por todos os "democratas" que se esforçam por terminar todas as guerras, pertencentes ao "nós" ou ao "outros".

Eles gostam de florestas, rios e ribeiras. Simplesmente há outras prioridades.

Mas a floresta humana precisa de nós. A floresta que começa dentro de nós. Nós não somos bárbaros! Somos gente! Iguais a toda a gente que há e que alguma vez houve na nossa capacidade de amar, de amar familiares, amigos, vizinhos, os outros, os animais e as plantas, a música, a dança, a comida, a bebida, as roupas, as palavras, os desenhos, as pinturas, os corpos, as aventuras, o calor, a segurança e o conforto dum ninho. Essa floresta partilhada por todos nós e de que tanto precisamos constrói-se com amor.

É preciso mudar as prioridades. É preciso o amor! É preciso aprender a amar quem odiamos e quem nos odeia. Não podemos mais justificar o nosso mal com o mal dos outros. A única bomba boa que há é a que nunca existiu.

Vem-me à memória o discurso de Chaplin no "o grande ditador".

Vem-me à memória este excerto do "escuta, zé ninguém" de Wilhelm Reich.

Vem-me à memória o Zizek a dizer que não deve ser necessário entender o outro para que possamos viver em paz. O mundo é muito complexo, não temos tempo para entender tudo, temos de ser capazes de viver em paz mesmo sem entender tudo.

Vem-me à memória tanta coisa... a certeza do Almada de que já estava tudo escrito quando nasci, só faltava mesmo mudar o mundo. Até o barbudo alemão já dizia que os filósofos interpretavam tudo, só ficava a faltar mudar o mundo.

"Há tanta coisa que fazer, meu Deus! E esta gente distraída em guerras!" (Cena do ódio, Almada Negreiros)

terça-feira, 3 de dezembro de 2024

Da esquerda e da direita...

Já dizia o alemão barbudo, e muitos depois dele, inclusivamente o Fernando Rosas, cujas palavras seguintes podem ser escutadas na parte final do filme "25 anos de paciência impaciente", PSR, 1998, disponível na Internet.

Não posso deixar de considerar,
por muito antiquado que isso pareça,
que o grande separador de águas em termos teóricos e práticos
entre esquerda e direita
continua sendo a atitude que se toma face à iniquidade básica
em que repousa o sistema capitalista,
ou seja, em relação àquela relação social fundamental
mediante a qual parte do produto de quem trabalha
é expropriada por quem não o faz.
A resposta que se dá em termos teóricos e práticos a esta questão
continua a ser o que divide a direita e a esquerda,
por muito que um certo discurso ideológico
tente hoje descentrar esta questão
e mesmo negar a actualidade da dicotomia.
É bem certo que esta matriz fundamental do pensamento socialista
deu origem a duas grandes ordens de equívocos, historicamente,
o do socialismo digamos que ocidental,
que se transformou numa pura gestão do sistema capitalista,
e de um socialismo dito real,
que se transformou, ele próprio, numa reprodução
de um sistema capitalista
tão injusto e odioso como o tradicional.
O que significa que o grande desafio que se coloca à esquerda
em termos modernos, continua a ser o de se reencontrar
através da crítica das experiências históricas do socialismo
ou seja, que sistema há-de ser esse,
que organização há-de ser essa
que seja o princípio do fim do Estado,
e não a reprodução do sistema capitalista de outras formas,
que organização há-de ser essa
que permita simultaneamente o progressivo esvaziamento
das discriminações tradicionais entre sexos,
entre o trabalho manual e o intelectual,
entre a cidade e o campo,
e que permita também o maior progresso
económico, social, material, intelectual
a maior criatividade,
como compatibilizar isso,
nomeadamente com certos mecanismos de economia de mercado,
ou como superar o pluralismo limitado que hoje existe
dominado pelas oligarquias partidárias tradicionais
com um novo pluralismo mais amplo
que permita a intervenção participativa
das organizações de cidadãos
na vida da colectividade.
Tudo isto são utopias, dirão alguns,
mas eu pergunto
o que é que é intelectualmente mais sério:
se perseguir a luta por uma sociedade mais justa
ainda que assumindo o prolongado da jornada
ou se, pelo contrário,
satisfazermo-nos com essa espécie de letargia digestiva
que algumas pessoas empanturradas de bom-senso
nos aconselham
elogiando as virtudes de um sistema
que hoje elogiam com tanto zelo
como exactamente ontem atacavam.
Para mim,
que não tenho actualmente nenhuma filiação partidária,
nem estou particularmente inclinado
para esse tipo de actividade,
talvez que ser de esquerda seja, ao menos,
ter o pudor de não dar tal espectáculo.

-------

Ou, como questionava o José Mário Branco:

quantas vezes já tentámos nós?  914? ainda não. 606? ainda não. mas talvez quem sabe 10, 20?... qual é o preço da esperança?... acordai! acordai homens que dormis a embalar a dor dos silêncios vis!

Ser de esquerda hoje...

Ser de esquerda hoje

é não ter medo da palavra esquerda
e não a deslocar ao sabor do centro
é não ter vergonha
das coisas vividas e dos textos lidos
que nos puseram a pensar como pensamos
é não pôr entre parêntesis
os pressupostos do que fazemos.
A emancipação dos trabalhadores
será obra dos próprios trabalhadores
ou então não será.
É não perder a memória
e não permitir que a direita
se cubra dos louros das nossas vitórias
e seja opressor em nome da liberdade
é não entregar a política aos políticos
a arte aos artistas
o saber aos sábios
é não fazer do mal-estar
uma desculpa para não estar
é uma maneira de viver
onde o autoritarismo não cabe
e onde a aventura tem lugar
é sentir-se estranho
onde não há espaço para propor, decidir, imaginar
é preferir trabalhar com os outros
do que fechado num quarto
é gostar de estar onde alguma coisa mexe
e ser solidário nas pequenas novidades que despontam
é ter que tomar partido
contra as repressões e explorações diárias
uma luta contínua contra os lugares comuns
desta sociedade de consumos vários
é admitir a subversão
é assumir a diferença
é ter curiosidade pela realidade
e acreditar que a podemos transformar
é saber que nada acontece por acaso
é a crítica permanente dos poderes
é a desconfiança das máscaras todas
tecnocracias, burocracias, pragmatismos
dos apolíticos e dos neutros
é viver com uma utopia dentro da cabeça e da vontade
e duvidar do chamado realismo
é perceber que a alegria é possível
e que não vem nas embalagens de champô
é achar que vale a pena.
É isto tudo ao mesmo tempo
e é tentar não cortar a nossa vida às fatias
para pôr uma razão diferente em cada uma
e é gostar dos riscos que corremos.
 
Retirado do filme "25 anos de paciência impaciente", PSR, 1998, disponível na Internet, entre os minutos 33 e 35.