Deus e o mal. Se Deus é omnipotente e omnisciente e bondoso, como pode o mal existir? Este problema aflige ou simplesmente espicaça a mente dos seres humanos, de alguns seres humanos, desde há milhares de anos. Se nunca pensou no assunto, tire uns segundos para o efeito e junte-se ao clube. Verá que não há resposta satisfatória para o problema.
Muito foi discutido e escrito acerca deste assunto. Personagens, livros, datas, afirmações, posições, interpretações... Bom, talvez seja tempo de eu também me juntar a estoutro clube.
Deus existe? Como é que podemos saber se ele existe ou não? Também já muita tinta correu sobre o assunto. A certa altura, um sujeito pragmático concluiu: por via das dúvidas, não vá Deus existir mesmo e ser vingativo, o melhor é mesmo acreditar que existe! Sem dúvida um argumento sólido. (ironia)
Se Deus quisesse ter a certeza que acreditávamos nele, não nos daria ele provas irrefutáveis da sua existência?... Também essa questão já foi levantada e respondida de várias formas.
Mas, será que o mal existe?... Alguns disseram: o mal é a ausência do bem. Outros disseram outras coisas. Muita gente disse muita coisa.
Pergunto eu agora: se são as pessoas a discutir e a decidir sobre a existência ou inexistência do mal, como pode isso servir de critério para aferir a existência ou inexistência de Deus?
Bem e mal... Nós, seres humanos, definimos cada um deles por oposição ao outro. Saramago fez Jesus sentar-se num barquito no meio do nevoeiro do mar, juntamente com Deus e o Diabo. Aí, estes dois delinearam o plano que iria espalhar a respectiva adoração pelo mundo. Esse plano incluía a lista de atrocidades que desde então a humanidade perpetrou. É a vidinha!... Não se espalha a noção de bondade sem a de maldade!
Quem disse, afinal, que Deus tinha de ser bom? Foi o Homem.
Quem disse, afinal, que Deus tinha de ser perfeito? Foi o Homem.
Quem disse, afinal, que ser bom implica não ser mau? Foi o Homem.
Quem disse, afinal, que ser mau é não ser bom, ou fazer coisas más, coisas que não são boas, porque são más, porque são feitas com maldade, porque a maldade é o que está nas coisas más, que não são boas? Foi o Homem.
Quem disse, afinal, que Deus existe? Foi o Homem. E que Deus não existe? Foi o Homem. E que não há forma de saber se existe ou não existe? Foi o Homem. Quem disse o Homem, quem o leu, quem o citou, quem discutiu com ele? Foi o Homem.
Quando as câmaras fotográficas da sonda Voyager 1 estavam prestes a tornar-se inúteis, isto é, quando a sonda estava já tão longe de qualquer astro do Sistema Solar que os seus planetas apareciam apenas como um pixel na imagem, e não se prevendo a aproximação de qualquer outro corpo celeste durante os próximos milhares de anos (sendo que a vida útil da sua fonte energética seria de apenas algumas décadas), a equipa responsável por ela (da qual fazia parte Carl Sagan) tomou a decisão de orientar as câmaras para o Sol e fotografar, pela última vez, todos os planetas visíveis. A fotografia da Terra tornou-se famosa. Esta mesma, tirada a 14 de Fevereiro de 1990, a mais de 6 mil milhões de quilómetros de distância (hoje a Voyager 1 continua a afastar-se de nós a cerca de 17 km por segundo, encontrando-se já a uns 24 mil milhões de quilómetros de distância):
Os raios visíveis na fotografia resultam da incapacidade da sonda Voyager 1 em bloquear totalmente a luz directa do Sol. No raio mais à direita, quase a meia altura, pode ver-se um pontinho mais claro. É a Terra!
A propósito, Carl Sagan escreveu o seguinte (tradução minha):
"A esta distância, a Terra pode não parecer ter qualquer interesse especial. Mas para nós é diferente. Considere novamente aquele ponto. É aqui. É a nossa casa. Somos nós. Nele, todos os que ama, todos os que conhece, todos os de que alguma vez ouviu falar, todos os seres humanos que jamais existiram, viveram as suas vidas. Todas as nossas alegrias e sofrimentos, milhares de confissões religiosas, ideologias e doutrinas económicas, todos os caçadores e recolectores, todos os heróis e cobardes, todos os criadores e destruidores de civilização, todos os reis e camponeses, todos os casais jovens apaixonados, todas as mães e todos os pais, crianças esperançosas, inventores e exploradores, todos os professores de moral, todos os políticos corruptos, todas as superestrelas, todos os líderes supremos, todos os santos e pecadores da história da nossa espécie viveram aí - nesse grão de pó suspenso num raio de luz do Sol.
A Terra é um palco minúsculo numa vasta arena cósmica. Pense nos rios de sangue derramados por todos aqueles generais e imperadores para que, em glória e triunfo, pudessem tornar-se momentaneamente mestres de uma fracção de um ponto. Pense nas intermináveis crueldades infligidas pelos habitantes de um canto deste pixel nos quase indistinguíveis habitantes de outro canto qualquer, quão frequentes os seus desentendimentos, quão desejosos de se matarem mutuamente, quão fervorosos dos seus ódios.
As nossas posturas, as nossas imaginadas auto-importâncias, a ilusão de que temos uma posição privilegiada no Universo, são postas em causa por este ponto de luz pálida. O nosso planeta é uma partícula solitária numa enorme envolvência de escuro cósmico. Na nossa obscuridade, em toda esta imensidão, não há vestígio que indique que ajuda virá de fora para nos salvar de nós mesmos.
A Terra é o único mundo conhecido até agora a albergar vida. Não há nenhum outro sítio, pelo menos no futuro próximo, para onde a nossa espécie possa migrar. Visitar, sim. Ficar, ainda não. Goste-se ou não, por agora a Terra é onde nos mantemos de pé.
Já foi dito que a astronomia é uma experiência humilde e que ajuda a construir o carácter. Possivelmente não há melhor demonstração da loucura do orgulho e preconceito humanos do que esta imagem distante do nosso minúsculo mundo. Para mim, ela enfatiza a nossa responsabilidade de lidarmos mais delicadamente uns com os outros, e de preservarmos e estimarmos o ponto azul claro, a única casa que alguma vez conhecemos."
Lá estão, nesse pontinho minúsculo, os doutos senhores discutindo a existência de Deus, a sua bondade, a bondade dos seres humanos, a bondade em si mesma, tudo e mais alguma coisa.
Cá fora, aqui ao lado da Voyager 1, silêncio e escuridão. Umas parcas partículas, umas ondas, uns fraquitos campos... Escuridão quase tudo, e cloreto de sódio?, nem vê-lo, nem na espectrofotometria. Nem bem, nem mal. Uma lata a deambular no nada. Deus?... Quem sabe?...
Afinal, disse alguém, 'Deus quer, o Homem sonha, a obra nasce'. Portanto, vamos lá de novo:
Quem disse, afinal, que Deus tinha de ser bom? Foi o Homem, porque Deus quis.
Quem disse, afinal, que Deus tinha de ser perfeito? Foi o Homem, porque Deus quis.
Quem
disse, afinal, que Deus existe? E que não existe? E que não há forma de saber se existe ou não existe? Foi o
Homem, porque Deus quis.
Daqui, deste ponto de vista, a milhares de milhões de quilómetros de distância, os seres humanos são animais que resolveram divertir-se com o cérebro que têm, e andam às voltas, em círculos, a correr atrás de si mesmos, das suas próprias ideias, citando-se uns aos outros sem sair do sítio, como cães desvairados a correr atrás da própria cauda.
Agora vejam eu, a correr atrás da minha própria cauda:
Deus está onde está o mistério. Deus é mistério, é magia. Deus explica tudo o que desconhecemos. Se tudo tem antecedente e consequente, Deus, este Deus que agora defino, não tem. Ele é. E isso é porreiro. Antes era Deus, depois Deus fez e disse e quis e nós sonhámos e tal, e depois nós kaput, e depois Deus. Já está. Nesta linha, Deus faz as vezes do telómero que fecha o cromossoma daquilo que podemos explicar. E, de cada vez que conseguimos explicar mais alguma coisa, Deus permanece lá, na extremidade, a explicar o resto, o inexplicado. Saber mais ou menos, explicar mais ou menos, não altera nada disto. Venha a ciência toda que pudermos inventar, e Deus estará sempre lá, antiquado vanguardista, na fronteira do conhecimento.
Ou não. Só depende de nós. Tal como o bem e o mal.
E agora voltem a olhar para o pequeno pixel que é o nosso planeta Terra..., ..., ..., e ponham-se a mexer. Não para correr atrás de novas caudas, próprias ou alheias, mas porque aquilo que aqui fazemos é da nossa responsabilidade, e há imenso por fazer!
(Vá, larga as caudas, os cus, as citações, as ondas... Não te prendas a uma onda qualquer, que a teus pés venha morrer. Ondas há muitas! Como os deuses! Pensa tu. Faz tu. É melhor não esperar pelos deuses.)