Ontem mesmo, numa qualquer rede social perto de si, uma pessoa disse que os Estados Unidos da América foram o único país a utilizar bombas nucleares contra outros países. A afirmação era ainda mais contundente, na verdade, porque dizia que a lista de países que o haviam feito continha neste momento apenas uma entrada, a desse país, o que deixa em aberto a possibilidade, infelizmente cada vez mais verosímil, de outro país ser adicionado à lista.
Quando era jovem e passeava tanto quanto podia pelos vales e cumes, pelos bosques, rios e ribeiras, florestas, prados e cascalheiras, perguntava-me porque é que era sempre tão difícil encontrar mais pessoas interessadas nesses passeios, quando afinal havia tantas pessoas a gostar de florestas e rios e ribeiros. Cedo percebi que as pessoas não fazem necessariamente aquilo de que gostam, mas sim e apenas aquilo que colocam à cabeça da sua lista de prioridades.
Eu comentei a afirmação sobre as bombas nucleares expressando a minha tristeza, ainda para mais sabendo que os Estados Unidos não lançaram apenas uma bomba, mas duas, e não o fizeram num sítio ermo, mas sim no centro de cidades populosas. Outra pessoa sentiu vontade de rir ao ler o meu comentário, e logo comentou, e não ficou sozinho nesse seu comentário, que os Estados Unidos fizeram isso mas conseguiram acabar com a guerra.
Os últimos anos têm sido para mim uma revelação muito desagradável da desumanidade que vai dentro de tantos corações e tantas cabeças. As cabeças munem-se de douta argumentação e partem a realidade aos bocados. Os corações escolhem um bocado em detrimento dos demais. Cabeças e corações unem-se então na idolatria do "nós" e no achincalhamento do "outros" e constroem paulatinamente uma impenetrável blindagem de pedaços de verdades descontextualizadas, de mentiras bem fundamentadas, de todos os pedacinhos da realidade que convêm, tudo bem unido numa matriz de grande necessidade de justiça, de identificação, de construção de um mundo melhor. Para o "nós".
A barbárie constrói-se assim. O mal, essa banalidade, resulta não apenas do silêncio conivente da maioria da população, mas também desta incapacidade de colocar o amor à frente na lista das prioridades. O amor, daquele tipo de amor que supostamente deveríamos festejar daqui a uns dias, quase no final de Dezembro, e que tanto é apregoado por tantas religiões neste planeta e ao longo da história. Ama o próximo. Ama o longínquo. Ama.
Sim, os bárbaros amam. Os bárbaros, os guerreiros, não gostam da guerra, não querem a guerra, estão dispostos a tudo para acabar com a guerra, inclusive lançar bombas nucleares sobre os inimigos. Mais dificilmente estarão dispostos a ceder ou a ver nos seus inimigos seres humanos iguais a eles mesmos.
Nos últimos anos fiquei a saber que assassinar os genes palestinianos é mau, mas justifica-se se desse modo conseguirmos finalmente paz no Médio Oriente. Fiquei a saber que arrasar a Ucrânia e a sua população é mau, mas justifica-se se desse modo pudermos dar uma lição ao Putin. Fiquei a saber que arrasar cidades inteiras, matando centenas de milhares de inocentes numa fracção de segundo, justifica-se se for para ganhar uma guerra. Fiquei a saber que promover o terror à escala global, alterando regimes em países estrangeiros como se fossem sua pertença, produzindo e vendendo armas, acicatando divisões nas populações e promovendo activamente a criação de grupos armados, começando e acabando guerras de botões e sangue com telefonemas, tudo isso se justifica, e é bom, se em troca pudermos instalar no mundo uma "democracia" à nossa moda.
Os fins justificam os meios, portanto. A barbárie.
Defendida a dólares, euros, balas e explosivos por todos os "democratas" que se esforçam
por terminar todas as guerras, pertencentes ao "nós" ou ao "outros".
Eles gostam de florestas, rios e ribeiras. Simplesmente há outras prioridades.
Mas a floresta humana precisa de nós. A floresta que começa dentro de nós. Nós não somos bárbaros! Somos gente! Iguais a toda a gente que há e que alguma vez houve na nossa capacidade de amar, de amar familiares, amigos, vizinhos, os outros, os animais e as plantas, a música, a dança, a comida, a bebida, as roupas, as palavras, os desenhos, as pinturas, os corpos, as aventuras, o calor, a segurança e o conforto dum ninho. Essa floresta partilhada por todos nós e de que tanto precisamos constrói-se com amor.
É preciso mudar as prioridades. É preciso o amor! É preciso aprender a amar quem odiamos e quem nos odeia. Não podemos mais justificar o nosso mal com o mal dos outros. A única bomba boa que há é a que nunca existiu.
Vem-me à memória o discurso de Chaplin no "o grande ditador".
Vem-me à memória este excerto do "escuta, zé ninguém" de Wilhelm Reich.
Vem-me à memória o Zizek a dizer que não deve ser necessário entender o outro para que possamos viver em paz. O mundo é muito complexo, não temos tempo para entender tudo, temos de ser capazes de viver em paz mesmo sem entender tudo.
Vem-me à memória tanta coisa... a certeza do Almada de que já estava tudo escrito quando nasci, só faltava mesmo mudar o mundo. Até o barbudo alemão já dizia que os filósofos interpretavam tudo, só ficava a faltar mudar o mundo.
"Há tanta coisa que fazer, meu Deus! E esta gente distraída em guerras!" (Cena do ódio, Almada Negreiros)
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