quinta-feira, 20 de fevereiro de 2025

Thatcher e o Banco Central Europeu...

Este é um excerto do livro "And the weak suffer what they must?" de Yanis Varoufakis. Nem ele, nem eu, temos a Thatcher em muito boa conta. Ela fez parte de um grupo de políticos que a nível mundial instalaram, à lei da bala, o sistema económico que hoje temos onde cada vez mais só o dinheiro conta. Não me esqueço, por exemplo, da sua amizade com Pinochet, a quem ela deu guarida na sua velhice, protegendo-o inclusivamente de um mandado de prisão internacional. Mas, mesmo tendo sido a Thatcher uma política de direita que governou a favor dos oligarcas capitalistas, até ela foi capaz de identificar que um Banco Central Europeu não democrático, como o que hoje temos, seria uma péssima opção.

Ao contrário do que alguns poderão pensar, o sistema económico que temos é tudo menos natural. Ele foi construído à revelia da vontade da população (por exemplo: foi você que pediu um BCE?) para promover um determinado tipo de economia.

O que aconteceu no ano da pandemia em que a actividade económica foi tremendamente reduzida, e em que consequentemente foi lançado um "plano de recuperação e resiliência" com biliões de euros a surgirem sabe-se lá de onde, ao mesmo tempo que as dívidas públicas de quase todos os países europeus se mantinham inalteradas, pagando anualmente juros que seriam mais do que suficientes para, por exemplo, colocar os sistemas nacionais de saúde em ordem, é um exemplo flagrante de como a governação é feita em favor de quem tem o poder económico e não em favor da generalidade da população.

Apesar disso ser flagrante e de ter impactos determinantes na vida de todos nós, a ponto de eu arriscar dizer que não há nada mais importante na condução da nossa vida material, todos seguimos impávidos e serenos na nossa ignorância acerca de onde o dinheiro surge e como desaparece. Já era tempo de mudar isso!

Excerto, com descuidada tradução minha:

"Que boa ideia!" respondeu Thatcher, depois de uma grande alegria ter enchido a Casa [dos Comuns]. E seguiu dizendo, em tom de brincadeira, "não tinha pensado nisso. Mas se pensasse, não haveria um banco central europeu que não presta contas a ninguém, muito menos aos parlamentos nacionais. Porque com um banco central desse tipo não haveria democracia, [e o banco central estaria] retirando os poderes de todos os parlamentos e tendo uma só moeda e uma política monetária e uma política de taxa de juro que nos retiraria a todos poder político."

Foi possivelmente a primeira e a última vez que o primeiro ministro de uma potência europeia acertou em cheio relativamente à natureza da união monetária da Europa. A noção de que o dinheiro pode ser administrado apoliticamente, apenas por meios técnicos, é uma loucura da maior perigosidade. A fantasia do dinheiro apolítico foi o que transformou o padrão do ouro do período entre guerras num sistema primitivo, cujo inevitável colapso impulsionou o fascismo e o nazismo com os efeitos que todos conhecemos e lamentamos.

O padrão do ouro baseava-se na ideia de despolitizar o dinheiro através da associação da sua quantidade à quantidade de ouro - um metal que os políticos não podiam criar do nada, uma vez que é fornecido exogenamente pela natureza. Hoje, a mesma fantasia do dinheiro apolítico pode ser encontrada não apenas na construção de um banco central europeu que não responde perante nenhum parlamento (como Thatcher tinha avisado) mas também nas modernas moedas digitais como o Bitcoin, cuja imagem de marca é precisamente a de não ter uma autoridade política a dirigi-lo. A ideia preciosa de Margaret Thatcher foi que o controlo das taxas de juro e da oferta de moeda é uma actividade política quintessencial que, se removida do controlo de um parlamento democraticamente eleito, origina uma descida inexorável para o autoritarismo.


 

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2025

De que nos serve a barbárie?...

The Fourth Beast: Is Donald Trump the Antichrist? : Moelhauser, Lawrence  R.: Amazon.co.za: Books 

Até me dá vontade de agradecer a Trump por trazer à luz do dia, escancaradamente, aquilo que todos os presidentes anteriores foram fazendo às escondidas. Erguer muros contra os pobres dos outros países e dificuldades contra os pobres do próprio país, dar mais força aos mercados desregulados, legislar a favor dos grandes interesses económicos, gastar mais em armas, fazer guerras em nome do negócio... nada disso é novo. Mas finalmente os campeões da propaganda enraizada desde as escolas primárias às universidades, desde os canais televisivos às redes sociais, desde as distracções aos locais de trabalho, perceberam que não precisam de esconder nada.

Podia ser que agora, finalmente, as pessoas começassem a abrir os olhos!

Mas não. Não sejamos ingénuos. Aqueles que abrirem os olhos irão ficar ofuscados com tanta luz, e deixá-los-ão apenas entreabertos o suficiente para distinguir no Trump um crápula. Talvez que esse amor generalizado à imagem que têm dos Estados Unidos como o país da democracia, da liberdade, da igualdade, onde todos têm os mesmos direitos e podem concretizar os seus sonhos, o país que pugna por esses valores no mundo inteiro, não olhando a meios para combater os hereges autocratas e inimigos do livre arbítrio, talvez o amor generalizado a isso tudo possa ser posto em causa por algumas pessoas, à luz dos acontecimentos com que Trump faz o favor de nos brindar quase diariamente.

Muitos resistirão ainda assim, ancorando o seu amor à terra dos livres na evidência histórica da ausência de alternativas. Irão explicar-nos, pela milionésima vez, que apesar de tudo não há melhor país do que aquele, que os outros – este, aquele, aqueloutro e mais algum – são horríveis, como toda a gente sabe. Irão, desse modo, agarrar-se à discussão básica que a propaganda, de todos os lados, e esta sim, papagueada desde há séculos, tratou tão bem de inculcar nas cabecinhas de todos enquanto liam (para se educarem), viam filmes (para serem mais cultos), trabalhavam (para serem úteis à sociedade) e se comportavam como deve ser (para serem respeitáveis): a discussão sobre quem ou o quê é que devemos seguir.

Devemos nós pertencer ao clube dos que gostam dos EUA, ou ao clube dos que gostam da Rússia? Ao clube dos que gostam do capitalismo ou do comunismo? Ao clube dos que gostam de Trump ou dos que gostam do... olha, já me esqueci!... do Biden? Ao clube dos que votam PS ou ao clube dos que votam PSD? Oh! Como é difícil com tantos caminhos saber qual deles seguir! Como é difícil compreender o que nos querem dizer de um lado e do outro! Por favor, ajudem-nos! Dêem-nos uma pista que seja: quem é que deveremos apoiar? Em quem deveremos depositar nós a confiança de nos guiar neste mundo tão complexo e tão cheio de poderes que nos transcendem?

Não. A discussão nunca devia ter sido essa. A discussão devia ter sido sempre sobre como nos amarmos, sobre como tocarmos o acordeão e dançarmos à volta da fogueira, apreciando os frutos que a natureza tem de sobeja para todos nós. A discussão devia sempre ter sido sobre como impedir que os outros nos roubem a alegria, nos roubem da nossa justa parte do todo que é produzido, como impedir que haja sempre uma meia dúzia de espertalhaços que ganham com o trabalho dos outros mais do que eles todos juntos. A discussão devia ser sobre como construir jardins e impedir guerras. Sobre como proibir a construção de armas e garantir essa proibição, em vez de as produzir alegando que servem para a paz. A discussão devia sempre ter sido sobre o amor e a sua protecção acima de todas as coisas más que nos afligem a todos, mais tarde ou mais cedo, num dado momento: invejas, egoísmos, raivas, megalomanias. A discussão devia sempre ter sido sobre como encontrar relações mais harmoniosas entre todos nós, e entre nós e a natureza. Sobre como viver bem minimizando o sofrimento de todos os seres vivos e mantendo as relações ecológicas delicadas que a natureza criou ao longo de milhões de anos. Sobre como crescer, cá dentro, sobre como desenvolver a nossa capacidade de ver o belo, e de o aumentar, e a nossa capacidade de discernir o feio, e de o prevenir ou isolar.

A discussão devia ter sido sobre valores morais, ou éticos, como lhes queiram chamar. Nunca devíamos ter desistido disso. Historicamente levamos com a moral dos outros em cima até ao ponto em que nos rebelámos e pudemos finalmente gritar liberdade!... Só que nesse momento mandamos a moral toda às urtigas. Depois ficámos à nora. Agarrámo-nos por fim às crenças antigas, acreditando que quanto mais antigas mais verdadeiras e logo melhores, e às crenças modernas, como a crença cega nas capacidades da ciência resolver todos os problemas do planeta. Enfim, agarrámo-nos a qualquer coisa que nos permitisse a mínima noção de chão, de substrato, de fundamento, neste oceano muito fluido de complexidade que nos ameaça de afogamento a toda a hora.

Não discutimos nada. Agarrámo-nos simplesmente a qualquer coisa que nos parecesse uma nesga de fundamento. E quando olhámos para o lado, o do lado tinha-se agarrado a outra coisa qualquer. E logo o acusámos de fundamentalismo!... Quando devíamos era ter discutido. O que é melhor aqui e agora pode não o ser ali ou noutro tempo. O que é melhor para ti pode não o ser para mim. Mas, se numa esperança infundada de vislumbre, pudéssemos ser um pouco menos individualistas, autárcicos, até narcisistas, se pudéssemos ser um pouco mais humildes para connosco mesmos, saberíamos que nem nós sabemos bem o que é melhor para nós. Estamos sempre a aprender. E temos todos muito a aprender uns com os outros. Não devíamos nunca ter deixado de falar uns com os outros, sobretudo acerca do que consideramos melhor para todos nós.

E agora chegámos a um ponto em que cada um está tão arreigado na sua estabilidadezinha, tão cioso dela, tão pronto a defendê-la dos ataques dos outros, que já não conseguimos colocar-nos em causa e impedimos qualquer tipo de diálogo profundo com quem nos seja um bocadinho diferente.

Do que se trata aqui não é de saber se devemos amar os EUA ou outro país qualquer. Trata-se, isso sim, de perceber que esse tipo de amores são propagandeados para que seja mais fácil aos pastores conduzirem o rebanho. Devíamos rejeitar as bandeiras, todas elas! E os presidentes, todos eles! Do que se trata é de sermos capazes de ter um espírito crítico e de mantermos a energia suficiente para nunca termos de o desligar. E ufff!... que depois de um longo dia a trabalhar às ordens de outros, a aturar tarefas chatas e pessoas indelicadas, para atingir objectivos que não são os nossos... é difícil manter essa energia. Pois é.

Tenho a esperança que as barbaridades do Trump terminem rapidamente (e que o Trump, desprovido dessas barbaridades, e reencontrado como ser humano, sentado na sanita, com saudades da mamã, possa seguir a sua vidinha). Tenho esperança que estas barbaridades possam beliscar os facciosismos de alguns aficionados. Mas não tenho muita esperança que os possa levar a centrar a discussão naquilo que verdadeiramente importa. Para isso o trabalho deve ser outro. Feliz ou infelizmente, antes ou depois do Trump, a questão continua a ser outra.