(imagem retirada daqui)
Segunda parte do texto iniciado aqui.
Na primeira parte do texto tentei expor a relação que penso existir entre felicidade e sofrimento. Como se duas faces de uma mesma moeda se tratassem. De facto, disse eu, nós podemos posicionar-nos, em termos de atitude, ao longo de uma escala que tem num extremo a completa aversão do risco e noutro extremo a completa aceitação do risco. Ora essa mesma dimensão, de maior ou menor aceitação dos riscos relacionados com tudo o que se passa nas nossas vidas, pode ser encarada de forma equivalente como a construção de barreiras mais ou menos protectoras da nossa integridade física e emocional. Defendo eu então que quanto mais intensas são essas barreiras, menor é a nossa capacidade de sentir felicidade ou sofrimento. Resumindo excessivamente: ou sentimos, ou não sentimos, e se sentimos sujeitamo-nos a sentir coisas boas ou más. Finalmente, defendo que se queremos não ser estupidamente "cool" como calhaus à sombra, se em vez disso queremos ser vivos, bem vivos, então devemos fazer um esforço constante de diminuição das nossas barreiras, de aumento de tolerância do risco, na medida em que a nossa robustez física e emocional nos permitir.
Uma vida bem vivida, afirmo, é uma vida cheia de paixões, cheia de vontades, cheia de quereres. Digo que "se queremos ser felizes temos de querer muitas coisas, de nós e dos outros e do mundo, para nós e para os outros e para o mundo. Amar
é querer muito. Amar é fonte incerta de felicidade e de tristeza." E termino perguntando "Valerá a pena? O que fazer quando dá em sofrimento?..."
O que fazer então quando o nosso amor se transforma em sofrimento?
Quando sofremos a nossa robustez emocional (e possivelmente também física) diminui. A resposta natural à diminuição da nossa robustez é o aumento das nossas barreiras de protecção, é a diminuição da assumpção de risco, é uma certa forma de enclausuramento em nós próprios, para lambermos as feridas, para cuidarmos de nós. O nosso corpo e a nossa mente fazem isso de um modo razoavelmente automático, tal como quando nos dói uma articulação e ao fim de algum tempo, já sem consciência do processo, evitamos utilizar essa articulação.
Quando sofremos fechamo-nos na nossa concha a tratar de nós, a recuperar energia. É um processo natural. E enquanto estamos fechados na nossa concha, uma coisa que costumamos fazer é pensar muito. Os nossos pensamentos deambulam entre o passado e um futuro mais ou menos possível, revisitando situações, reinterpretando-as, imaginando cenários alternativos muitas vezes impossíveis... fazendo filmes! Este processo de pensar e repensar sobre os acontecimentos que conduziram ao nosso sofrimento é um processo necessário. De facto, outra das coisas que faz parte de nós de uma forma muito primitiva, muito essencial, e que está relacionada com a simples sobrevivência, é a capacidade de aprendizagem. Para podermos aprender com as coisas que nos vão sucedendo, é necessário que as compreendamos. Não se trata aqui de descobrir a verdade sobre essas ocorrências, porque podem existir múltiplas verdades. Trata-se simplesmente de encontrar uma verdade que sintamos como adequada, que passa a ser a nossa verdade. Será a nossa forma de explicar e de compreender o que nos sucedeu.
Nesse processo de interpretação e reinterpretação das causas do nosso sofrimento, há uma tentativa natural de atribuição de culpa. Poderíamos falar simplesmente de identificação de causas, ou eventualmente de atribuição de responsabilidades, mas falamos de culpa, com a carga negativa que lhe está associada, porque consideramos que o sofrimento é evitável e que, portanto, todos nós devemos ter condutas que minimizem o sofrimento, nosso e dos outros. Isto é o mesmo que dizer que consideramos automaticamente que alguém errou.
Ora, este processo de interpretação do real, de aprendizagem, de atribuição de culpas pode ser bastante doloroso. Aprender é muitas vezes doloroso. Quantas vezes temos de compreender coisas sobre os outros, sobre o mundo e sobre nós próprios que preferíamos não compreender de todo, porque são coisas más?... Alguém dizia que não há nada que seja tão mau que não possa ficar ainda um bocado pior juntando-lhe uma dose de culpa. E o pior é que isto é tantas e tantas vezes verdadeiro!...
O sofrimento original adicionado à dor que resulta deste processo quase inevitável, porque natural, de reinterpretação do real, pode tornar-se demasiado doloroso para o suportarmos. Nesse momento podem surgir dois comportamentos que me parecem ambos patológicos. Um deles será o de uma excessiva auto-defesa da nossa própria integridade. Nessa circunstância atribuímos toda a culpa dos acontecimentos aos outros. O outro comportamento será o de simplesmente passar por cima de todo o acontecimento como se nada tivesse acontecido, e de uma forma mais ou menos consciente apagá-lo da memória. Esses comportamentos resultam da nossa fragilidade emocional e da consequente necessidade de construção de um ego acima de qualquer ataque. Infelizmente, o resultado destes comportamentos é que o processo de aprendizagem é simplesmente eliminado. E quando não se aprende, a probabilidade de cometer os mesmos erros aumenta.
Alternativamente, quando estamos emocionalmente mais sólidos, pode ocorrer o comportamento oposto, que me parece igualmente patológico. Neste caso em vez de atribuirmos a culpa aos outros, tendemos naturalmente a desculpar tudo e todos excepto nós próprios. Não sou psicólogo, e não vou tentar aprofundar este tema.
Portanto, quando o amor se transforma em sofrimento, tendemos naturalmente a fechar-nos na nossa concha, a repensarmos tudo o que deu origem a esse sofrimento, a sofrermos um pouco mais com as conclusões a que vamos chegando, a organizar pouco a pouco uma narrativa, uma explicação para o sucedido. Durante todo este processo estamos com as barreiras levantadas, evitando novos sofrimentos e simultaneamente menos propensos a grandes paixões, grandes amores e grandes felicidades.
Finalmente, pouco a pouco, à medida que vamos compreendendo porque aconteceu como aconteceu, o que poderíamos ter feito melhor ou pior, a sorte ou o azar que tivemos com as condicionantes externas, as características de personalidade das outras pessoas com (ou a) quem nos demos, à medida que tudo vai fazendo sentido, nós vamos lentamente aceitando o desfecho dos acontecimentos e aceitando o nosso próprio sofrimento.
Todavia, a aceitação da dor, algo que é tantas vezes tão difícil de alcançar, devia acontecer de forma muito mais suave e espontânea. Por vários motivos.
Em primeiro lugar, é bom que compreendamos que quanto menos dependentes formos de coisas que não podemos controlar, mais fácil é a manutenção do nosso bem-estar. Como já alguém dizia, se queremos passar bem, temos de reduzir as nossas necessidades. E isso remete para o desenvolvimento da nossa autonomia e o nosso desenvolvimento interior, das nossas capacidades sensitivas, emocionais, de raciocínio, de conhecimento e outras. Cada um de nós transporta consigo todo um universo potencial cheio de coisas boas. Compete-nos acordá-lo, desenvolvê-lo, aperfeiçoá-lo. Compete-nos sermos mais belos. E de todo esse trabalho de desenvolvimento interior resulta sempre uma paz, uma satisfação, uma auto-confiança e uma auto-estima que são impagáveis.
Temos, antes de mais nada, de aprender a estar bem connosco.
A partir daí, tudo o resto deve ser considerado um extra, um bónus. E, se tivermos apreendido o que tentei transmitir na primeira parte deste texto, devermos compreender que esse extra não vem sem um custo que é a necessidade de assumpção de um risco. Ou seja, temos de saber que ter coisas boas é correr o risco de deixar de ter essas coisas boas. É tão simples quanto isso! E ter isto presente não deve ser um peso, não deve ser uma infelicidade. Se o é, é porque temos medo de perdermos as coisas boas que temos, é porque não somos capazes de nos sentirmos bem por nossa conta. Pelo contrário, se a base de referência for uma base de bem-estar, a consciência da delicadeza e da fragilidade das coisas boas que temos deve contribuir para aumentar o respeito por essas coisas e a gratificação pela nossa sorte.
Há uma ressalva que sinto dever fazer acerca deste assunto. Temos de ser capazes de nos sentirmos bem por nossa conta, desenvolvendo a nossa autonomia, afirmo. No entanto, estar numa relação com outra pessoa é mudar radicalmente a nossa condição. Tentar manter a autonomia e simultaneamente uma relação com outra pessoa é, aos meus olhos, impossível. Por isso mesmo é preciso saber escolher bem a quem nos queremos dedicar, a quem decidimos entregar a nossa autonomia, de quem queremos ser dependentes. O amor só pode existir com dependência. O amor é uma das maiores felicidades da vida. É também um dos maiores riscos.
A aceitação do sofrimento que o amor pode causar também deve resultar da constatação de que o mundo não existe propositadamente para a nossa felicidade. Se abandonarmos o nosso egocentrismo compreenderemos que o mundo gira bem sem nós e que as outras pessoas arranjarão formas de ser felizes sem nós. Por outro lado, todo o mundo e todas as outras pessoas devem ser livres. Se nós verdadeiramente gostarmos delas, iremos querer que elas sejam livres.
Mas existem muitas pessoas que querem prender a si as pessoas amadas (pense-se no caso das nossas relações com os nossos filhos) e que aparentemente amam de uma forma muito profunda e muito intensa essas outras pessoas. Pois bem, para mim esse não é um verdadeiro amor, é um amor inquinado pelo nosso próprio egoísmo.
E, se pensarmos e se sentirmos bem, é sempre o egoísmo e a nossa auto-compaixão que fazem com que o sofrimento de perdermos alguém seja tão forte. Se alguém que amamos muito decide deixar-nos, é o nosso próprio egoísmo que nos faz sofrer e desejar que as coisas sejam de outro modo. Tínhamos uma coisa que nos fazia sentir bem e deixamos de a ter. É só isso. Se compreendermos bem o papel que essa auto-compaixão tem na nossa dor, mais facilmente a iremos aceitar e consequentemente ultrapassar.
Estou a chegar ao fim do meu texto. Gostava de finalizar realçando a ideia de que se queremos ser felizes, verdadeiramente felizes, e se queremos amar e colher os frutos desse amor, temos de nos sujeitar, de correr o risco de sofrer muito com isso e a ideia de que a satisfação que resulta do verdadeiro amor não é uma consequência da posse ou do usufruto. Pelo contrário, a satisfação que resulta do verdadeiro amor é a simples existência desse amor. E a consequência dessa satisfação traduz-se na dádiva, não no usufruto. Amar é trocar, mas é sobretudo dar. E a profundidade disto que acabo de dizer podem explorá-la por vossa conta.
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