"É em vão que se tentará extrair desta desordenada mitologia uma qualquer tradição histórica. Torna-se até difícil perceber como é que qualquer história se poderia alguma vez enredar em tais ficções.
Esta observação não se aplica apenas ao vidente de Patmos. Aplica-se também ao autor anónimo da carta aos hebreus, ao apóstolo Paulo, aos nossos evangelistas. Ao que parece, nenhum deles deverá ter colhido recordações vívidas a respeito de Jesus. Alguma coisa delas teria ficado na sua obra, capaz de lhe conferir aquela sensação de real que lhe falta sempre. Não deixa de ser estranho que um homem de temperamento suficientemente vigoroso para fundar uma nova e grande religião não tivesse deixado na memória dos seus discípulos nenhuma imagem precisa capaz de nos revelar os seus traços, nenhum eco do que pode ter sido o seu sotaque, nenhum sinal claro da sua actividade, nenhum rasto da sua passagem. O carácter fictício das informações que nos são fornecidas sobre ele, pelas suas primeiras testemunhas, leva-nos a pensar que a sua personalidade não passa de um mito.
A conclusão pareceria simples e decisiva se fossem Átis ou Mitra que estivessem em questão. Como se trata de Cristo, os espíritos mais livres têm dificuldade em aceitá-la. Não só porque um fardo enorme de hábitos e de preconceitos milenares continua a pesar sobre todos nós, mas também porque não obstante os exemplos fornecidos pelas outras religiões, é difícil compreender que um mito desta natureza se tenha podido formar e ganhar consistência ao ponto de se impor durante tantos séculos a milhões de adeptos.
Os cristãos simplesmente acreditavam em Cristo na medida em que, no que se dizia sobre ele, entreviam uma resposta às suas íntimas preocupações, um remédio para os seus males. Ora, todos os evangelhos, fossem eles de Marcos, de Lucas, de Mateus ou de João, apresentavam-no sob o ângulo mais favorável. Em todos eles Jesus aparecia como um deus muito grande e muito bom, que se fez semelhante aos homens para pôr termo aos seus sofrimentos, que sabia ler os corações e que com uma só palavra podia curar as piores enfermidades. Havia sido visto a ter compaixão pela multidão e a multiplicar pães no deserto para alimentar. Aos seus discípulos pedia apenas que acreditassem nele. Em troca desta fé, garantia-lhes uma vida eterna de felicidade. Como poderia a massa de pobres, esmagada pela miséria e corroída por preocupações, não ser atraída por ele entregando-lhe a sua confiança. Portanto, o sucesso que obtiveram os missionários de Jesus, não é mais singular do que o dos representantes de outros deuses salvadores. É da mesma ordem e decorre das mesmas causas. Explica-se muito facilmente, sem necessidade do surgimento repentino de um homem sobreeminente, pelo trabalho árduo de operários anónimos que deram uma forma concreta ao ideal místico da massa crente.
Não foi Cristo que fundou o cristianismo. Antes foi o cristianismo que progressivamente elaborou a imagem de Cristo."
in "As origens sociais do cristianismo - Estudos sobre a história dos dogmas" de Prosper Alfaric.
Deus e o mal. Se Deus é omnipotente e omnisciente e bondoso, como pode o mal existir? Este problema aflige ou simplesmente espicaça a mente dos seres humanos, de alguns seres humanos, desde há milhares de anos. Se nunca pensou no assunto, tire uns segundos para o efeito e junte-se ao clube. Verá que não há resposta satisfatória para o problema.
Muito foi discutido e escrito acerca deste assunto. Personagens, livros, datas, afirmações, posições, interpretações... Bom, talvez seja tempo de eu também me juntar a estoutro clube.
Deus existe? Como é que podemos saber se ele existe ou não? Também já muita tinta correu sobre o assunto. A certa altura, um sujeito pragmático concluiu: por via das dúvidas, não vá Deus existir mesmo e ser vingativo, o melhor é mesmo acreditar que existe! Sem dúvida um argumento sólido. (ironia)
Se Deus quisesse ter a certeza que acreditávamos nele, não nos daria ele provas irrefutáveis da sua existência?... Também essa questão já foi levantada e respondida de várias formas.
Mas, será que o mal existe?... Alguns disseram: o mal é a ausência do bem. Outros disseram outras coisas. Muita gente disse muita coisa.
Pergunto eu agora: se são as pessoas a discutir e a decidir sobre a existência ou inexistência do mal, como pode isso servir de critério para aferir a existência ou inexistência de Deus?
Bem e mal... Nós, seres humanos, definimos cada um deles por oposição ao outro. Saramago fez Jesus sentar-se num barquito no meio do nevoeiro do mar, juntamente com Deus e o Diabo. Aí, estes dois delinearam o plano que iria espalhar a respectiva adoração pelo mundo. Esse plano incluía a lista de atrocidades que desde então a humanidade perpetrou. É a vidinha!... Não se espalha a noção de bondade sem a de maldade!
Quem disse, afinal, que Deus tinha de ser bom? Foi o Homem.
Quem disse, afinal, que Deus tinha de ser perfeito? Foi o Homem.
Quem disse, afinal, que ser bom implica não ser mau? Foi o Homem.
Quem disse, afinal, que ser mau é não ser bom, ou fazer coisas más, coisas que não são boas, porque são más, porque são feitas com maldade, porque a maldade é o que está nas coisas más, que não são boas? Foi o Homem.
Quem disse, afinal, que Deus existe? Foi o Homem. E que Deus não existe? Foi o Homem. E que não há forma de saber se existe ou não existe? Foi o Homem. Quem disse o Homem, quem o leu, quem o citou, quem discutiu com ele? Foi o Homem.
Quando as câmaras fotográficas da sonda Voyager 1 estavam prestes a tornar-se inúteis, isto é, quando a sonda estava já tão longe de qualquer astro do Sistema Solar que os seus planetas apareciam apenas como um pixel na imagem, e não se prevendo a aproximação de qualquer outro corpo celeste durante os próximos milhares de anos (sendo que a vida útil da sua fonte energética seria de apenas algumas décadas), a equipa responsável por ela (da qual fazia parte Carl Sagan) tomou a decisão de orientar as câmaras para o Sol e fotografar, pela última vez, todos os planetas visíveis. A fotografia da Terra tornou-se famosa. Esta mesma, tirada a 14 de Fevereiro de 1990, a mais de 6 mil milhões de quilómetros de distância (hoje a Voyager 1 continua a afastar-se de nós a cerca de 17 km por segundo, encontrando-se já a uns 24 mil milhões de quilómetros de distância):
Os raios visíveis na fotografia resultam da incapacidade da sonda Voyager 1 em bloquear totalmente a luz directa do Sol. No raio mais à direita, quase a meia altura, pode ver-se um pontinho mais claro. É a Terra!
A propósito, Carl Sagan escreveu o seguinte (tradução minha):
"A esta distância, a Terra pode não parecer ter qualquer interesse especial. Mas para nós é diferente. Considere novamente aquele ponto. É aqui. É a nossa casa. Somos nós. Nele, todos os que ama, todos os que conhece, todos os de que alguma vez ouviu falar, todos os seres humanos que jamais existiram, viveram as suas vidas. Todas as nossas alegrias e sofrimentos, milhares de confissões religiosas, ideologias e doutrinas económicas, todos os caçadores e recolectores, todos os heróis e cobardes, todos os criadores e destruidores de civilização, todos os reis e camponeses, todos os casais jovens apaixonados, todas as mães e todos os pais, crianças esperançosas, inventores e exploradores, todos os professores de moral, todos os políticos corruptos, todas as superestrelas, todos os líderes supremos, todos os santos e pecadores da história da nossa espécie viveram aí - nesse grão de pó suspenso num raio de luz do Sol.
A Terra é um palco minúsculo numa vasta arena cósmica. Pense nos rios de sangue derramados por todos aqueles generais e imperadores para que, em glória e triunfo, pudessem tornar-se momentaneamente mestres de uma fracção de um ponto. Pense nas intermináveis crueldades infligidas pelos habitantes de um canto deste pixel nos quase indistinguíveis habitantes de outro canto qualquer, quão frequentes os seus desentendimentos, quão desejosos de se matarem mutuamente, quão fervorosos dos seus ódios.
As nossas posturas, as nossas imaginadas auto-importâncias, a ilusão de que temos uma posição privilegiada no Universo, são postas em causa por este ponto de luz pálida. O nosso planeta é uma partícula solitária numa enorme envolvência de escuro cósmico. Na nossa obscuridade, em toda esta imensidão, não há vestígio que indique que ajuda virá de fora para nos salvar de nós mesmos.
A Terra é o único mundo conhecido até agora a albergar vida. Não há nenhum outro sítio, pelo menos no futuro próximo, para onde a nossa espécie possa migrar. Visitar, sim. Ficar, ainda não. Goste-se ou não, por agora a Terra é onde nos mantemos de pé.
Já foi dito que a astronomia é uma experiência humilde e que ajuda a construir o carácter. Possivelmente não há melhor demonstração da loucura do orgulho e preconceito humanos do que esta imagem distante do nosso minúsculo mundo. Para mim, ela enfatiza a nossa responsabilidade de lidarmos mais delicadamente uns com os outros, e de preservarmos e estimarmos o ponto azul claro, a única casa que alguma vez conhecemos."
Lá estão, nesse pontinho minúsculo, os doutos senhores discutindo a existência de Deus, a sua bondade, a bondade dos seres humanos, a bondade em si mesma, tudo e mais alguma coisa.
Cá fora, aqui ao lado da Voyager 1, silêncio e escuridão. Umas parcas partículas, umas ondas, uns fraquitos campos... Escuridão quase tudo, e cloreto de sódio?, nem vê-lo, nem na espectrofotometria. Nem bem, nem mal. Uma lata a deambular no nada. Deus?... Quem sabe?...
Afinal, disse alguém, 'Deus quer, o Homem sonha, a obra nasce'. Portanto, vamos lá de novo:
Quem disse, afinal, que Deus tinha de ser bom? Foi o Homem, porque Deus quis.
Quem disse, afinal, que Deus tinha de ser perfeito? Foi o Homem, porque Deus quis.
Quem
disse, afinal, que Deus existe? E que não existe? E que não há forma de saber se existe ou não existe? Foi o
Homem, porque Deus quis.
Daqui, deste ponto de vista, a milhares de milhões de quilómetros de distância, os seres humanos são animais que resolveram divertir-se com o cérebro que têm, e andam às voltas, em círculos, a correr atrás de si mesmos, das suas próprias ideias, citando-se uns aos outros sem sair do sítio, como cães desvairados a correr atrás da própria cauda.
Agora vejam eu, a correr atrás da minha própria cauda:
Deus está onde está o mistério. Deus é mistério, é magia. Deus explica tudo o que desconhecemos. Se tudo tem antecedente e consequente, Deus, este Deus que agora defino, não tem. Ele é. E isso é porreiro. Antes era Deus, depois Deus fez e disse e quis e nós sonhámos e tal, e depois nós kaput, e depois Deus. Já está. Nesta linha, Deus faz as vezes do telómero que fecha o cromossoma daquilo que podemos explicar. E, de cada vez que conseguimos explicar mais alguma coisa, Deus permanece lá, na extremidade, a explicar o resto, o inexplicado. Saber mais ou menos, explicar mais ou menos, não altera nada disto. Venha a ciência toda que pudermos inventar, e Deus estará sempre lá, antiquado vanguardista, na fronteira do conhecimento.
Ou não. Só depende de nós. Tal como o bem e o mal.
E agora voltem a olhar para o pequeno pixel que é o nosso planeta Terra..., ..., ..., e ponham-se a mexer. Não para correr atrás de novas caudas, próprias ou alheias, mas porque aquilo que aqui fazemos é da nossa responsabilidade, e há imenso por fazer!
Ontem mesmo, numa qualquer rede social perto de si, uma
pessoa disse que os Estados Unidos da América foram o único país a utilizar
bombas nucleares contra outros países. A afirmação era ainda mais contundente,
na verdade, porque dizia que a lista de países que o haviam feito continha
neste momento apenas uma entrada, a desse país, o que deixa em aberto a
possibilidade, infelizmente cada vez mais verosímil, de outro país ser
adicionado à lista.
Quando era jovem e passeava tanto quanto podia pelos vales e
cumes, pelos bosques, rios e ribeiras, florestas, prados e cascalheiras,
perguntava-me porque é que era sempre tão difícil encontrar mais pessoas
interessadas nesses passeios, quando afinal havia tantas pessoas a gostar de
florestas e rios e ribeiros. Cedo percebi que as pessoas não fazem
necessariamente aquilo de que gostam, mas sim e apenas aquilo que colocam à
cabeça da sua lista de prioridades.
Eu comentei a afirmação sobre as bombas nucleares
expressando a minha tristeza, ainda para mais sabendo que os Estados Unidos não
lançaram apenas uma bomba, mas duas, e não o fizeram num sítio ermo, mas sim no
centro de cidades populosas. Outra pessoa sentiu vontade de rir ao ler o meu
comentário, e logo comentou, e não ficou sozinho nesse seu comentário, que os
Estados Unidos fizeram isso mas conseguiram acabar com a guerra.
Os últimos anos têm sido para mim uma revelação muito
desagradável da desumanidade que vai dentro de tantos corações e tantas
cabeças. As cabeças munem-se de douta argumentação e partem a realidade aos
bocados. Os corações escolhem um bocado em detrimento dos demais. Cabeças e
corações unem-se então na idolatria do "nós" e no achincalhamento do "outros"
e constroem paulatinamente uma impenetrável blindagem de pedaços de verdades
descontextualizadas, de mentiras bem fundamentadas, de todos os pedacinhos da
realidade que convêm, tudo bem unido numa matriz de grande necessidade de
justiça, de identificação, de construção de um mundo melhor. Para o
"nós".
A barbárie constrói-se assim. O mal, essa banalidade, resulta
não apenas do silêncio conivente da maioria da população, mas também desta
incapacidade de colocar o amor à frente na lista das prioridades. O amor,
daquele tipo de amor que supostamente deveríamos festejar daqui a uns dias,
quase no final de Dezembro, e que tanto é apregoado por tantas religiões neste
planeta e ao longo da história. Ama o próximo. Ama o longínquo. Ama.
Sim, os bárbaros amam. Os bárbaros, os guerreiros, não
gostam da guerra, não querem a guerra, estão dispostos a tudo para acabar com a
guerra, inclusive lançar bombas nucleares sobre os inimigos. Mais dificilmente
estarão dispostos a ceder ou a ver nos seus inimigos seres humanos iguais a
eles mesmos.
Nos últimos anos fiquei a saber que assassinar os genes
palestinianos é mau, mas justifica-se se desse modo conseguirmos finalmente paz
no Médio Oriente. Fiquei a saber que arrasar a Ucrânia e a sua população é mau,
mas justifica-se se desse modo pudermos dar uma lição ao Putin. Fiquei
a saber que arrasar cidades inteiras, matando centenas de milhares de inocentes
numa fracção de segundo, justifica-se se for para ganhar uma guerra. Fiquei a
saber que promover o terror à escala global, alterando regimes em países
estrangeiros como se fossem sua pertença, produzindo e vendendo armas,
acicatando divisões nas populações e promovendo activamente a criação de grupos
armados, começando e acabando guerras de botões e sangue com telefonemas, tudo
isso se justifica, e é bom, se em troca pudermos instalar no mundo uma
"democracia" à nossa moda.
Os fins justificam os meios, portanto. A barbárie.
Defendida a dólares, euros, balas e explosivos por todos os "democratas" que se esforçam
por terminar todas as guerras, pertencentes ao "nós" ou ao "outros".
Eles gostam de florestas, rios e ribeiras. Simplesmente há outras prioridades.
Mas a floresta humana precisa de nós. A floresta que começa dentro de nós. Nós não somos bárbaros! Somos gente! Iguais a toda a gente que há e que alguma vez houve na nossa capacidade de amar, de amar familiares, amigos, vizinhos, os outros, os animais e as plantas, a música, a dança, a comida, a bebida, as roupas, as palavras, os desenhos, as pinturas, os corpos, as aventuras, o calor, a segurança e o conforto dum ninho. Essa floresta partilhada por todos nós e de que tanto precisamos constrói-se com amor.
É preciso mudar as prioridades. É preciso o amor! É preciso aprender a amar quem odiamos e quem nos odeia. Não podemos mais justificar o nosso mal com o mal dos outros. A única bomba boa que há é a que nunca existiu.
Vem-me à memória o Zizek a dizer que não deve ser necessário entender o outro para que possamos viver em paz. O mundo é muito complexo, não temos tempo para entender tudo, temos de ser capazes de viver em paz mesmo sem entender tudo.
Vem-me à memória tanta coisa... a certeza do Almada de que já estava tudo escrito quando nasci, só faltava mesmo mudar o mundo. Até o barbudo alemão já dizia que os filósofos interpretavam tudo, só ficava a faltar mudar o mundo.
"Há tanta coisa que fazer, meu Deus! E esta gente distraída em guerras!" (Cena do ódio, Almada Negreiros)
Já dizia o alemão barbudo, e muitos depois dele, inclusivamente o Fernando Rosas, cujas palavras seguintes podem ser escutadas na parte final do filme "25 anos de paciência impaciente", PSR, 1998, disponível na Internet.
Não posso deixar de considerar, por muito antiquado que isso pareça, que o grande separador de águas em termos teóricos e práticos entre esquerda e direita continua sendo a atitude que se toma face à iniquidade básica em que repousa o sistema capitalista, ou seja, em relação àquela relação social fundamental mediante a qual parte do produto de quem trabalha é expropriada por quem não o faz. A resposta que se dá em termos teóricos e práticos a esta questão continua a ser o que divide a direita e a esquerda, por muito que um certo discurso ideológico tente hoje descentrar esta questão e mesmo negar a actualidade da dicotomia. É bem certo que esta matriz fundamental do pensamento socialista deu origem a duas grandes ordens de equívocos, historicamente, o do socialismo digamos que ocidental, que se transformou numa pura gestão do sistema capitalista, e de um socialismo dito real, que se transformou, ele próprio, numa reprodução de um sistema capitalista tão injusto e odioso como o tradicional. O que significa que o grande desafio que se coloca à esquerda em termos modernos, continua a ser o de se reencontrar através da crítica das experiências históricas do socialismo ou seja, que sistema há-de ser esse, que organização há-de ser essa que seja o princípio do fim do Estado, e não a reprodução do sistema capitalista de outras formas, que organização há-de ser essa que permita simultaneamente o progressivo esvaziamento das discriminações tradicionais entre sexos, entre o trabalho manual e o intelectual, entre a cidade e o campo, e que permita também o maior progresso económico, social, material, intelectual a maior criatividade, como compatibilizar isso, nomeadamente com certos mecanismos de economia de mercado, ou como superar o pluralismo limitado que hoje existe dominado pelas oligarquias partidárias tradicionais com um novo pluralismo mais amplo que permita a intervenção participativa das organizações de cidadãos na vida da colectividade. Tudo isto são utopias, dirão alguns, mas eu pergunto o que é que é intelectualmente mais sério: se perseguir a luta por uma sociedade mais justa ainda que assumindo o prolongado da jornada ou se, pelo contrário, satisfazermo-nos com essa espécie de letargia digestiva que algumas pessoas empanturradas de bom-senso nos aconselham elogiando as virtudes de um sistema que hoje elogiam com tanto zelo como exactamente ontem atacavam. Para mim, que não tenho actualmente nenhuma filiação partidária, nem estou particularmente inclinado para esse tipo de actividade, talvez que ser de esquerda seja, ao menos, ter o pudor de não dar tal espectáculo.
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Ou, como questionava o José Mário Branco:
quantas vezes já tentámos nós? 914? ainda não. 606? ainda não. mas talvez quem sabe 10, 20?... qual é o preço da esperança?... acordai! acordai homens que dormis a embalar a dor dos silêncios vis!
Se não tem vontade para avaliar a veracidade da informação que lhe chega, talvez se sinta mais confortável deixando esse papel a outros, nomeados e renomeados. Neste caso, temos o discurso proferido por Harold Pinter na sequência da atribuição do prémio Nobel de literatura de 2005, com a chancela dos escandinavos que aparentemente têm um discernimento que escapa ao comum dos mortais. Harold Pinter, inglês, não foi um terrorista. Na entrada da wikipedia em português diz que ele foi actor, director, poeta, roteirista e "certamente um dos grandes dramaturgos do século XX, além de destacado e incómodo activista político". Creio que uma propriedade intrínseca dos "activistas" é serem incómodos. O Saramago também escrevia para desassossegar. O que, numa sociedade onde sopram fortes os ventos do hedonismo, daria pano para mangas. Mas adiante.
Fica o discurso, em inglês, proferido pelo mesmo, e que merece ser escutado até ao fim.
‘There are no hard distinctions between what is real and what is
unreal, nor between what is true and what is false. A thing is not
necessarily either true or false; it can be both true and false.’
I believe that these assertions still make sense and do still apply
to the exploration of reality through art. So as a writer I stand by
them but as a citizen I cannot. As a citizen I must ask: What is true?
What is false?
Truth in drama is forever elusive. You never quite find it but the
search for it is compulsive. The search is clearly what drives the
endeavour. The search is your task. More often than not you stumble upon
the truth in the dark, colliding with it or just glimpsing an image or a
shape which seems to correspond to the truth, often without realising
that you have done so. But the real truth is that there never is any
such thing as one truth to be found in dramatic art. There are many.
These truths challenge each other, recoil from each other, reflect each
other, ignore each other, tease each other, are blind to each other.
Sometimes you feel you have the truth of a moment in your hand, then it
slips through your fingers and is lost.
I have often been asked how my plays come about. I cannot say. Nor
can I ever sum up my plays, except to say that this is what happened.
That is what they said. That is what they did.
Most of the plays are engendered by a line, a word or an image. The
given word is often shortly followed by the image. I shall give two
examples of two lines which came right out of the blue into my head,
followed by an image, followed by me.
The plays are The Homecoming and Old Times. The first line of The Homecoming is ‘What have you done with the scissors?’ The first line of Old Times is ‘Dark.’
In each case I had no further information.
In the first case someone was obviously looking for a pair of
scissors and was demanding their whereabouts of someone else he
suspected had probably stolen them. But I somehow knew that the person
addressed didn’t give a damn about the scissors or about the questioner
either, for that matter.
‘Dark’ I took to be a description of someone’s hair, the hair of a
woman, and was the answer to a question. In each case I found myself
compelled to pursue the matter. This happened visually, a very slow
fade, through shadow into light.
I always start a play by calling the characters A, B and C.
In the play that became The Homecoming I saw a man enter a
stark room and ask his question of a younger man sitting on an ugly sofa
reading a racing paper. I somehow suspected that A was a father and
that B was his son, but I had no proof. This was however confirmed a
short time later when B (later to become Lenny) says to A (later to
become Max), ‘Dad, do you mind if I change the subject? I want to ask
you something. The dinner we had before, what was the name of it? What
do you call it? Why don’t you buy a dog? You’re a dog cook. Honest. You
think you’re cooking for a lot of dogs.’ So since B calls A ‘Dad’ it
seemed to me reasonable to assume that they were father and son. A was
also clearly the cook and his cooking did not seem to be held in high
regard. Did this mean that there was no mother? I didn’t know. But, as I
told myself at the time, our beginnings never know our ends.
‘Dark.’ A large window. Evening sky. A man, A (later to become
Deeley), and a woman, B (later to become Kate), sitting with drinks.
‘Fat or thin?’ the man asks. Who are they talking about? But I then see,
standing at the window, a woman, C (later to become Anna), in another
condition of light, her back to them, her hair dark.
It’s a strange moment, the moment of creating characters who up to
that moment have had no existence. What follows is fitful, uncertain,
even hallucinatory, although sometimes it can be an unstoppable
avalanche. The author’s position is an odd one. In a sense he is not
welcomed by the characters. The characters resist him, they are not easy
to live with, they are impossible to define. You certainly can’t
dictate to them. To a certain extent you play a never-ending game with
them, cat and mouse, blind man’s buff, hide and seek. But finally you
find that you have people of flesh and blood on your hands, people with
will and an individual sensibility of their own, made out of component
parts you are unable to change, manipulate or distort.
So language in art remains a highly ambiguous transaction, a
quicksand, a trampoline, a frozen pool which might give way under you,
the author, at any time.
But as I have said, the search for the truth can never stop. It
cannot be adjourned, it cannot be postponed. It has to be faced, right
there, on the spot.
Political theatre presents an entirely different set of problems.
Sermonising has to be avoided at all cost. Objectivity is essential. The
characters must be allowed to breathe their own air. The author cannot
confine and constrict them to satisfy his own taste or disposition or
prejudice. He must be prepared to approach them from a variety of
angles, from a full and uninhibited range of perspectives, take them by
surprise, perhaps, occasionally, but nevertheless give them the freedom
to go which way they will. This does not always work. And political
satire, of course, adheres to none of these precepts, in fact does
precisely the opposite, which is its proper function.
In my play The Birthday Party I think I allow a whole range of
options to operate in a dense forest of possibility before finally
focussing on an act of subjugation.
Mountain Language pretends to no such range of operation. It
remains brutal, short and ugly. But the soldiers in the play do get some
fun out of it. One sometimes forgets that torturers become easily
bored. They need a bit of a laugh to keep their spirits up. This has
been confirmed of course by the events at Abu Ghraib in Baghdad. Mountain Language
lasts only 20 minutes, but it could go on for hour after hour, on and
on and on, the same pattern repeated over and over again, on and on,
hour after hour.
Ashes to Ashes, on the other hand, seems to me to be taking
place under water. A drowning woman, her hand reaching up through the
waves, dropping down out of sight, reaching for others, but finding
nobody there, either above or under the water, finding only shadows,
reflections, floating; the woman a lost figure in a drowning landscape, a
woman unable to escape the doom that seemed to belong only to others.
But as they died, she must die too.
Political language, as used by politicians, does not venture into any
of this territory since the majority of politicians, on the evidence
available to us, are interested not in truth but in power and in the
maintenance of that power. To maintain that power it is essential that
people remain in ignorance, that they live in ignorance of the truth,
even the truth of their own lives. What surrounds us therefore is a vast
tapestry of lies, upon which we feed.
As every single person here knows, the justification for the invasion
of Iraq was that Saddam Hussein possessed a highly dangerous body of
weapons of mass destruction, some of which could be fired in 45 minutes,
bringing about appalling devastation. We were assured that was true. It
was not true. We were told that Iraq had a relationship with Al Quaeda
and shared responsibility for the atrocity in New York of September 11th
2001. We were assured that this was true. It was not true. We were told
that Iraq threatened the security of the world. We were assured it was
true. It was not true.
The truth is something entirely different. The truth is to do with
how the United States understands its role in the world and how it
chooses to embody it.
But before I come back to the present I would like to look at the
recent past, by which I mean United States foreign policy since the end
of the Second World War. I believe it is obligatory upon us to subject
this period to at least some kind of even limited scrutiny, which is all
that time will allow here.
Everyone knows what happened in the Soviet Union and throughout
Eastern Europe during the post-war period: the systematic brutality, the
widespread atrocities, the ruthless suppression of independent thought.
All this has been fully documented and verified.
But my contention here is that the US crimes in the same period have
only been superficially recorded, let alone documented, let alone
acknowledged, let alone recognised as crimes at all. I believe this must
be addressed and that the truth has considerable bearing on where the
world stands now. Although constrained, to a certain extent, by the
existence of the Soviet Union, the United States’ actions throughout the
world made it clear that it had concluded it had carte blanche to do
what it liked.
Direct invasion of a sovereign state has never in fact been America’s
favoured method. In the main, it has preferred what it has described as
‘low intensity conflict’. Low intensity conflict means that thousands
of people die but slower than if you dropped a bomb on them in one fell
swoop. It means that you infect the heart of the country, that you
establish a malignant growth and watch the gangrene bloom. When the
populace has been subdued – or beaten to death – the same thing – and
your own friends, the military and the great corporations, sit
comfortably in power, you go before the camera and say that democracy
has prevailed. This was a commonplace in US foreign policy in the years
to which I refer.
The tragedy of Nicaragua was a highly significant case. I choose to
offer it here as a potent example of America’s view of its role in the
world, both then and now.
I was present at a meeting at the US embassy in London in the late 1980s.
The United States Congress was about to decide whether to give more
money to the Contras in their campaign against the state of Nicaragua. I
was a member of a delegation speaking on behalf of Nicaragua but the
most important member of this delegation was a Father John Metcalf. The
leader of the US body was Raymond Seitz (then number two to the
ambassador, later ambassador himself). Father Metcalf said: ‘Sir, I am
in charge of a parish in the north of Nicaragua. My parishioners built a
school, a health centre, a cultural centre. We have lived in peace. A
few months ago a Contra force attacked the parish. They destroyed
everything: the school, the health centre, the cultural centre. They
raped nurses and teachers, slaughtered doctors, in the most brutal
manner. They behaved like savages. Please demand that the US government
withdraw its support from this shocking terrorist activity.’
Raymond Seitz had a very good reputation as a rational, responsible
and highly sophisticated man. He was greatly respected in diplomatic
circles. He listened, paused and then spoke with some gravity. ‘Father,’
he said, ‘let me tell you something. In war, innocent people always
suffer.’ There was a frozen silence. We stared at him. He did not
flinch.
Innocent people, indeed, always suffer.
Finally somebody said: ‘But in this case “innocent people” were the
victims of a gruesome atrocity subsidised by your government, one among
many. If Congress allows the Contras more money further atrocities of
this kind will take place. Is this not the case? Is your government not
therefore guilty of supporting acts of murder and destruction upon the
citizens of a sovereign state?’
Seitz was imperturbable. ‘I don’t agree that the facts as presented support your assertions,’ he said.
As we were leaving the Embassy a US aide told me that he enjoyed my plays. I did not reply.
I should remind you that at the time President Reagan made the
following statement: ‘The Contras are the moral equivalent of our
Founding Fathers.’
The United States supported the brutal Somoza dictatorship in
Nicaragua for over 40 years. The Nicaraguan people, led by the
Sandinistas, overthrew this regime in 1979, a breathtaking popular
revolution.
The Sandinistas weren’t perfect. They possessed their fair share of
arrogance and their political philosophy contained a number of
contradictory elements. But they were intelligent, rational and
civilised. They set out to establish a stable, decent, pluralistic
society. The death penalty was abolished. Hundreds of thousands of
poverty-stricken peasants were brought back from the dead. Over 100,000
families were given title to land. Two thousand schools were built. A
quite remarkable literacy campaign reduced illiteracy in the country to
less than one seventh. Free education was established and a free health
service. Infant mortality was reduced by a third. Polio was eradicated.
The United States denounced these achievements as Marxist/Leninist
subversion. In the view of the US government, a dangerous example was
being set. If Nicaragua was allowed to establish basic norms of social
and economic justice, if it was allowed to raise the standards of health
care and education and achieve social unity and national self respect,
neighbouring countries would ask the same questions and do the same
things. There was of course at the time fierce resistance to the status
quo in El Salvador.
I spoke earlier about ‘a tapestry of lies’ which surrounds us.
President Reagan commonly described Nicaragua as a ‘totalitarian
dungeon’. This was taken generally by the media, and certainly by the
British government, as accurate and fair comment. But there was in fact
no record of death squads under the Sandinista government. There was no
record of torture. There was no record of systematic or official
military brutality. No priests were ever murdered in Nicaragua. There
were in fact three priests in the government, two Jesuits and a
Maryknoll missionary. The totalitarian dungeons were actually next door,
in El Salvador and Guatemala. The United States had brought down the
democratically elected government of Guatemala in 1954 and it is
estimated that over 200,000 people had been victims of successive
military dictatorships.
Six of the most distinguished Jesuits in the world were viciously
murdered at the Central American University in San Salvador in 1989 by a
battalion of the Alcatl regiment trained at Fort Benning, Georgia, USA.
That extremely brave man Archbishop Romero was assassinated while
saying mass. It is estimated that 75,000 people died. Why were they
killed? They were killed because they believed a better life was
possible and should be achieved. That belief immediately qualified them
as communists. They died because they dared to question the status quo,
the endless plateau of poverty, disease, degradation and oppression,
which had been their birthright.
The United States finally brought down the Sandinista government. It
took some years and considerable resistance but relentless economic
persecution and 30,000 dead finally undermined the spirit of the
Nicaraguan people. They were exhausted and poverty stricken once again.
The casinos moved back into the country. Free health and free education
were over. Big business returned with a vengeance. ‘Democracy’ had
prevailed.
But this ‘policy’ was by no means restricted to Central America. It
was conducted throughout the world. It was never-ending. And it is as if
it never happened.
The United States supported and in many cases engendered every right
wing military dictatorship in the world after the end of the Second
World War. I refer to Indonesia, Greece, Uruguay, Brazil, Paraguay,
Haiti, Turkey, the Philippines, Guatemala, El Salvador, and, of course,
Chile. The horror the United States inflicted upon Chile in 1973 can
never be purged and can never be forgiven.
Hundreds of thousands of deaths took place throughout these
countries. Did they take place? And are they in all cases attributable
to US foreign policy? The answer is yes they did take place and they are
attributable to American foreign policy. But you wouldn’t know it.
It never happened. Nothing ever happened. Even while it was happening
it wasn’t happening. It didn’t matter. It was of no interest. The
crimes of the United States have been systematic, constant, vicious,
remorseless, but very few people have actually talked about them. You
have to hand it to America. It has exercised a quite clinical
manipulation of power worldwide while masquerading as a force for
universal good. It’s a brilliant, even witty, highly successful act of
hypnosis.
I put to you that the United States is without doubt the greatest
show on the road. Brutal, indifferent, scornful and ruthless it may be
but it is also very clever. As a salesman it is out on its own and its
most saleable commodity is self love. It’s a winner. Listen to all
American presidents on television say the words, ‘the American people’,
as in the sentence, ‘I say to the American people it is time to pray and
to defend the rights of the American people and I ask the American
people to trust their president in the action he is about to take on
behalf of the American people.’
It’s a scintillating stratagem. Language is actually employed to keep
thought at bay. The words ‘the American people’ provide a truly
voluptuous cushion of reassurance. You don’t need to think. Just lie
back on the cushion. The cushion may be suffocating your intelligence
and your critical faculties but it’s very comfortable. This does not
apply of course to the 40 million people living below the poverty line
and the 2 million men and women imprisoned in the vast gulag of prisons,
which extends across the US.
The United States no longer bothers about low intensity conflict. It
no longer sees any point in being reticent or even devious. It puts its
cards on the table without fear or favour. It quite simply doesn’t give a
damn about the United Nations, international law or critical dissent,
which it regards as impotent and irrelevant. It also has its own
bleating little lamb tagging behind it on a lead, the pathetic and
supine Great Britain.
What has happened to our moral sensibility? Did we ever have any?
What do these words mean? Do they refer to a term very rarely employed
these days – conscience? A conscience to do not only with our own acts
but to do with our shared responsibility in the acts of others? Is all
this dead? Look at Guantanamo Bay. Hundreds of people detained without
charge for over three years, with no legal representation or due
process, technically detained forever. This totally illegitimate
structure is maintained in defiance of the Geneva Convention. It is not
only tolerated but hardly thought about by what’s called the
‘international community’. This criminal outrage is being committed by a
country, which declares itself to be ‘the leader of the free world’. Do
we think about the inhabitants of Guantanamo Bay? What does the media
say about them? They pop up occasionally – a small item on page six.
They have been consigned to a no man’s land from which indeed they may
never return. At present many are on hunger strike, being force-fed,
including British residents. No niceties in these force-feeding
procedures. No sedative or anaesthetic. Just a tube stuck up your nose
and into your throat. You vomit blood. This is torture. What has the
British Foreign Secretary said about this? Nothing. What has the British
Prime Minister said about this? Nothing. Why not? Because the United
States has said: to criticise our conduct in Guantanamo Bay constitutes
an unfriendly act. You’re either with us or against us. So Blair shuts
up.
The invasion of Iraq was a bandit act, an act of blatant state
terrorism, demonstrating absolute contempt for the concept of
international law. The invasion was an arbitrary military action
inspired by a series of lies upon lies and gross manipulation of the
media and therefore of the public; an act intended to consolidate
American military and economic control of the Middle East masquerading –
as a last resort – all other justifications having failed to justify
themselves – as liberation. A formidable assertion of military force
responsible for the death and mutilation of thousands and thousands of
innocent people.
We have brought torture, cluster bombs, depleted uranium, innumerable
acts of random murder, misery, degradation and death to the Iraqi
people and call it ‘bringing freedom and democracy to the Middle East’.
How many people do you have to kill before you qualify to be
described as a mass murderer and a war criminal? One hundred thousand?
More than enough, I would have thought. Therefore it is just that Bush
and Blair be arraigned before the International Criminal Court of
Justice. But Bush has been clever. He has not ratified the International
Criminal Court of Justice. Therefore if any American soldier or for
that matter politician finds himself in the dock Bush has warned that he
will send in the marines. But Tony Blair has ratified the Court and is
therefore available for prosecution. We can let the Court have his
address if they’re interested. It is Number 10, Downing Street, London.
Death in this context is irrelevant. Both Bush and Blair place death
well away on the back burner. At least 100,000 Iraqis were killed by
American bombs and missiles before the Iraq insurgency began. These
people are of no moment. Their deaths don’t exist. They are blank. They
are not even recorded as being dead. ‘We don’t do body counts,’ said the
American general Tommy Franks.
Early in the invasion there was a photograph published on the front
page of British newspapers of Tony Blair kissing the cheek of a little
Iraqi boy. ‘A grateful child,’ said the caption. A few days later there
was a story and photograph, on an inside page, of another four-year-old
boy with no arms. His family had been blown up by a missile. He was the
only survivor. ‘When do I get my arms back?’ he asked. The story was
dropped. Well, Tony Blair wasn’t holding him in his arms, nor the body
of any other mutilated child, nor the body of any bloody corpse. Blood
is dirty. It dirties your shirt and tie when you’re making a sincere
speech on television.
The 2,000 American dead are an embarrassment. They are transported to
their graves in the dark. Funerals are unobtrusive, out of harm’s way.
The mutilated rot in their beds, some for the rest of their lives. So
the dead and the mutilated both rot, in different kinds of graves.
Here is an extract from a poem by Pablo Neruda, ‘I’m Explaining a Few Things’:
And one morning all that was burning,
one morning the bonfires
leapt out of the earth
devouring human beings
and from then on fire,
gunpowder from then on,
and from then on blood.
Bandits with planes and Moors,
bandits with finger-rings and duchesses,
bandits with black friars spattering blessings
came through the sky to kill children
and the blood of children ran through the streets
without fuss, like children’s blood.
Jackals that the jackals would despise
stones that the dry thistle would bite on and spit out,
vipers that the vipers would abominate.
Face to face with you I have seen the blood
of Spain tower like a tide
to drown you in one wave
of pride and knives.
Treacherous
generals:
see my dead house,
look at broken Spain:
from every house burning metal flows
instead of flowers
from every socket of Spain
Spain emerges
and from every dead child a rifle with eyes
and from every crime bullets are born
which will one day find
the bull’s eye of your hearts.
And you will ask: why doesn’t his poetry
speak of dreams and leaves
and the great volcanoes of his native land.
Come and see the blood in the streets.
Come and see
the blood in the streets.
Come and see the blood
in the streets!*
Let me make it quite clear that in quoting from Neruda’s poem I am in
no way comparing Republican Spain to Saddam Hussein’s Iraq. I quote
Neruda because nowhere in contemporary poetry have I read such a
powerful visceral description of the bombing of civilians.
I have said earlier that the United States is now totally frank about
putting its cards on the table. That is the case. Its official declared
policy is now defined as ‘full spectrum dominance’. That is not my
term, it is theirs. ‘Full spectrum dominance’ means control of land,
sea, air and space and all attendant resources.
The United States now occupies 702 military installations throughout
the world in 132 countries, with the honourable exception of Sweden, of
course. We don’t quite know how they got there but they are there all
right.
The United States possesses 8,000 active and operational nuclear
warheads. Two thousand are on hair trigger alert, ready to be launched
with 15 minutes warning. It is developing new systems of nuclear force,
known as bunker busters. The British, ever cooperative, are intending to
replace their own nuclear missile, Trident. Who, I wonder, are they
aiming at? Osama bin Laden? You? Me? Joe Dokes? China? Paris? Who knows?
What we do know is that this infantile insanity – the possession and
threatened use of nuclear weapons – is at the heart of present American
political philosophy. We must remind ourselves that the United States is
on a permanent military footing and shows no sign of relaxing it.
Many thousands, if not millions, of people in the United States
itself are demonstrably sickened, shamed and angered by their
government’s actions, but as things stand they are not a coherent
political force – yet. But the anxiety, uncertainty and fear which we
can see growing daily in the United States is unlikely to diminish.
I know that President Bush has many extremely competent speech
writers but I would like to volunteer for the job myself. I propose the
following short address which he can make on television to the nation. I
see him grave, hair carefully combed, serious, winning, sincere, often
beguiling, sometimes employing a wry smile, curiously attractive, a
man’s man.
‘God is good. God is great. God is good. My God is good. Bin Laden’s
God is bad. His is a bad God. Saddam’s God was bad, except he didn’t
have one. He was a barbarian. We are not barbarians. We don’t chop
people’s heads off. We believe in freedom. So does God. I am not a
barbarian. I am the democratically elected leader of a freedom-loving
democracy. We are a compassionate society. We give compassionate
electrocution and compassionate lethal injection. We are a great nation.
I am not a dictator. He is. I am not a barbarian. He is. And he is.
They all are. I possess moral authority. You see this fist? This is my
moral authority. And don’t you forget it.’
A writer’s life is a highly vulnerable, almost naked activity. We
don’t have to weep about that. The writer makes his choice and is stuck
with it. But it is true to say that you are open to all the winds, some
of them icy indeed. You are out on your own, out on a limb. You find no
shelter, no protection – unless you lie – in which case of course you
have constructed your own protection and, it could be argued, become a
politician.
I have referred to death quite a few times this evening. I shall now quote a poem of my own called ‘Death’.
Where was the dead body found?
Who found the dead body?
Was the dead body dead when found?
How was the dead body found?
Who was the dead body?
Who was the father or daughter or brother
Or uncle or sister or mother or son
Of the dead and abandoned body?
Was the body dead when abandoned?
Was the body abandoned?
By whom had it been abandoned?
Was the dead body naked or dressed for a journey?
What made you declare the dead body dead?
Did you declare the dead body dead?
How well did you know the dead body?
How did you know the dead body was dead?
Did you wash the dead body
Did you close both its eyes
Did you bury the body
Did you leave it abandoned
Did you kiss the dead body
When we look into a mirror we think the image that confronts us is
accurate. But move a millimetre and the image changes. We are actually
looking at a never-ending range of reflections. But sometimes a writer
has to smash the mirror – for it is on the other side of that mirror
that the truth stares at us.
I believe that despite the enormous odds which exist, unflinching,
unswerving, fierce intellectual determination, as citizens, to define
the real truth of our lives and our societies is a crucial obligation which devolves upon us all. It is in fact mandatory.
If such a determination is not embodied in our political vision we
have no hope of restoring what is so nearly lost to us – the dignity of
man.
* Extract from “I’m Explaining a Few Things” translated by Nathaniel Tarn, from Pablo Neruda: Selected Poems, published by Jonathan Cape, London 1970. Used by permission of The Random House Group Limited.
Todos deviam ler, ver e ouvir isto, para não poderem ignorar. Sem excepção: tanto os que acham que não sabem nada de economia ou de política como os que acham que sabem alguma coisa de economia ou de política.
Estudei numa das melhores faculdades de economia do país, pelo que dizem. Durante os cinco anos que lá penei, ouvi um professor a abordar por alto Marx (o professor Carlos Pimenta) e outro a abordar por alto Karl Polanyi (o professor José Madureira Pinto). Todos os outros, incluindo vários que foram passando pelos ministérios de diversos governos, endoutrinaram-nos sem pudor nas teses do neoliberalismo, munidos de Hayek, Friedman e toda essa tropa-fandanga.
De tudo o que soube até hoje, todas as escolas de economia deste país funcionavam do mesmo modo. Suspeito que ainda funcionem. E de todas as vezes que levantei esta questão, que é uma questão gravíssima e que afecta sobremaneira a vida de todos nós, fui recebido com indiferença. A indiferença dos que já estavam endoutrinados, e portanto acreditavam que isto era a ordem natural das coisas, a indiferença dos que tinham algo a ganhar com isso e a indiferença dos que não queriam saber de temas tão aborrecidos.
Enfim, não desistirei nunca de bradar aos céus este crime colectivo, na esperança de que as pessoas acordem para ele.
Tradução livre a partir do primeiro minuto.
Chris Hedges - Quero perguntar, até que ponto o neoliberalismo é a próxima etapa do colonialismo?
George Monbiot - Para nós, o capitalismo é o produto fundacional do colonialismo. E vemos o neoliberalismo como o meio através do qual o capitalismo tenta resolver o seu principal problema, que é a democracia.
O capitalismo emergiu como uma forma de expropriação colonial, na sequência da pilhagem colonial,... e é impressionante, nós temos todas estas discussões acerca do capitalismo e a maioria das pessoas nessas discussões não parecem saber o que é..., nós datamo-lo, seguindo o brilhante trabalho do geógrafo Jason W. Moore, a aproxidamente 1450, na ilha da Madeira, que para nós é o primeiro sítio no qual existiram simultaneamente os três pilares do capitalismo identificados por Karl Polanyi - comodificação* do trabalho, do terra e do dinheiro - o que deu origem a esta nova fronteira colonial extremamente eficaz e virulenta que queimou recursos, queimou trabalho humano, com uma velocidade nunca antes vista, criou uma grande quantidade de lucro e depois o colapso ecológico seguido de abandono. E isso tornou-se o modelo que foi seguido. Os portugueses foram depois para São Tomé e fizeram exactamente o mesmo lá, e na costa do Brasil, desfazendo os ecossistemas costeiros do Brasil um atrás do outro, destruindo uma grande quantidade de vidas, através de escravatura e assassinatos, moveram-se para as Caraíbas e começaram a fazer algo muito parecido aí, onde foram acompanhados por outras nações europeias fazendo a mesma coisa.
O capitalismo é muitas vezes confundido com comércio, que é apenas comprar e vender coisas. Certamente há elementos de comércio no capitalismo, mas são coisas absolutamente diferentes. O comércio iniciou-se há muitos milénios, o capitalismo apenas há centenas de anos, e é um modo de organização económica extramamente coercivo, destrutivo e explorador.
E então, há cerca de 150 anos, o capitalismo encontra um problema, que é o facto de um grande número de adultos passarem a ter a possibilidade de votar. E quando os adultos podem votar, eles têm a temeridade de dizer "na verdade nós não queremos continuar a ser apenas trabalho comodificado, nós queremos passar a ter direitos de trabalho, queremos poder organizar o nosso próprio trabalho, queremos receber uma porção maior do valor que criamos, queremos coisas chocantes como fins-de-semana, e por falar nisso também queremos casas apropriadas, e não queremos que o nosso ar fique poluído e os nossos rios envenenados, queremos comer melhor comida". Todas estas reivindicações são inerentes ao capitalismo. Portanto desde que os adultos passaram a poder votar, o capital procurou resolver esse problema.
Uma maneira de resolver esse problema é o fascismo, que pode ser muito eficaz a resolver o problema da democracia. Mas quando o fascismo foi derrubado na Europa em 1945, tiveram de encontrar outra solução, e essa solução foi o neoliberalismo. O neoliberalismo acaba por ser uma maneira extremamente eficaz de resolver o problema da democracia.
CH - Deixe-me perguntar pelos sindicatos, porque certamente nos EUA, e no Reino Unido e em França, foram movimentos muito importantes no combate às características mais exploradoras que acabou de referir acerca do capitalismo.
GM - Uma ideia absolutamente fundamental no neoliberalismo é a de que os sindicatos estão contra a "ordem natural" - você falou muito bem na sua introdução da forma como o capitalismo se tenta descrever a si próprio como uma "lei natural", como a gravidade ou a evolução natural, algo que existe mesmo assim e por sua conta, não algo que foi inventado pelas pessoas, "não é um sistema feito pelos humanos é simplesmente a maneira como naturalmente interagimos uns com os outros". Mas, claro, não é nada disso. O neoliberalismo trata da remoção de todos os impedimentos ao capital, isto é, dos meios pelos quais os ricos se podem tornar ainda mais ricos, da forma como o queiram fazer, e a qualquer custo para os outros seres humanos e para os outros seres vivos. E é claro que um dos principais obstáculos ao capital é a existência de sindicatos, porque o que os sindicatos querem é que os trabalhadores tenham uma maior porção do valor que eles produzem, em vez de serem totalmente explorados e a sua produção tomada por outra pessoa qualquer.
Portanto, desde o início, o trabalho de Friedrich Hayek e Ludwig von Mises, em 1944, com os seus respectivos livros "o caminho para a servidão" e "burocracia", vimos o início de um ataque concertado aos sindicatos. E dentro de apenas 3 anos, em 1947, com a formação da Sociedade de Mont Pèlerin, assistimos ao desenvolvimento do que tem sido chamado da "internacional neoliberal", uma rede internacional de organizações apoiada por algumas das pessoas mais ricas do mundo, patrões extremamente poderosos e respectivas empresas a despejarem dinheiro nesta rede, com o principal objectivo de destruir a negociação colectiva e organização de sindicatos.
Com o passar dos anos, especialmente quando os seus políticos favoritos acederam ao poder, justa ou injustamente, Augusto Pinochet, Margaret Thatcher, Ronald Reagan, os sindicatos foram esmagados.
CH - Vamos de volta a Hayek e a essas figuras. David Harvey, no seu livro "uma breve história do neoliberalismo" argumenta que as elites governantes percebiam... figuras como Hayek eram consideradas por muitos economistas, certamente por muitos keynesianos, como sendo maus economistas, que não eram levados a sério... Harvey argumenta que as elites governantes sabiam dos problemas inerentes a essas políticas económicas, mas apoiaram-nas porque justificavam ou davam uma cobertura ideológica a este projecto neoliberal. Concorda?
GM - Sim, e é muito interessante ver o modo como por sua vez Hayek apoiou os seus novos patrocinadores, porque... esse livro "o caminho para a servidão", pode-se ver as suas falhas óbvias: é um enorme escorrega falacioso! Efectivamente diz "se houver alguma tentativa de proteger populações como um todo, ou de redistribuição de riqueza, ou de criação de serviços públicos robustos e de uma rede de segurança económica, isso inevitavelmente conduzirá a totalitarismo e tudo acabará com Estaline ou com Hitler". Enfim, são falácias lógicas ao longo de todo o caminho. É um disparate filosófico. Mas eles estavam todos felizes a apoiar isto porque lhes servia. Mas depois, o que é muito interessante, foi o modo como isso também se verificou ao contrário, com Hayek a abraçar as necessidades destes patrocinadores super ricos. Quando ele escreveu "a constituição da liberdade", publicado em 1960, a sua doutrina tinha ido de um discurso com falhas, mas honesto, sobre economia e política, para uma autêntica fraude. "A constituição da liberdade" é uma loucura total, é um livro totalmente maluco! Não é possível lê-lo sem nos preocuparmos com a saúde mental do autor. Mas o que aconteceu na realidade não é que Hayek a tinha perdido, é simplesmente que ele estava a dizer a estas pessoas muito ricas exactamente o que eles queriam ouvir. E o que ele estava a dizer é "não importa como fizeste a tua riqueza, pelo facto de seres rico tu és um tipo fantástico, és uma pessoa brilhante. e as pessoas que se tornam ricas, ou porque herdaram a riqueza, ou porque a roubaram, ou por outro meio qualquer, essas pessoas são os guias que a sociedade deve seguir. onde quer que essas pessoas vão, esse será um caminho fantástico para seguir, nós temos de seguir esse mesmo caminho, qualquer que ele seja." E no processo ele desistiu das suas oposições a coisas como monopólios... Ele disse abertamente "nós só temos que explorar e destruir o mundo natural, extrair o máximo dinheiro que pudermos disso, e depois reinvestir noutro sítio qualquer, e não importam os danos que causarmos entretanto". Ou seja, proposições doidas umas atrás das outras... mas isto era o que ele estava a receber através dos seus patrocinadores, portanto o desenvolvimento da sua doutrina foi uma resposta directa às vontades dessa classe oligárquica.
CH - E que foi apoiada por figuras como Margaret Thatcher.
GM - Sim. Um dos muitos anonimatos do neoliberalismo... porque "neoliberalismo" foi o termo que os próprios neoliberais utilizaram, logo no início quando começaram a discuti-lo, em 1938, no Colóquio Walter Lippman em Paris, eles usaram esse termo até aos anos 50 e depois, sem alarido, começaram a deixar de o usar, sem criar outro termo para o substituir... eles disseram simplesmente "isto é como as coisas são, é a lei natural, não tem de ter um nome"... e portanto começámos a dar-lhe nomes como Thatcherismo ou Reaganismo ou monetarismo ou economia da oferta... não tínhamos um nome para isso, porque não éramos capazes de identificar a sua fonte, éramos incapazes de o combater. E a história é que a Thatcher foi a impulsionadora dessas ideias. Não! De maneira nenhuma! Há uma história fanstástica contada por membros do seu gabinete-sombra da altura, não sei se é completamente verdadeira ou não, mas sabemos que no mínimo é verdadeira no espírito, a história é que pouco tempo depois de ela se tornar líder do partido conservador, em 1975, que estava na oposição no Reino Unido (o partido trabalhista é que estava no poder), o gabinete-sombra, isto é, o grupo de pessoas que querem tornar-se ministros se o seu partido aceder ao poder, durante uma reunião acerca da "verdadeira natureza do conservadorismo no nosso tempo"... e eram todos um bocado patéticos estes tipos nesta altura, ela tinha um carácter dominante... e ela chegou atrasada, percebeu o que estavam a discutir, e disse "isto é aquilo em que acreditamos!" e da sua mala retirou um livro muito usado, quase irreconhecível, e atirou-o para cima da mesa. E esse livro era "a constituição da liberdade" de Hayek.
* comodificação - é a transformação que torna algo transaccionável num mercado. Por exemplo, poderemos especular se e quando o ar que respiramos irá ser comodificado.
(com contribuições de Eduardo Galeano, de Carl Sagan, de quadras populares e da bíblia)
Desde siempre, las mariposas y las
golondrinas y los flamencos vuelan huyendo del frío, año tras año, y nadan las
ballenas en busca de otra mar y los salmones y las truchas en busca de sus
ríos. Ellos viajan miles de leguas, por los libres caminos del aire y del agua.
No son libres, en cambio, los caminos del éxodo humano.
Migrar
distingue-se de passear por não incluir o regresso a casa.
Migrar é
levar connosco a casa, da casa que deixámos para outra casa.
Geralmente
não abandona a sua casa quem nela se sente bem.
Migrar é
muitas vezes um processo doloroso.
Ó meu bem se
tu te fores
como dizem
que te vais
deixa-me o
teu nome escrito
numa pedrinha
do cais.
Enxotam-nos o desemprego, a carestia,
a guerra, a ausência de condições de vida adequadas.
Los náufragos de la
globalización peregrinan inventando caminos, queriendo casa, golpeando puertas:
las puertas que se abren, mágicamente, al paso del dinero, se cierran en sus
narices.
Atraem-nos a
paz, a riqueza, os serviços sociais, a abundância,
ou
simplesmente as fotografias que vimos e o que dizem que aquilo é.
Então ele se levantou,
tomou o menino e sua mãe durante a noite, e partiu para o Egito
Entre a certeza
e a ilusão fica sempre alguma espécie de fronteira
que nos
torna forasteiros.
Ele se levantou, tomou
o menino e sua mãe, e foi para a terra de Israel
Atravessados
entre cá e lá, com saudades de tudo.
Já corri os
mares em volta
com uma vela
branca acesa.
Em todo o mar
achei água,
só em ti
perco a firmeza.
Atravessados
entre cá e lá, pertencentes a nada.
Alguma
espécie de fronteira, espelho de poderes arbitrários:
porque foi ali que o
Senhor confundiu a língua dos homens e espalhou-os por toda a Terra
sabe falar a
língua? tem os papéis em dia? tem trabalho? tem família? tem onde dormir? tem
dinheiro? tem saúde?... tem tudo aquilo que faz não querer nem precisar de sair
de casa? sim senhor, pode mudar-se para cá.
Mas há
outros motivos para migrar.
A exploração está na nossa natureza. Começámos como vagabundos e ainda
somos vagabundos. Já permanecemos tempo suficiente na costa do oceano cósmico.
Estamos finalmente prontos para embarcar rumo às estrelas.
Regressamos,
voltamos a partir, com as estações, atrás do clima, das manadas, dos frutos
maduros, atrás dos amores, ou simplesmente à procura... para ver o outro lado
da montanha.
Na medida em
que os grandes e pequenos poderes arbitrários possam ser contidos, assim a
migração poderá ser uma festa, para quem parte, para quem chega e para quem
regressa.
Partos, medos e elamitas; habitantes da
Mesopotâmia, Judeia e Capadócia, do Ponto e da província da Ásia, Frígia e
Panfília, Egito e das partes da Líbia próximas a Cirene; visitantes vindos de
Roma, tanto judeus como convertidos ao judaísmo; cretenses e árabes. Nós os
ouvimos declarar as maravilhas de Deus em nossa própria língua!
Atônitos e perplexos, todos perguntavam uns aos outros: "Que significa
isto?"
Alguns outros, todavia, zombavam e diziam: "Eles beberam vinho
demais".