“Quanto pior a realidade se torna, menos uma população sitiada quer ouvir falar dela e mais se distrai com pseudoeventos sórdidos de colapsos de celebridades, mexericos e trivialidades. Estas são as folias depravadas de uma civilização moribunda."
Este texto de Chris Hedges, que traduzi com a ajuda de ferramentas online, foi publicado no seu portal, em inglês, no dia 23 do passado Dezembro. Ele ilustra bem, e só mais uma vez, que como dizia o Almada Negreiros, todas as frases que podem salvar o mundo já estavam escritas quando eu nasci... agora só falta mesmo é salvar o mundo.
Quanto mais o mundo se afunda, perdão, quanto mais afundamos o mundo connosco lá dentro, mais queremos a evasão mental de um qualquer divertimento. Vamo-nos divertindo até à morte, conforme documentou muito bem Neil Postman, num livro com esse mesmo título, que nunca é demais recomendar.
O que é preciso fazer então para acabar com esta folia e começar a construir um mundo melhor? É simples. Basta, sem o recurso a poderosíssimas tecnologias de difusão de informação, e contra elas, alertar a maioria da população para algo que ela deseja ignorar. Tem tudo para resultar!
Pessoalmente creio que, aqui chegados, é uma questão de consciência que fica ao critério de cada um: ir na onda e contribuir alegremente para a decadência total, ou aderir a uma luta inglória onde os sacrifícios parecem dar em nada. Pessoalmente também, eu sei o que quero: conforme dizia o próprio Chris Hedges, eu combato os fascistas não porque vou ganhar, mas porque eles são fascistas.
Deixo-vos o texto. Ele foi escrito no contexto dos EUA, mas com as devidas adaptações, e infelizmente, pode servir a muitos outros países. Leitura de 10 minutos.
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Durante mais de duas décadas, eu e um punhado de outros — Sheldon Wolin, Noam Chomsky, Chalmers Johnson, Barbara Ehrenreich e Ralph Nader — alertámos para o facto de a crescente desigualdade social e a constante erosão das nossas instituições democráticas, incluindo os meios de comunicação social, o Congresso, os sindicatos, a academia e os tribunais, conduziriam inevitavelmente a um Estado autoritário ou fascista cristão. Os meus livros – “Fascistas americanos: a direita cristã e a guerra contra a América” (2007), “Império da ilusão: o fim da literacia e o triunfo do espectáculo” (2009), “A morte da classe liberal” (2010) , “Days of Destruction, Days of Revolt” (2012), escrito com Joe Sacco, “Wages of Rebellion” (2015) e “America: The Farewell Tour” (2018) foram uma sucessão de apelos apaixonados para levar a sério a decadência. Não tenho prazer em ter razão.
“A raiva dos abandonados pela economia, os medos e preocupações de uma classe média sitiada e insegura, e o isolamento entorpecedor que é originado pela perda da comunidade, seriam o combustível para um perigoso movimento de massas”, escrevi em “Fascistas americanos” em 2007. “Se estes desapossados não fossem reincorporados na sociedade dominante, se eventualmente perdessem toda a esperança de encontrar bons e estáveis empregos e oportunidades para si e para os seus filhos — em suma, a promessa de um futuro mais risonho — o espectro do fascismo assolaria a nação. Este desespero, esta perda de esperança, esta negação de um futuro, levou os desesperados para os braços daqueles que prometiam milagres e sonhos de glória apocalíptica.”
O presidente eleito Donald Trump não anuncia o advento do fascismo. Anuncia o colapso do verniz que mascarava a corrupção no seio da classe dominante e a sua ilusão de democracia. Ele é o sintoma, não a doença. A perda das normas democráticas básicas começou muito antes de Trump, abrindo o caminho ao totalitarismo americano. Desindustrialização, desregulação, austeridade, empresas predatórias não reguladas, incluindo a indústria da saúde, vigilância generalizada de todos os americanos, desigualdade social, um sistema eleitoral minado por subornos legalizados, guerras intermináveis e fúteis, a maior população prisional do mundo, mas acima de tudo os sentimentos de traição, estagnação e desespero são uma mistura tóxica que culmina num ódio incipiente à classe dominante e às instituições que ela deformou para servir exclusivamente os ricos e poderosos. Os democratas são tão culpados como os republicanos [1].
“Trump e o seu séquito de bilionários, generais, idiotas, fascistas cristãos, criminosos, racistas e indivíduos com comportamentos moralmente desviantes desempenham o papel do clã Snopes em alguns dos romances de William Faulkner”, escrevi em “America: The Farewell Tour”. “Os Snopes preencheram o vazio de poder do decadente Sul e tomaram implacavelmente o controlo das elites aristocráticas degeneradas, anteriormente esclavagistas. Flem Snopes e a sua família alargada – que inclui um assassino, um pedófilo, um bígamo, um incendiário, um homem com deficiência mental que copula com uma vaca e um parente que vende bilhetes para testemunhar a bestialidade – são representações fictícias da escumalha agora elevada ao mais alto nível do governo federal. Personificam a podridão moral desencadeada pelo capitalismo desenfreado.”
“A referência habitual à ‘amoralidade’, embora precisa, não é suficientemente distintiva e por si só não nos permite colocá-los, como deveriam ser colocados, num momento histórico”, escreveu o crítico Irving Howe sobre os Snopes. “Talvez o mais importante a dizer é que eles são o que vem depois: as criaturas que emergem da devastação, com o lodo ainda nos lábios.”
“Que um mundo entre em colapso, no Sul ou na Rússia, e apareçam figuras de ambição grosseira a abrir caminho desde o fundo da sociedade, homens para quem as reivindicações morais não são tanto absurdas como incompreensíveis, filhos de mercenários ou mujiques [2] vadiando desde lado nenhum e assumindo o poder simplesmente através da sua despudorada força monolítica”, escreveu Howe. “Tornam-se presidentes de bancos locais e de secções regionais de partidos e, mais tarde, um pouco mais elegantes, abrem caminho pela força no Congresso ou no Politburo. Necrófagos desinibidos, não precisam de acreditar no decadente código da sua sociedade; só precisam de aprender a imitar os seus sons.”
O filósofo político Sheldon Wolin chamou ao nosso sistema de governação “totalitarismo invertido”, um sistema que manteve a antiga iconografia, símbolos e linguagem, mas entregou o poder às corporações [3] e aos oligarcas. Agora, mudaremos para a forma mais reconhecível do totalitarismo, dominada por um demagogo e por uma ideologia baseada na diabolização do outro, na hipermasculinidade e no pensamento mágico.
O fascismo é sempre o filho bastardo de um liberalismo falhado.
“Vivemos num sistema jurídico de dois níveis, onde os pobres são perseguidos, presos e encarcerados por infracções absurdas, como vender cigarros avulsos – o que levou Eric Garner a ser estrangulado até à morte pela polícia da cidade de Nova Iorque em 2014 – enquanto crimes de magnitude assustadora cometidos por oligarcas e corporações, desde derrames de petróleo a fraudes bancárias de centenas de milhares de milhões de dólares, que destruíram 40 por cento da riqueza mundial, são tratados através de suaves controlos administrativos, multas simbólicas e controlo civil que na prática dão a estes ricos perpetradores imunidade contra processos criminais”, escrevi em “America: The Farewell Tour”.
A ideologia utópica do neoliberalismo e do capitalismo global é uma grande farsa. A riqueza global, em vez de ser distribuída de forma equitativa, como prometiam os defensores do neoliberalismo, foi canalizada para as mãos de uma elite oligárquica e voraz, alimentando a pior desigualdade económica desde a era dos barões-ladrões [4]. Os trabalhadores pobres, que foram espoliados dos seus sindicatos e dos seus direitos e cujos salários estagnaram ou diminuíram nos últimos 40 anos, foram lançados na pobreza crónica e no subemprego. As suas vidas, como Barbara Ehrenreich relatou em “Nickel and Dimed”, são uma longa emergência conduzida pelo stress. A classe média está a evaporar-se. Cidades que antes fabricavam produtos e ofereciam emprego em fábricas são agora terrenos abandonados e vedados. As prisões estão sobrelotadas. As corporações orquestraram a destruição de barreiras comerciais, permitindo-lhes arrecadar 1,42 biliões de dólares [5] em lucros em bancos estrangeiros para evitar o pagamento de impostos.
O neoliberalismo, apesar da sua promessa de construir e disseminar a democracia, rapidamente destruiu regulamentos e esvaziou os sistemas democráticos, transformando-os em leviatãs [6] corporativos. Os rótulos “liberal” e “conservador” não têm qualquer significado na ordem neoliberal, conforme é evidenciado por um candidato presidencial democrata que se gabou do apoio de Dick Cheney, um criminoso de guerra que deixou o cargo com uma taxa de aprovação de 13% [7]. O atractivo de Trump é que, embora vil e fanfarrão, troça da falência da farsa política.
“A mentira permanente é a apoteose do totalitarismo”, escrevi em “America: The Farewell Tour”:
Já não importa o que é verdade. Importa apenas o que é "correcto". Os tribunais federais estão a ficar apinhados de juízes imbecis e incompetentes que servem a ideologia "correcta" do corporativismo e os rígidos costumes sociais da direita cristã. Desprezam a realidade, incluindo a ciência e o Estado de direito. Procuram banir aqueles que vivem num mundo baseado na realidade, definido pela autonomia intelectual e moral. O regime totalitário exalta sempre os brutos e os estúpidos. Estes idiotas reinantes não têm qualquer filosofia ou objectivos políticos genuínos. Utilizam clichés e slogans, muitos dos quais são absurdos e contraditórios, para justificar a sua ganância e sede de poder. Isto é tão verdade para a direita cristã como para os corporativistas que pregam o mercado livre e a globalização. A fusão dos corporativistas com a direita cristã é o casamento de Godzilla com Frankenstein.
As ilusões impingidas nos nossos ecrãs – incluindo a persona fictícia criada para Trump no filme "O Aprendiz" – substituíram a realidade. A política é burlesca, como ilustrou a campanha insípida e repleta de celebridades de Kamala Harris. É uma ilusão criada pelo exército de agentes, publicitários, departamentos de marketing, procuradores, argumentistas, produtores de televisão e cinema, técnicos de vídeo, fotógrafos, guarda-costas, consultores de imagem, personal trainers, técnicos de sondagens, locutores e personalidades do noticiário televisivo. Somos uma cultura inundada em mentiras.
“O culto do eu domina a nossa paisagem cultural”, escrevi em “Empire of Illusion”:
Este culto tem em si os traços clássicos dos psicopatas: charme superficial, grandiosidade e auto-importância; uma necessidade de estimulação constante, uma propensão para a mentira, a ilusão e a manipulação, e a incapacidade de sentir remorso ou culpa. Esta é, naturalmente, a ética promovida pelas corporações. É a ética do capitalismo desenfreado. É a crença errada de que o estilo pessoal e o desenvolvimento pessoal, confundidos com o individualismo, são a mesma coisa que a igualdade democrática. De facto, o estilo pessoal, definido pelos bens que compramos ou consumimos, tornou-se uma compensação pela nossa perda de igualdade democrática. Temos o direito, no culto do eu, de obter tudo o que desejamos. Podemos fazer qualquer coisa, até menosprezar e destruir aqueles que nos rodeiam, incluindo os nossos amigos, para ganhar dinheiro, sermos felizes e nos tornarmos famosos. Uma vez alcançada a fama e a riqueza, elas tornam-se a sua própria justificação, a sua própria moralidade. Como se chega lá é irrelevante. Quando se chega lá, essas perguntas já não são feitas.
O meu livro “Empire of Illusion” começa no Madison Square Garden numa digressão da World Wrestling Entertainment [WWE]. Eu compreendia que o wrestling profissional era o modelo para a nossa vida social e política, mas não sabia que iria produzir um presidente.
“As lutas são rituais estilizados”, escrevi, no que poderia ter sido uma descrição de um comício de Trump:
São expressões públicas de dor e de um desejo ardente de vingança. As sagas espalhafatosas e detalhadas associadas a cada combate, e não os combates em si, são o que leva o público ao delírio. Estas batalhas ritualizadas proporcionam aos que estão nas arenas um alívio temporário e inebriante da vida mundana. O fardo dos problemas reais é transformado em material para uma energética pantomima.
Não vai melhorar. As ferramentas para acabar com a dissidência foram consolidadas. A nossa democracia entrou em colapso há anos. Estamos sob o domínio daquilo a que Søren Kierkegaard chamou a “doença mortal” – o entorpecimento da alma pelo desespero que conduz à degradação moral e física. Tudo o que Trump precisa de fazer para estabelecer um estado policial escancarado é carregar num botão. E ele vai fazê-lo.
“Quanto pior a realidade se torna, menos uma população sitiada quer ouvir falar dela”, escrevi na conclusão de “Empire of Illusion”, “e mais se distrai com pseudoeventos sórdidos de colapsos de celebridades, mexericos e trivialidades. Estas são as folias depravadas de uma civilização moribunda.”
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Notas do Tradutor:
1 - O mesmo pode ser dito de muitos outros partidos em muitos outros países com sistemas essencialmente bipartidários, como é o caso de Portugal.
2 - Camponeses pobres, da língua russa.
3 - Corporações devem ser entendidas, neste contexto, como grandes empresas ou grupos empresariais privados. As palavras da mesma família devem ter a mesma interpretação, mutatis mutandis.
4 - Barão-ladrão é um termo que foi utilizado sobretudo no final do século XIX, nos EUA, para designar os ricos sem escrúpulos.
5 - 1,42 x 10^12 , um trilião, segundo a nomenclatura norte-americana, um bilião, segundo a nomenclatura portuguesa.
6 - Leviatã é um monstro referido na bíblia que vive nos oceanos.
7 - Taxa de aprovação calculada com base em sondagens à população.
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