sábado, 16 de março de 2024

O bicho-papão da esquerda...

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Conforme uma comparação objectiva entre PS e PSD naquilo que é a forma de interpretar a realidade económica e naquilo que são as linhas condutoras da política permite compreender, não existem diferenças significativas entre eles: ambos defendem versões do capitalismo integradas em mercados globais e sujeitas à sua concorrência e aos seus fluxos de capitais, ambos aceitam a hegemonia dos EUA em relação à economia e a utilização do seu poder militar para a preservação desses interesses económicos, ambos defendem versões do um Estado que mantém a ordem para a condução dos negócios e garante um apoio mínimo aos mais desfavorecidos.
 
A vida em sociedade sempre foi afectada em maior ou menor grau por relações de poder entre as pessoas e entre as instituições. Toda a história da humanidade, longínqua e actual, é prova disso.
 
Numa relação de poder existem pessoas ou entidades que se encontram e que têm iguais, ou mais comummente, desiguais poderes. O poder que se esgrime numa relação de poder depende da comparação das capacidades ou possibilidades de cada uma das partes. Assim, o poder que uma das partes tem é o poder que a outra parte não tem. Consideremos, por exemplo, uma relação de poder militar entre dois Estados. Se um deles possui mais e melhor armamento, ele terá mais poder que o outro. No entanto, se o outro aumentar a quantidade e a qualidade do seu armamento, o primeiro perde poder, mesmo que o seu arsenal tenha permanecido inalterado.
 
Nas relações de poder entre pessoas ou instituições que pretendem ter mais poder para si mesmas, não é possível satisfazer os interesses de todos em simultâneo.
 
Voltando ao exemplo militar, não é possível aumentar o poder militar, nesta perspectiva relacional, de todos os Estados em simultâneo, porque se todos eles aumentam a qualidade e quantidade das suas armas, todos adquirem maior capacidade destrutiva, mas ao mesmo tempo todos se tornam mais vulneráveis perante a capacidade destrutiva dos outros. Este aspecto é muito importante no momento presente em que os Estados europeus parecem estar de acordo em relação a mais uma corrida ao armamento.
 
Também não é possível aumentar o poder financeiro de todos os agentes económicos em simultâneo. De facto, se todos os agentes possuírem mais dinheiro, as relações de poder em todos os mercados irão manter-se. E se a quantidade de bens e serviços, incluindo títulos financeiros, se mantiver, o mais provável é que os preços de todas as coisas subam até compensar o aumento do dinheiro de todos os agentes, voltando tudo à estaca zero.
A conclusão necessária é que nas relações de poder que sempre existiram e existem nas sociedades e nas economias, não é possível aumentar em simultâneo o poder de todos. Não apenas isso, mas o poder que uns têm é o poder que os outros não têm.
 
É assim que a pretensa máxima de "estamos todos no mesmo barco" se revela uma mentira: podemos estar todos sujeitos a um mesmo contexto, mas uns têm mais poder do que outros. Por exemplo, ficámos nos últimos anos sujeitos a aumentos de preços que afectaram todas as pessoas e empresas, mas claramente algumas tinham maior capacidade de responder a essa situação do que outras. Por exemplo: os bancos beneficiaram com o aumento das taxas de juro, mas quem tem crédito à habitação foi prejudicado. O benefício de uns é o prejuízo de outros. E o mesmo em todas as relações de compra e venda em que os preços variam.
Esta longa introdução é necessária, porque todos estamos sujeitos há demasiado tempo a uma intensa propaganda que nos tenta fazer acreditar que estamos todos no mesmo barco, ou que o crescimento económico é indispensável para combater a pobreza. E isso é falso.
 
Considerando como sendo de "esquerda" os partidos que nas relações de poder económico privilegiam os mais desfavorecidos, é forçoso concluir que nem PSD nem PS são de esquerda. Os militantes do PS poderão ficar chocados com esta afirmação. Afinal esse partido diz-se "socialista"! Porém, os factos puros e duros revelam que nas negociações entre empregadores e empregados, mediadas e contextualizadas por esse partido, os aumentos salariais são sempre definidos na medida em que não afectem as relações de poder pré-existentes.
 
É assim que em Portugal, entre 1995 e 2022 as remunerações dos trabalhadores estiveram sempre compreendidas entre 44% e 48% do PIB, independentemente dos governos serem PS ou PSD. Os que defendem, relativamente a isto e outros assuntos, que "não há alternativa" enganam-se e tentam enganar-nos. Quando um investidor investe numa empresa e obtém dela dividendos, que claramente não remuneram qualquer trabalho, ele só o faz porque existe uma relação de poder apriorística: ele tem o dinheiro e os outros não têm, e as leis permitem que quem tem o poder defina os níveis salariais para que no final sobre uma porção (o dividendo) para si. Tivessem todos igual poder e provavelmente o valor acrescentado da actividade económica seria integralmente repartido por quem o produziu, sob a forma de salários.
 
Portanto, o que é que nos sobra como partidos de esquerda, isto é, partidos que nas relações de poder económico a que todos estamos sujeitos no dia-a-dia, privilegiam os que têm menos poder? Sobram-nos os socialistas radicais, os comunistas, os anarco-sindicalistas, enfim, os extremistas e fundamentalistas. Em termos de partidos que se apresentam às próximas eleições, estes são: PTP - Partido Trabalhista Português, PCTP/MRPP - Partido Comunista dos Trabalhadores Portugueses, PCP - Partido Comunista Português, PEV - Partido Ecologista Os Verdes, MAS - Movimento Alternativa Socialista, L - Livre, BE - Bloco de Esquerda. Nota: se incluí um partido que não devia ou se deixei de fora um que devia incluir, isso não afecta a realidade e a mensagem do que quero transmitir.
 
Os partidos de esquerda que acabei de referir conseguiram em conjunto e nas últimas eleições legislativas de 2022 um total de 10,6% dos votos validamente expressos. Considerando que cerca de metade dos eleitores se abstiveram, isso significa que todos os partidos de esquerda conseguiram atrair 5,3% dos eleitores inscritos: grosso modo, um em cada vinte.
 
Aqui temos o paradoxo: nas relações de poder económico a maioria das pessoas está do lado que tem menos poder (basta ver o que acontece no mercado de trabalho aos que dependem do trabalho para terem rendimento), e no entanto apenas uma em cada vinte pessoas vota nos partidos que defendem e privilegiam quem tem menos poder.
 
Pode ser uma imagem de texto que diz "I AM GOING TO EAT YOU PAUL NaTH "He tells it like it is.""
 
Como explicar o paradoxo?
 
Há várias razões para isto. Uma delas é o fenómeno do "voto útil". O voto útil traduz-se no voto de um eleitor que se identifica mais com as propostas do partido A, mas vota no partido B porque simultaneamente tem medo que o partido C ganhe as eleições e considera que só o partido B o pode combater. Claramente o voto útil só beneficia os maiores partidos, e portanto só PS e PSD fazem sistemáticos apelos ao voto útil. No entanto, também é forçoso concluir que o fenómeno do voto útil mina o sistema democrático representativo que temos na sua essência. Não pretendo aprofundar aqui este tema. No entanto, deixo esta pista: o sistema de democracia representativa com eleições e partidos que temos baseia-se na premissa de que os eleitores votam nos partidos com os quais mais se identificam. Quando essa premissa não se verifica na realidade, o que será que acontece à representatividade política?
 
Outra razão justificativa para o paradoxo de as pessoas não votarem nos partidos que mais defendem os seus interesses é o medo do bicho-papão.
 
Se as pessoas pretendem ter mais poder, se o poder que têm nas relações que estabelecem entre si é desigual, e se os que têm mais poder se sentem ameaçados pelos que têm menos poder, qual é o único comportamento racional dos que têm mais poder? Claramente é utilizar o poder que têm para impedir que os que têm menos poder o conquistem.
 
Se existem partidos políticos que pretendem privilegiar os que têm menos poder, dando-lhes mais poder e consequentemente retirando poder aos que mais têm, o único comportamento racional destes últimos é lutarem contra esses partidos políticos.
 
Tudo estaria bem se os partidos políticos defendessem interesses diferentes e combatessem os outros partidos em igualdade de circunstâncias. Mas essa igualdade nunca existe. Os partidos que defendem os que têm menos poder têm sempre, eles próprios, menos poder que os outros. Por inúmeros motivos que o leitor facilmente enumerará.
 
Assim, é apenas natural que desde o momento em que as máquinas de propaganda política mais se desenvolveram, por alturas da primeira guerra mundial, e depois no período entre as duas guerras, que essas máquinas tenham sido utilizadas pelos poderes que dominavam a sociedade e a economia para incutirem na população determinadas formas de ver o mundo propícias à manutenção desse poder.
 
Alvos especialmente visados das enormes campanhas de propaganda foram sempre as correntes de pensamento, os partidos e as acções que tinham por objectivo dar mais poder a quem tem menos. Entre eles destacam-se os bichos-papões do comunismo, do socialismo, do anarquismo e afins.
 
Essas campanhas de propaganda foram extremamente bem conduzidas e tiveram os seus frutos, entre os quais os resultados eleitorais paradoxais que já referi.
 
Apenas como exemplo, no pensamento corrente de muitas pessoas as associações seguintes são automáticas:
socialismo - tirar aos que mais trabalham para dar aos preguiçosos
comunismo - socialismo com autoritarismo e falta de liberdade
anarquismo - desordem social, caos, violência
revolucionário - indivíduo violento, que impõe a sua vontade pela força
radical - fanático, lunático, violento e possivelmente armado
 
Apesar de parcial ou completamente erradas, estas associações automáticas só podem ter como consequência que os eleitores que assim pensam não considerem sequer a possibilidade de votar num partido de esquerda.
 
Tomemos o caso paradigmático da palavra comunismo. Apesar da origem da palavra ser "comum", e assim pertencer à família de palavras benignas que inclui comunidade ou comunhão, a palavra comunismo é muitas vezes, e fruto da histórica e intensa propaganda, automaticamente associada às ditaduras, à União Soviética, à Coreia do Norte, à repressão política, ao racionamento dos bens, etc. No entanto o comunismo é, desde a sua origem, uma corrente de pensamento e acção que defende a propriedade comum dos meios de produção. O comunismo defende a extinção de classes através da extinção dos privilégios actualmente associados a cada uma, e defende igualmente a extinção do Estado. Comunismo, afinal, é o que pode acontecer numa aldeia comunitária onde todos participam das decisões colectivas com igual poder, onde os meios de produção são propriedade de todos.
 
É possível que o leitor não acredite no que acabo de dizer, mas pode investigá-lo por sua conta. É igualmente possível, e mais provável, que o leitor considere algo como "apesar de na teoria o comunismo poder ser uma ideia bonita, ela é impossível de alcançar, e na prática resulta sempre em coisas como as ditaduras de..." seguindo-se o nome dos ditadores de eleição.
 
No entanto, isso não altera o que acabo de afirmar: a definição de comunismo, tal como está documentada, não está de acordo com a noção que muitas pessoas têm desse conceito.
 
Consideremos o seguinte exercício: os objectos azuis passam a ter sinais indicando que são amarelos. Eles continuam a ser azuis, mas afirmam, ou alguém afirma, serem amarelos. As pessoas interiorizam os sinais e ao fim de algum tempo quando alguém diz "amarelo" todos pensam nos objectos azuis. Será que nesse momento a definição de "amarelo" passa a ser "tudo aquilo que antigamente era azul"? Pode ser. Porque não? Mas nesse caso precisamos de encontrar um novo termo para tudo aquilo que antigamente era amarelo.
 
Talvez fosse mais simples passar a designar por comunismo tudo o que está associado a repressão, ditadura, centralismo, autoritarismo e afins. Mas nesse caso teríamos de encontrar outra palavra para designar aquilo que antigamente era comunismo. E além disso, a propaganda teria ganho na adulteração do significado da palavra (uma guerra de palavras). Talvez seja por isso, por não quererem assumir essa derrota no campo da propaganda, e por uma questão de fidelidade ao significado original, que os auto-intitulados "comunistas" permaneçam agarrados a esse termo, quando possivelmente a maioria das pessoas associa esse termo a algo que é diametralmente oposto.
 
Não pretendo tomar partido em relação ao significado das palavras, apenas pretendo permitir uma reflexão mais aberta sobre o tema, e chamar a atenção para a questão da propaganda. O que foi dito acerca do termo "comunismo" aplica-se a muitos outros termos, como os que já indiquei em cima e outros, nesta grande cruzada contra os partidos, pensamentos e acções de esquerda e pela instituição do "bicho-papão".
 
Enquanto se dissemina a ideia de que "os radicais de esquerda vêm aí", e são muito perigosos, os eleitores vão-se abstendo ou vão votando precisamente nos partidos que defendem interesses antagónicos aos seus.
 
Os partidos de esquerda com representação parlamentar propõem sistematicamente diplomas que reforçam os direitos dos trabalhadores por turnos, os direitos de maternidade e paternidade, que dão mais dias de férias aos trabalhadores, que aumentam os seus salários, que estabelecem a gratuitidade e acessibilidade dos serviços públicos, etc. Na grande maioria dos casos estas propostas são chumbadas pelos restantes partidos.
 
Talvez fosse tempo, portanto, de os eleitores quebrarem o paradoxo e perceberem que a ideia do "bicho-papão" é uma ideia criada pela propaganda dos que têm mais poder, que na prática os partidos de esquerda propõem medidas que os beneficiam, e que portanto seria melhor para os seus interesses dar-lhes o seu apoio através do voto e não só.
 
Há vários partidos de esquerda. Investigue e escolha aquele com que mais se identifica. Seja corajoso, e desista de votar utilmente, porque isso mina a democracia.
 
Ah, e claro, se se considerar poderoso, ponha de lado o altruísmo, defenda os seus interesses, e vote num partido de centro ou de direita!
 
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Dr. Coisinho...

Estás revoltado com o sistema?

Achas que os políticos do costume são todos uns mentirosos?
Acreditas que a corrupção é um flagelo no nosso país?
Consideras importante ter as contas do Estado certas?
Temes que a ordem nacional fique ameaçada por pessoas que não são portuguesas?
Sentes que é necessário haver alguém que chame as coisas pelos nomes e ponha ordem nisto tudo?
Acreditas que o Chega é um partido capaz de responder aos teus anseios, e André Ventura é o líder de que precisamos?
 
Já consideraste a possibilidade de estares a ser enganado?...
 
Sistema é um nome que pode dizer muito e pode não dizer nada. Os sistemas que temos, o eleitoral, o político, o social, o económico, são muito complexos, e essa complexidade é muito difícil de apreender por qualquer pessoa, mesmo pelos estudiosos.
 
Mas podemos tentar ser mais objectivos: afinal, o que é que nos aflige no "sistema"? A mim, por exemplo, uma das coisas que mais me aflige no sistema económico que temos é que ele dá mais poder a quem tem mais dinheiro, e quem tem mais poder usa-o para comprar coisas mais baratas (incluindo pessoas) e vender coisas mais caras e assim fazer ainda mais dinheiro, num ciclo vicioso que aumenta a desigualdade entre as pessoas de uma forma totalmente injusta.
 
Será que o Chega propõe alterar este ciclo vicioso de um sistema que em vez de produzir riqueza produz ricos? Não vi nada no seu programa que o pudesse indicar. Pelo contrário, o facto de estar a ser financiado (olha só o dinheiro que têm gasto na campanha eleitoral!) por gente muito rica só pode querer dizer que este partido não irá pôr em causa esse sistema.
 
Eu também acho que os políticos do costume são bastante mentirosos. Nem sempre mentem, mas mentem muito mais do que deviam, de propósito ou por simples negligência. Mas já pensaste que talvez o façam precisamente porque a mentira compensa?
 
Os políticos que andam na dança das cadeiras dos poleiros do Estado tiveram de conquistar o eleitorado para chegar onde chegaram. Uma das coisas que para o eleitorado é muito importante é os políticos terem uma imagem de bons falantes. E isso significa que têm de ter opinião na ponta da língua sobre todos os assuntos. Ora ninguém consegue ter uma opinião bem fundamentada e bem presente sobre todos os assuntos, pronto a responder a qualquer pergunta a qualquer instante. Mas se os políticos fossem honestos e admitissem que não sabiam o suficiente sobre o assunto para poderem responder, logo os comentadores e todos os eleitores os achincalhariam na praça pública. Por isso, eles perceberam que mais vale dizer qualquer coisa sobre o assunto, mesmo que se enganem e nos enganem.
 
Mais grave do que isso é que os políticos do costume, os tais das danças de cadeiras e poleiros, são os mesmos que instituíram, defendem e continuam a aperfeiçoar o sistema de produção de ricos em vez de riqueza. Talvez seja importante esclarecer o que quero dizer com "ricos". Ricos são as pessoas que têm posses suficientes para não precisar de trabalhar e mesmo assim ter uma vida abastada e ainda conseguir ter influência suficiente para torcer o sistema a seu favor nas questões da saúde, da educação, da justiça, etc. Ora é bom de ver que a maioria de nós não é rico. Os políticos do costume, para serem eleitos, têm de ser capazes de convencer as pessoas que não são ricas a votar neles, apesar de eles defenderem os interesses dos ricos. E isso exige mentir. E muito!
 
Mas então, se quisermos eleger políticos que não mintam, temos de ser capazes de distinguir quem é que mente e quem é que não mente. Para ajudar a distinguir, é bom analisar a coerência entre a história do partido, os financiadores do partido, a história pessoal dos políticos, o que dizem, o que fazem. Vejamos o caso do Chega: o partido assume abertamente que há na sociedade e na economia interesses distintos, ou diz que "estamos todos no mesmo barco"? O partido diz abertamente quais são as classes sociais cujos interesses pretende defender? Os financiadores do partido pertencem a essa classe? As medidas que defende são coerentes com esse discurso?
 
A mim parece-me que se analisarmos com o mínimo de atenção perceberemos que o André Ventura e os membros do seu partido são tão ou mais mentirosos que os políticos do costume. A Manuela Ferreira Leite era menos mentirosa quando dizia que devíamos defender os ricos. O Jerónimo de Sousa era menos mentiroso quando dizia que devemos defender a classe trabalhadora. O PAN é menos mentiroso quando diz que o seu interesse é defender os direitos dos animais (embora se esqueça que existem milhares de espécies de animais para além dos cães e dos gatos, algumas das quais em vias de extinção).
 
A corrupção é algo que deve ser combatido, sem dúvida alguma. No entanto, se a corrupção te preocupa muito, então talvez seja necessário colocar as coisas em perspectiva. Logo à partida o Estado português gasta cerca de cem mil milhões de euros todos os anos. Só em impostos o Estado arrecada mais de sessenta mil milhões de euros por ano. Quando falamos de corrupção, estamos a falar de quanto? Dos quinhentos mil que foram para a senhora da TAP? De um milhão? Dois, dez, vinte, cem milhões? Mesmo que fossem cem milhões de euros por ano em corrupção, isso seria menos de 0,2% do que é arrecadado em impostos. À luz desta informação, não serão exagerados os cartazes do Chega a dizer "pagamos tantos impostos para pagar a corrupção"?
 
Ainda acerca da corrupção, e em segundo lugar, seria bom analisarmos primeiro a credibilidade do partido que acreditamos ir combatê-la. Porque é que os membros do partido Chega te parecem mais credíveis do que os membros de outros partidos que também propõem o combate à corrupção, alguns dos quais a têm efectivamente combatido durante muitos anos? Só porque o André Ventura está sempre aos gritos acerca disso? Será esse um bom método de avaliação da credibilidade? Ou será que estamos a ser bem enganados? Além disso, o que é que esse partido propõe, de facto, para que se combata a corrupção? Porque falar é fácil, mas implementar é muito mais difícil. Será que propõem mudar as leis que definem o que é ou não é corrupção? Será que propõem dar mais meios materiais e humanos às instituições que fiscalizam (como a Polícia Judiciária ou os Tribunais)? Se for esse o caso, será que vão gastar mais com isso do que o próprio dinheiro envolvido na corrupção?
 
Em terceiro e último lugar, mas mais importante, é preciso perceber que os desvios de dinheiro imorais, mas perfeitamente legais, são de várias ordens de grandeza superiores aos da corrupção. Por exemplo: todos os anos o Estado português paga vários milhares de milhões de euros em juros da dívida. Este dinheiro não serve para abater a dívida. Na verdade, este dinheiro não paga nenhum serviço, não paga nada: é apenas dinheiro que sai dos bolsos de todos os contribuintes para os bolsos dos credores do Estado, que calha de serem precisamente os mais ricos, a troco de nada. Em tempos a usura e os agiotas eram moralmente condenados, mas hoje parece que achamos isso tudo muito normal. A lição é esta: quando os políticos e os seus amigos ricos nos querem aldrabar, eles mudam as regras do jogo, mas continuam a jogar dentro dessas regras. Ou seja: a grandessíssima maioria daquilo que devíamos considerar como corrupto, não o consideramos, porque é feito à luz da legalidade, e em vez disso andamos a discutir casos que são autênticas migalhas. O que é que o Chega tem a dizer, por exemplo, em relação ao roubo da dívida pública? O que é que tem a dizer acerca do roubo que são as parcerias público-privadas? O que é que tem a dizer acerca do desinvestimento nos sistemas nacionais de saúde e educação que dão rios de dinheiro aos privados?
 
Eu também considero que é importante ter as contas do Estado certas. Mas ter as contas certas não significa necessariamente gastar pouco. Mais importante do que isso, ter as contas certas nada nos diz acerca de onde é que devemos gastar o dinheiro, nem onde é que o devemos ir buscar. Começando por este último aspecto, o dinheiro é criado pelas instituições monetárias. Em tempos o Estado português tinha o poder de decidir emitir mais ou menos dinheiro, o que tinha impacto na dinâmica da economia como um todo e também na evolução dos preços. A política monetária permitia jogar com as taxas de juro e o dinheiro emitido de forma a manter os preços baixos e o crescimento económico em alta. Os políticos do costume acharam que este método não era bom, que era preferível aquele que agora temos, o sistema monetário europeu. Eu tenho de admitir que é giro poder viajar de país em país e não ser necessário trocar as notas e moedas e pagar taxas cambiais e fazer contas de cabeça para perceber quanto é que custa um litro de gasolina em França. Mas este sistema muito giro tem um lado muito negro, parte do qual se está agora a revelar nas nossas carteiras: é que em vez de podermos escolher entre mais crescimento económico e inflação ou menos crescimento económico e inflação, agora temos baixo crescimento e alta inflação. Isto faz parte do sistema económico que temos. O Chega diz-se "contra o sistema", mas o que é que diz acerca do sistema monetário europeu ou da possibilidade de criação de moedas locais?
 
Mas continuando com a questão das contas certas. Os impostos podem ser arrecadados de diversas formas: há impostos sobre o consumo, como o IVA, sobre os rendimentos, como o IRS, sobre o património, como o IMI. Os impostos sobre o consumo são os mais injustos, porque quem tem menos gasta tudo o que tem em consumo e quem tem mais só gasta uma pequena parte. No entanto, o sistema fiscal que temos arrecada a maior fatia de dinheiro através do IVA. Os impostos sobre o rendimento têm o potencial para serem mais justos. No entanto, no sistema que temos, os impostos sobre os rendimentos do trabalho são mais taxados que os dos rendimentos dos capitais (juros, lucros, rendas), e além disso existem uma série de benefícios fiscais aos quais os mais pobres nunca conseguem aceder. Os impostos sobre o património são os únicos que permitem implementar a justa máxima de que quem tem mais deve pagar mais. No entanto, no sistema que temos, menos de 1% da colecta de impostos vem de impostos sobre o património. O que é que diz o Chega acerca do modo como devemos repartir os impostos por estes três tipos? Ou será que o Chega apenas promete baixar impostos? Porque se apenas se baixar os impostos, então é que certamente não haverá dinheiro para os necessários gastos públicos.
 
Finalmente, para acabar o capítulo das contas certas, é necessário considerar quanto e onde é que o Estado deve gastar o dinheiro. Se o Chega pretender cobrar menos impostos, também terá de gastar menos. Mas se pretender atacar a corrupção, terá de dotar o sistema fiscal, judicial e penal de mais recursos. Será que para isso o Chega propõe acabar com serviços públicos como a educação, a saúde, as estradas, o apoio à habitação? Ou será que pretende acabar com os apoios sociais aos mais desfavorecidos, como as pensões de sobrevivência ou os subsídios de desemprego? Afinal onde é que o Chega propõe gastar mais e onde é que propõe gastar menos?
 
A ideia de que existem pessoas melhores do que outras só porque têm uma determinada cor de pele não tem qualquer fundamento. Mas o mesmo pode ser dito acerca da etnia, do modo de vestir, da orientação sexual, da língua falada, da riqueza possuída. Notemos que os tais corruptos que o Chega tanto promete combater são, na sua maioria, portugueses de gema, bem falantes, com dinheiro, brancos, heterossexuais engravatados da alta sociedade. Há gente corrupta por todo o lado. Há gente má em todo o lado. E há gente boa em todo o lado. Para não dizer que, de facto, todos temos coisas boas e coisas más em simultâneo.
 
Todos sabemos que as condições sociais e materiais em que as pessoas nascem, crescem e se desenvolvem moldam o seu comportamento. E também se diz que a ocasião faz o ladrão. Não admira, portanto, que uma sociedade que cria divisões entre as pessoas, que define que determinados grupos são "os escolhidos" e outros grupos são os excluídos, que promove um sistema económico cujo motor é o lucro e que, portanto, se baseia nas desigualdades económicas, que insiste em esfregar na cara dos mais pobres o luxo material dos mais ricos... não admira que esta sociedade produza raiva, revolta e violência. Se calhar também tu sentes raiva, revolta e vontade de ser violento contra aqueles que julgas que te oprimem! Mas se quisermos mesmo resolver estes problemas, só o poderemos fazer através da solidariedade, trabalhando para eliminar as divisões entre as pessoas, dando condições sociais e materiais para que todos se possam desenvolver em harmonia, evitando a obscenidade do luxo face à miséria, numa sociedade mais igualitária. O Chega propõe uma sociedade mais igualitária? Ou em vez disso alimenta-se e promove as divisões entre as pessoas?
 
Isto aplica-se não apenas ao que se passa em Portugal, mas também ao que se passa em todo o mundo. Se neste momento há milhares de pessoas a arriscar a vida para tentar uma entrada ilegal na União Europeia é porque por um lado a União Europeia vende uma imagem de si própria como sendo o "el dorado", mesmo que persista muitíssima pobreza no seu seio, e por outro lado os povos dos outros países à volta da União Europeia estão a passar mal. O que é que o Chega propõe a este respeito? Que se contratem mais polícias para patrulhar as fronteiras e se construam muros mais altos?
 
A ideia de que a culpa do nosso mal-estar é dos pobres preguiçosos que vivem à nossa custa é uma ideia muito divulgada mas completamente falsa. Para tentar ser breve, centremo-nos na economia real, nas coisas concretas: será que alguma vez nos faltaram produtos nas prateleiras das lojas por causa dos preguiçosos? Claramente não. A economia de hoje é uma economia de sobreprodução, onde poucas fábricas conseguem abastecer o mundo inteiro, e o risco é sempre de produzir a mais e não de produzir a menos. Se nós nos queixamos é porque sentimos que nós não temos dinheiro suficiente para comprar as coisas que queremos. E então lembramo-nos dos que recebem apoios sociais sem trabalhar, e pensamos que talvez sejam eles a levar o nosso dinheiro todo dos impostos. Mas isso é errado. Entre 2014 e 2020 o subsídio de desemprego representou entre 1% e 2% dos gastos totais do Estado, o subsídio de doença entre 0,4% e 0,7% dos gastos totais, e o RSI apenas 0,3% dos gastos totais. Para além disso, é necessário pensar no que acontece ao dinheiro depois de ele ser entregue aos beneficiários desses subsídios: eles invariavelmente são gastos, na íntegra, no consumo de bens e serviços. Ou seja, os vendedores e produtores desses bens e serviços beneficiam com isso, e esse dinheiro é injectado de volta na economia.
 
Portanto: culpar os mais desfavorecidos pelo nosso mal-estar económico não faz qualquer sentido. Mas o Chega não promove apenas esse discurso de preconceito, ele ainda ajuda a que consideremos que os mais desfavorecidos são uns preguiçosos. Ora, não é preciso ter muita empatia para entender que uma pessoa que cresceu num meio desfavorecido e não tem um currículo brilhante não se vai sentir melhor se o apelidarmos de preguiçoso. De resto, os maiores preguiçosos são precisamente os da classe alta que vivem de rendimentos. O que é que o Chega diz acerca desses?
 
Os sistemas que temos, o económico, o político, o judicial, o social, têm muitos problemas. Também eu sou muito crítico em relação ao "sistema" e considero que é importante e necessário promover esse espírito crítico. Mas é também preciso esclarecimento, é preciso termos o mínimo fundamento antes de alinharmos com promessas de soluções rápidas.
 
O Chega tem um líder que fala espalhafatosamente. Parece ser um tipo que "parte a louça toda". Mas na verdade é tão ou mais mentiroso e corrupto que todos os outros: por um lado diz-se contra o sistema, quando o que ele pretende fazer é precisamente manter o sistema, canalizando a revolta da população para coisas que não beliscam o sistema; por outro ele usa o sistema, usa o seu partido, usa os apoios dos seus financiadores, e usa a mentira e o engano dos seus eleitores para benefício próprio, o que corresponde à noção exacta de corrupção.
 
Não te deixes enganar! Procura alternativas credíveis!

PS ou PSD?...

Tal como nos parecem obrigar a tomar partido por Biden ou por Putin, quando ambos são do pior que há, parecem querer obrigar-nos a pensar que ou é PS ou é PSD.
 
Em 2021 José António Saraiva escrevia no Sol que "Se o PS é o preto, o PSD é o branco. Dizer que são quase iguais é não perceber nada de nada." (12 de Dezembro)
 
É claro que são diferentes! Um propõe aumentos salariais de 1% e o outro de 2%; um defende uma diminuição do IRS em 3% e o outro em 1%; um chama-lhe rendimento mínimo garantido, o outro rendimento social de inserção; um gosta de cor-de-laranja, o outro de cor-de-rosa.
 
A lista em baixo pretende deixar bem claro como o PS e o PSD são completamente diferentes em relação a tudo o que é verdadeiramente importante nas nossas vidas, como a saúde, a educação, o rendimento, o trabalho, a política externa e sobretudo o sistema económico. Será imediato encontrar as 7 diferenças!
 

 
1. os serviços públicos de apoio aos cidadãos são reduzidos ao mínimo e mantêm-se os que canalizam verbas públicas para benefício das empresas, como por exemplo a investigação científica
2. prioridade à austeridade, à contenção, às contas certas, mais no PSD do que no PS, mas também neste último, sobretudo nos últimos anos
3. são tratados com paternalismo; parte-se do princípio que os funcionários são malandros, aldrabões e preguiçosos, controlam-se todos os seus passos, mas raramente se valorizam os seus feitos; desde finais da década de 90 que os seus aumentos têm sido diminutos, passando por períodos de congelamento de salários que nunca foram recuperados; os funcionários que saem não são substituídos por outros que entram e os que ficam acabam sobrecarregados de trabalho
4. não só não compensam os trabalhadores pelos aumentos de produtividade como têm dificuldade em acompanhar a inflação, causando perdas reais de salários
5. exemplos de desorçamentação de serviços públicos durante as últimas décadas são evidentes e ubíquos; ao mesmo tempo o Estado estabelece parcerias com os privados, que diz serem "complementares", e implementa mecanismos de apoio às famílias para poderem consumir os serviços de privados, o que acaba por se traduzir num subsídio indirecto aos privados, quando estes estão a prestar serviços que deviam ser garantidos pelo Estado
6. o imposto sobre o rendimento das pessoas colectivas (IRC) tem uma taxa efectiva abaixo dos 20%, recorde-se que a taxa incide sobre o lucro e o lucro não é rendimento de qualquer trabalho, nem sequer do gestor - o lucro é o que sobra da actividade depois de se pagar tudo, incluindo os salários, e devia ser pertença de quem o produziu, isto é, dos trabalhadores, mas é pertença de quem lá pôs o dinheiro (ou seja, é o mecanismo que permite que quem mais tem fique com ainda mais)
7. não se manifestam contra a existência de paraísos fiscais e permitem que muitos empresários e empresas portuguesas mudem as suas contas para lá, fugindo assim aos impostos
8. o imposto sobre imóveis (IMI) é um exemplo de um imposto sobre o património, mas que é injusto para quem tem menos; porém, a esmagadora maioria do património (empresas, activos financeiros, depósitos bancários, obras de arte, barras de ouro, direitos intangíveis, etc.) não é tributado; os impostos sobre o património, se bem aplicados, são os mais justos, porque permitem cobrar mais a quem mais tem
9. são os mais injustos, porque quem tem menos, tem sempre de consumir o mínimo, e portanto acaba a gastar tudo o que tem em consumo, ao contrário de quem tem muito
10. os benefícios fiscais concedidos geralmente só podem ser utilizados por contribuintes que tenham dinheiro suficiente para consumir determinados produtos e serviços que não estão acessíveis aos mais pobres


 
11. através do mercado e de mais produtos e tecnologia, ou seja, em vez de uma orientação clara para soluções conhecidas e necessárias, como o abandono da apologia do crescimento económico infinito, utilizam-se os problemas ambientais para criar mais negócios que pouco ou nada resolvem
12. incentivos à compra de carros eléctricos, utilização de espaço e recursos públicos para criação de postos de abastecimento, medidas que não diminuem o congestionamento de trânsito nas cidades, que são acessíveis apenas aos que mais têm, e que não resolvem os problemas energéticos ou ambientais
13. ausência de políticas efectivas de protecção ambiental, ultrapassagem sistemática de toda a legislação ambiental sempre que há oportunidades de negócio, ausência de real estratégia de combate aos incêndios, plantações de pinheiros e eucaliptos são vistos como "florestas", etc
14. o progresso científico e tecnológico são vendidos como curas paras todos os males, o que ao mesmo tempo coloca a tónica da acção humana na produção de sempre mais coisas e não na análise do que está a ser feito e na correcção dos erros porventura através do abandono de certas actividades
15. fornecimento de equipamentos informáticos aos alunos, computadores durante todas as aulas, substituição de livros por computadores, tudo é visto como indispensável ao progresso, apesar do que isso implica para um processo de educação sério, para o desenvolvimento da capacidade de agir em sociedade, o desenvolvimento do pensamento crítico, da tolerância, da capacidade de expressão, etc.
16. directamente e via União Europeia; saliente-se que a NATO é, de facto, uma instituição controlada pelos EUA, e que os EUA violam sistematicamente todas as leis internacionais invocando o seu interesse nacional, promovem guerras em todo o planeta desde há décadas, retiram governantes com ou sem revoluções coloridas, colocam governantes fantoches em seu lugar, etc, em total impunidade, e sempre com a conivência dos países subjugados às alianças com os EUA; sobre isto, PS e PSD nunca se opuseram
17. um caso em que Israel, EUA e muitos outros Estados violam sistematicamente a lei internacional e os acordos pré-estabelecidos para condenar um povo inteiro a uma vida indigna e que é ignorado desde há demasiadas décadas por PS e PSD
18. um caso em que Inglaterra e EUA violam todo o tipo de leis para manterem preso, sem acusação formal, desde há anos, uma pessoa que se empenhou como poucos na divulgação dos crimes que os Estados cometem em nosso nome e com o nosso dinheiro, e que PS e PSD ignoram
 

 
19. na confrontação entre quem tem mais e quem tem menos, este sistema económico dá mais poder aos que mais têm; existem actualmente e sempre existiram no passado sistemas económicos alternativos onde isso não é assim, mas a defesa pelo PS e PSD do sistema económico actual passa também por descredibilizar a possibilidade de uma alternativa, qualificando qualquer discurso alusivo a alternativas como "irresponsável"
20. educação em contexto de competição, promoção profissional como resultado de competição, prémios e rankings para tudo, etc.
21. ausência de políticas que privilegiem o sossego, a paz, a ausência de consumo, a cooperação, a cultura, o regresso às raízes; o sucesso é sempre visto vestido de fato e calças, um bom carro, muito consumo, muita rapidez, muito eficácia, muita produtividade
22. em vez de uma postura crítica, há uma aculturação acrítica à língua, ao modo de vestir, ao modo de agir, às estruturas hierárquicas, às teses académicas, a tudo o que tem a ver com gestão de empresas que venha dos EUA
23. são mais de 5000 IPSS em Portugal, que incluem instituições como a Cáritas, o Banco Alimentar contra a fome, centros sociais, casas do povo, etc.
24. em tempos o dinheiro era impresso e cunhado pela Imprensa Nacional - Casa da Moeda, e posto em circulação pelo Banco de Portugal; PS e PSD, em conjunto com interesses internacionais da mesma índole, trabalharam para implementar um sistema que retirasse ao Estado o poder da emissão de moeda, para depois poderem alegar até à exaustão "não há dinheiro" e "não há alternativa"; no entanto, situações como a da pandemia em 2020 demonstram que há muito dinheiro (Plano de Recuperação e Resiliência) sempre que eles o consideram necessário; entretanto, o PIB continua a aumentar e nunca houve tanto dinheiro como hoje, conforme se vê nos negócios dos oligarcas locais e estrangeiros
25. há uma preferência pela integração económica, abolição de restrições alfandegárias e livre actuação dos mercados internacionais, que historicamente desmantelou muitos sectores produtivos nacionais, em vez de uma intervenção que promova a produção nacional e permita a manutenção de postos de trabalho nacionais bem remunerados
26. ambos os partidos afirmam que sim, só que não; ambos os partidos aceitam e apoiam o sistema capitalista, o contexo da União Europeia, a actuação livre dos mercados, a perda de soberania em relação à política cambial, à política aduaneira, à política monetária e mesmo em relação à política fiscal, na parte que envolve concorrência de agentes que facilmente se podem deslocalizar para outro país, pelo que não têm margem de manobra para implementar políticas estratégicas a não ser simplificar uns processos aqui, criar uns incentivos acolá
27. o crédito é ensinado e vendido ao cidadão comum como fundamental para o funcionamento da economia, sinónimo de um sistema financeiro saudável, racional quanto à utilização de recursos, quando na verdade é apenas uma maneira de estender as relações de poder dos que mais têm sobre os que menos têm em todos os domínios da sua vida
28. a liberdade de movimentação do capital é muito boa para os seus detentores, porque permite colocá-lo onde der mais dinheiro, mas pode ser muito má para os demais, facilitando a evasão fiscal e a tirania da chantagem do livre mercado, do tipo auto-europa: "ou me dão benefícios ou vou produzir para outro lado"
29. em situações como a actual, em que o BCE mantém taxas de juro elevadas, ouvem-se excepcionalmente algumas críticas ligeiras à manutenção da taxa de juro elevada, mas nunca se ouviu uma crítica do PS ou do PSD à existência ou ao modo de funcionamento do BCE
30. não é dada igual importância a teorias alternativas e a escolha dos alunos é enviesada; os próprios professores já foram formados nessa escola, e portanto eles mesmos já têm uma perspectiva enviesada da totalidade das teorias disponíveis para explicação de determinados fenómenos económicos
31. a lógica do crescimento económico constante, sem fim à vista, sem uma meta que se pretenda alcançar e da qual se possa dizer "já é suficiente", como indispensável para a resolução dos problemas humanos; por exemplo o crescimento é sempre a cura publicitada para a pobreza, como se o que já existe não fosse suficiente para acabar com a pobreza
  

 
32. inserindo os pobres no mercado de trabalho onde, se tiverem sorte, conseguirão trabalhar pelo salário mínimo, sabendo que o mercado de trabalho atribui sempre mais poder aos empregadores do que aos empregados, que o mercado de trabalho já é duro para quem tem condições medianas, e que os mais necessitados frequentemente são também os que têm menos formação, conhecimento, capacidade, saúde e motivação
33. a educação é vista como um meio de preparar as pessoas para terem emprego, o que beneficia as empresas, mas não necessariamente as pessoas, e incute-se nas pessoas esse modo de pensar esquecendo que existem outras valências da educação para a felicidade, para a cidadania, para a solidariedade, para a preservação dos ecossistemas, etc. que são descuradas
34. o PSD chegou mesmo a incentivar os jovens a emigrar; o PS tem um discurso de combate à emigração, mas não tem medidas concretas eficazes, afirmando que isso se combate com aumentos de produtividade, ou seja, deixando o combate à emigração à responsabilidade dos mercados (que é o mesmo que dizer ao deus-dará)
35. ao mesmo tempo que há todo o incentivo ao "empreendedorismo", formatando todas as iniciativas em moldes empresariais, não há um incentivo para iniciativas de cidadãos que sejam geridas de forma cooperativa e em autonomia
36. propaganda que incute nas pessoas um sentido de dever de se voluntariarem, sobretudo os jovens, sendo que o voluntariado se traduz, na prática, no trabalho não remunerado para instituições privadas que muitas vezes substituem os Estados nas suas responsabilidades de assistência às populações; note-se que há muitos jovens que precisam de trabalhar porque precisam de ganhar dinheiro, e portanto não se podem dar ao luxo de serem almas caridosas e fazerem voluntariado com os pobrezinhos em África
37. conivência nas políticas da União Europeia de criação de um mundo à parte, de privilégio inacessível aos de fora, com muros e todo o tipo de mecanismos que impedem a livre circulação das pessoas, propaganda sistemática sobre a necessidade de patrulhar as fronteiras e redução da procura de melhores condições de vida de pessoas do exterior à questão dos negócios ilegais de "tráfico de seres humanos"
38. considera-se que os empregadores não são obrigados a prover transporte, roupa, formação, alojamento, alimentação, creches, saúde, convívio, ou até mesmo o equipamento indispensável à produção (automóveis, computadores, telemóveis, etc.), embora há algumas décadas atrás os empregadores eram mesmo obrigados a fornecer esses bens e serviços aos trabalhadores, sem os quais não teriam trabalhadores
39. apesar dos enormes ganhos de produtividade desde meados do século passado e de desde há décadas ouvirmos dizer que a "sociedade do lazer" vem aí, continuamos a trabalhar a mesma quantidade de horas
40. para lá dos subsídios muito limitados e sempre criticados aos que estão mesmo no fim da linha (rendimento social de inserção - com este nome "inserção"... que já diz muito, ou com outros nomes - subsídios de desemprego, etc.), não há nenhuma medida de combate à desigualdade económica, uma vez que se entende que a pobreza deve ser combatida por cada um, isoladamente, no mercado de trabalho, e a extrema riqueza não deve ser tocada
  
 

 
41. não há qualquer contestação à forma como a dívida foi contraída, como grande parte da dívida actual resulta de juros, de como os estados não são actualmente soberanos para lidar directamente com a questão
42. os cidadãos podem comprar certificados de aforro, obrigações do tesouro e certificados do tesouro, todos com taxas de juro mais baixas que a taxa de juro média da dívida pública portuguesa
43. as agências de rating privadas não são de modo algum democráticas e estão ao serviço dos interesses de lucro dos seus proprietários; no entanto, PS e PSD aceitam acriticamente um sistema económico e político que permite que estas agências tenham o poder de declarar que "a dívida portuguesa é lixo" e assim fazer variar as respectivas taxas de juro que alimentam uma purga de milhares de milhões de euros dos nossos impostos, todos os anos, em pagamento de juros
44. as agências para a transparência e os mecanismos jurídicos implementados são só fachada e não funcionam na prática
45. os casos de privilégio de amigos e familiares abundam em ambos os partidos
46. há imensos casos em ambos os partidos de políticos que saltam de cargo político em cargo político e depois vão parar a uma grande empresa
47. sendo que há exemplos recentes de países que ficaram sem governo durante anos sem consequências negativas
48. propaganda que promove no eleitorado o "voto útil" e exclui todos os partidos alternativos, limitando assim o exercício democrático
 
 
 
49. no caso da covid-19 debateu-se acesamente se a vacina da Moderna era melhor que a da Pfeizer ou de outro laboratório, mas PS e PSD nunca levantaram a questão de toda a produção de vacinas ser privada, de não haver laboratórios públicos para as necessidades fundamentais das populações e de os privados lucrarem biliões à custa disso
50. ao mesmo tempo que nenhum partido fala sequer da possibilidade da existência de uma indústria farmacêutica pública, apenas como exemplo, continua a manter-se de pé um sistema de investigação científica assente no trabalho de bolseiros que são mal pagos e não têm quaisquer apoios sociais como por exemplo subsídio de desemprego; os resultados da investigação são quase sempre aproveitados pelos privados, e os governos acham isso muito bem pois, conforme a ladainha costumeira, "o que é bom para a economia é bom para todos"
51. o desmantelamento da rede nacional de caminhos de ferro e a falta de qualidade nos transportes públicos urbanos são exemplos que demonstram a prioridade dada aos meios de transporte privados, colectivos mas sobretudo individuais, pelo simples facto de serem melhores para o negócio privado
52. são exemplos os seguros obrigatórios, as inscrições em ordens profissionais, as inspecções automóveis, os projectos de arquitectura, as contas bancárias, etc, etc.
53. Artigo 64º, 3, a) Incumbe ao Estado garantir o acesso de todos os cidadãos, independentemente da sua condição económica, aos cuidados da medicina preventiva, curativa e de reabilitação
54. Artigos 73º, 74º e 75º estabelecem, entre outros: "a educação (...) contribua para a igualdade de oportunidades, a superação das desigualdades económicas, sociais e culturais, o desenvolvimento da personalidade e do espírito de tolerância, de compreensão mútua, de solidariedade e de responsabilidade, para o progresso social e para a participação democrática na vida colectiva", "ensino básico universal, obrigatório e gratuito", "estabelecer progressivamente a gratuitidade de todos os graus de ensino", "o Estado criará uma rede de estabelecimentos públicos de ensino que cubra as necessidades de toda a população". na prática, nem o ensino obrigatório é gratuito, porque obriga os alunos a incorrerem numa série de despesas
55. Artigo 73º, "todos têm direito (...) à cultura", Artigo 78º, "todos têm direito à fruição e criação cultural", "incumbe ao Estado incentivar e assegurar o acesso de todos os cidadãos aos meios e instrumentos de acção cultural, bem como corrigir as assimetrias existentes no país em tal domínio, apoiar as iniciativas que estimulem a criação individual e colectiva, nas suas múltiplas formas e expressões"
56. Artigo 20º, "a todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos"
57. Artigo 65º, entre outros: "todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar", "o Estado adoptará uma política tendente a estabelecer um sistema de renda compatível com o rendimento familiar e de acesso à habitação própria"
58. Artigo 255º, "as regiões administrativas são criadas simultaneamente, por lei, a qual define os respectivos poderes, a composição, a competência e o funcionamento dos seus órgãos" - é interessante analisar as alterações introduzidas por PS e PSD à constituição de 1976 a este respeito
59. não assumem posição face à publicação de notícias falsas ou enviesadas de meios privados e são cúmplices da sua divulgação através dos meios públicos; não houve qualquer contestação de PS ou PSD à censura recente de meios de comunicação da Rússia
60. apesar de existirem instituições dedicadas a esse fim como a "autoridade da concorrência" são do conhecimento comum e da vivência de todos as estratégias concertadas de fixação de preços nos mais diversos sectores que passam sempre impunes
61. a mobilidade ligeira é preterida a favor de vias rápidas para automóveis privados, as hortas urbanas são preteridas a favor de jardins catitas que atraiam turistas, os jardins selvagens e corredores verdes são preteridos a favor de centros comerciais, a habitação social é preterida a favor de hotéis, etc.
62. a existência de círculos eleitorais sem compensação origina representações dos partidos mais votados na Assembleia da República mais do que proporcionais aos votos, limitando ou mesmo excluindo os partidos menos votados e atribuindo maiorias absolutas com pouco mais de 40% dos votos; volta e meia ouve-se militantes do PS ou do PSD a defender círculos uninominais, que agravariam muito esta situação, sob a propaganda de "aproximar os eleitos dos eleitores", quando nas eleições legislativas os eleitores elegem partidos e não "eleitos"
  

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2024

Liberal. A política e a economia.

 

Liberal, talvez. Mas livre? Libertina? Libertária?... Estamos novamente no reino das guerras de palavras. Estes adjectivos partilham a mesma raiz, mas não têm os mesmos significados.

Talvez um melhor entendimento possa ser atingido respondendo à pergunta: livre do quê? Afinal, quando pensamos em liberdade, pensamo-la em oposição a algo que a impede, algo que a aprisiona. Podemos querer libertar um pássaro da sua gaiola, uma pessoa de um peso na consciência, um povo de um ditador, uma língua dos ditames do grupo da academia, os pobres dos ditames dos ricos, os ricos do cheiro dos pobres. Dá para tudo... daí o problema.

O termo liberal, quando aplicado no contexto da economia ou da política, quer geralmente significar com poucas regras.

Será isso uma coisa boa ou uma coisa má? Talvez sintamos que as regras que se aplicam a nós limitam a nossa liberdade, e portanto são uma maçada. Ao invés, quando as regras impedem os outros de fazer coisas que consideramos erradas, já pensamos que são boas. Mas se conseguirmos prevenir os comportamentos desviantes dos outros com menos regras, talvez isso seja preferível... Assim como uma sociedade ideal, onde tudo corre bem sem a necessidade da existência de polícias e leis e tribunais. Apesar disso talvez continuemos a achar que as coisas regradas são melhores que as desregradas. Enfim, confusões palavrescas.

Se me dessem a escolher entre mais regras ou menos regras, mantendo-se tudo o resto igual, eu certamente preferiria menos regras. As regras são uma chatice. Logo à partida torna-se necessário conhecê-las. E depois é necessário cumpri-las. E ainda nos sujeitamos a vir de lá o fiscal carregado de um qualquer poder que nós não temos para nos apontar o dedo aonde nem sequer suspeitávamos!


No entanto, é impossível fugir ao chavão: as regras são necessárias à vida em sociedade. Historicamente, todas as sociedades possuíram os seus articulados normativos, expressos ou tácitos. E não é necessário pensarmos em civilizações como os gregos antigos ou os romanos. Também os "bárbaros" de aldeias comunitárias actuais possuem os seus conjuntos de regras.

As regras existem geralmente para impedir que os espertalhaços se aproveitem dos incautos. Aparentemente Aristóteles terá dito que a amizade é mais importante que a justiça, porque onde houver amizade, não será necessário haver aparelhos de justiça. O problema, claro está, é que numa comunidade de amigos que verdadeiramente se preocupam uns com os outros, ninguém pode prever se e quando vai aparecer um espertalhaço.

Uma sociedade com regras e com um aparelho fiscalizador e sancionatório é uma grande chatice... mas: o que fazer? Todos os sistemas são bons quando as pessoas são boas, mas todos os sistemas são maus quando as pessoas são más. E o problema com os seres humanos é que, infelizmente, há uma tendência muito forte para as pessoas serem simultaneamente boas e más, em proporções variáveis consoante a pessoa e as circunstâncias.

Os partidos liberais batem-se por economias liberais, isto é, com menos regras. Mas será uma economia liberal o mesmo que um "laissez faire", assim uma espécie de "far west" ideal, onde não há regras e cada um está totalmente abandonado à sua sorte, perdão, onde cada um é totalmente livre? Não exactamente.

As economias ditas liberais sempre foram, e continuam a ser, muito pouco liberais. Por exemplo, elas sempre tiveram como pilar o sacrossanto princípio da propriedade privada. Como nós próprios nascemos e vivemos sempre numa economia onde esse princípio prevalece, talvez julguemos que isso é natural, é essencial, é indispensável à vida em sociedade. Mas isso não é verdade. De qualquer modo, se pensarmos um pouco, poderemos sentir que a garantia da propriedade privada é fundamental para a nossa sobrevivência, mas também poderemos descobrir que ela restringe muito significativamente a nossa liberdade. Alternativamente, façamos uma redução ao absurdo: se de repente fosse abolido o princípio da propriedade privada, poderíamos ir às lojas pegar naquilo de que necessitássemos e não necessitaríamos de trabalhar para conseguir o dinheiro para o pagar.

A garantia da propriedade privada não é um princípio tão fácil de implementar na prática quanto se possa pensar. Imaginemos uma comunidade onde todos os seus membros, menos um, possuem uma determinada riqueza, mas esse um possui a mesma riqueza que a soma de todos os outros. Como é que se garante que os outros membros não se apropriam dessa riqueza? Isso implica a existência de normas escritas, de polícias, de tribunais e de cadeias. E qual seria o incentivo dos membros dessa comunidade para implementar tal sistema?...

Os impostos podem ser (ou não!) mecanismos para apaziguar as tensões comunitárias que surjam da desigual repartição da riqueza. Eles são, na verdade, antagónicos ao princípio da propriedade privada. E se a respectiva colecta não servir directamente para a diminuição de desigualdades, servirá para manter as forças policiais bem oleadas.

Os militantes de partidos liberais, defensores de economias liberais, nunca poderão ser contra o Estado ou contra os impostos. Eles usam um chavão que já todos ouvimos: "menos e melhor Estado". Claramente isso não é o mesmo que abolir o Estado. Mas será então necessário perceber o que se entende por menos Estado e o que se entende por melhor Estado.

Vou atalhar um pouco, senão o texto passa de longo a extensíssimo. O que este tipo de liberais defende é a possibilidade e as condições de os mais ricos poderem fazer ainda mais dinheiro. Curto e simples. E nesse processo o Estado desempenha e sempre desempenhou um papel essencial.

Desenganem-se, portanto, os que vão na cantiga propalada acerca dos malefícios do planeamento, e sobretudo do planeamento central na economia, fazendo comparações com a antiga União Soviética. Isso é propaganda. O facto é que os liberais das economias liberais sempre planearam e implementaram os seus planos, cruciais para os seus negócios. A existência de bancos centrais, o banco central europeu, a moeda única, as dívidas públicas, o endividamento público para pagamento dessas dívidas, a importância das "agências de rating", os acordos militares, as regras laborais (que muito mais do que garantir direitos dos empregados, garantem direitos dos empregadores), as regras de concorrência, os offshores, a quase ausência de impostos sobre o património, o sigilo bancário, a preponderância de impostos sobre o consumo (como o IVA), o desinvestimento em todos os serviços públicos que dão bons negócios aos privados, a gestão das fronteiras, os acordos internacionais de tarifas aduaneiras, o fornecimento de energia, a educação - tudo são exemplos de intervenções do Estado nas economias liberais que são fruto de muito planeamento, e que são indispensáveis para os mais ricos continuarem a fazer ainda mais dinheiro.

O que é que isso tem a ver com liberdade? Diz-se que numa democracia é "uma pessoa, um voto". E já sabemos o que se diz acerca disso: é o pior de todos os sistemas, com excepção de todos os outros. Mas numa economia liberal, no capitalismo, é um euro um voto. Isso de facto dá a máxima liberdade aos que mais dinheiro têm, mas também dá a mínima liberdade aos que menos dinheiro têm.

O "liberal" dos partidos e da economia é só isso: a transferência de liberdade de uns para outros. Mais especificamente, o aumento da liberdade em função do dinheiro que se tem. De resto, quem é que defenderia a desregulamentação estando à partida numa situação desfavorável?

Há mais de 30 anos fiz parte de uma espécie de associação de estudantes. No último ano do curso de economia, o liberalismo ganhou. Tínhamos uma determinada quantia de dinheiro que todos os alunos do curso tinham ajudado a angariar ao longo dos anos. O objectivo era o de organizar uma viagem de finalistas e utilizar esse dinheiro para reduzir o custo de todos. No final foi escolhida uma viagem tão cara, que mesmo com ajuda só os mais abastados a poderiam suportar. Então esses acabaram por ir de viagem, e todo o dinheiro reunido por todos ao longo de anos serviu apenas para os mais ricos se divertirem. O argumento aquando da selecção dessa viagem mais cara foi: não podemos limitar a liberdade dos que têm mais dinheiro de escolher a viagem mais cara. Foi sem dúvida um dos momentos mais instrutivos na minha vida!

Há 9 anos escrevi um texto sobre o liberalismo onde se nota ainda alguma ingenuidade acerca do papel que os liberais atribuem ao Estado:
https://irresponsabilidadeilimitada.blogspot.com/2015/03/a-direita-e-as-reformas-estruturais-o.html

Finalmente, uma nota sobre uma publicidade que estava exposta aqui em Angra do Heroísmo (e noutros pontos do país), da iniciativa de um partido que se diz liberal. Dizia em letras garrafais: "nos países liberais os trabalhadores ganham mais". E juntava a imagem em estilo neo-realista de uma multidão manifestando-se de punho erguido, o que não deixa de ser de uma ironia extrema!

Segundo dados do Eurostat para os últimos dois anos, a proporção média dos salários no PIB rondava os trinta e tal por cento para uma série de países europeus.


Remuneração do trabalho / PIB (Eurostat)


Lembremo-nos que na óptica do rendimento o PIB é decomposto na soma dos rendimentos que remuneram o trabalho e o capital. Lembremo-nos que só o trabalho é que produz, inclusivamente só o trabalho produz capital (ao qual os marxistas chamam de "trabalho morto"), e que as remunerações do capital são no fundo a remuneração daqueles que não trabalham, mas em vez disso são os donos do trabalho morto feito no passado, normalmente por outros. E notemos enfim que mais de metade do PIB de todos os países listados em cima vai para remunerar os donos e não os que efectivamente produzem a riqueza.

Numa pesquisa na net por "países liberais" pode encontrar-se logo à cabeça uma lista dos "20 países mais liberais". Essa lista baseia-se na ponderação de três índices: (conforme o original em inglês) Financial Development Index, Economic Freedom Index, and Ease of Doing Business Ranking. Só pelo nome dos índices deve dar para perceber de que tipo de liberdade estamos a falar.

Nos primeiros cinco lugares dessa lista estão três países europeus: Suécia, Dinamarca e Irlanda. Se procurarmos no gráfico em cima a posição desses países na repartição do rendimento perceberemos que a relação entre liberalismo económico e "os trabalhadores ganharem mais" é um pouco ambígua. E se considerarmos os restantes 15 países da lista a conclusão mantém-se. De resto, em todos eles, mais ou menos liberais, o capital é mais remunerado que o trabalho.

É chegado o momento da introspecção. A que grupo sente o leitor pertencer: ao dos grandalhões no ringue de boxe, daqueles que têm muito dinheiro e querem fazer negócio para ganhar mais; ou ao dos que têm menos e precisam que o poder dos primeiros seja limitado?

Ou será que o leitor, pertencendo ao grupo dos que têm menos, acredita que "o que é bom para a economia é bom para si", que só com exploradores de escravos bem anafados é que irá sobrar alguma coisa para os escravos poderem comer sobremesa?

sexta-feira, 2 de fevereiro de 2024

Os partidos que não são de esquerda nem de direita...

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As guerras de palavras

Há em tudo, e desde sempre, uma guerra de palavras. Ou melhor dizendo, uma guerra semântica, sobre o significado das palavras, sobretudo quando estas assumem a função de símbolos. Não pretendo elaborar na semiótica da coisa. Mas todos sabemos da importância dos símbolos na existência e na história dos seres humanos. Para mim, contudo, os símbolos são sempre em parte atalhos do pensamento: permitem-nos saltar logo para conclusões, simplificam, apelam às emoções e evitam o raciocínio. Por isso mesmo eles são tão importantes na agregação dos seres humanos: são atalhos que afastam todas as pequenas ou grandes diferenças entre eles e apelam a um qualquer aspecto em comum. Ou pelo menos é nisso em que as pessoas acreditam, alheias ao facto de que cada símbolo é interpretado de forma única por cada pessoa.

O que é, afinal, o socialismo? Para os partidos de esquerda é uma coisa, para os de direita é outra, e para o partido socialista é ainda uma outra. E na cabeça de cada eleitor essa palavra terá um significado único.

Essa palavra, "socialismo", enquanto símbolo, pode servir para agregar pessoas em torno de uma causa comum. Ora, como com qualquer outro símbolo, por exemplo uma foice e um martelo, ou uma suástica, ou uma pessoa (sobretudo depois de morta!, seja o Che Guevara ou o Jim Morrison), os opositores a essa ideia, ou a esse movimento, vão lançar uma guerra sobre o seu significado. Se o símbolo é uma palavra, dar-se á início a mais uma guerra de palavras.

A guerra de palavras, para ser bem conduzida, não deve mostrar o seu propósito, não deve expor-se. Não se deve dizer algo como "os defensores do socialismo consideram que socialismo é tal e tal, mas eu considero que o socialismo significa antes aquilo e mais não sei quê". Um bom combatente neste tipo de guerras convence-se a si mesmo que o significado das palavras não é mutável e não depende da vontade dos seres humanos. Pelo contrário, ele passa a acreditar que o significado das palavras é objectivo e imutável. Como se fosse emanado de algo sobrenatural, um qualquer deus. Os antipopulistas, por exemplo, dirão que é urgente e importante combater o populismo, que o populismo é muito mau, por exemplo é mau para a "democracia" (outro símbolo), e associarão determinadas pessoas e movimentos com essa palavra. Contudo, será muito raro ouvi-los a explicar o que eles próprios entendem por populismo, e ainda mais raro ouvir um debate sobre potenciais diferentes significados atribuídos à mesma palavra.

E é assim que acabamos, sobretudo na política, numa guerra de palavras cacofónica onde ninguém se entende, mesmo quando julga que entende. O socialismo é uma coisa para uns e outra coisa para outros. O mesmo com o capitalismo e o comunismo e a democracia e a ditadura e representatividade e a estabilidade e a responsabilidade e a esquerda e a direita e o liberalismo... Ah, o liberalismo!... Os liberais não são libertinos! Nem libertários!... Isto é tudo muito confuso!

Os de direita são conservadores, dirão alguns. Outros dirão: os de direita são liberais. Mas como é que se conjuga liberalismo económico com conservadorismo?... Claro que é possível. Depende do significado que se dá às palavras e depende daquilo que se faz com esse significado em cada caso concreto – há sempre os que são uma coisa nisto e outra coisa naquilo! Muito liberais, muito liberais... e depois chegamos à extrema direita, onde temos os defensores do autoritarismo e das ditaduras! Ou serão antes os anarco-capitalistas os ultra-liberais de extrema direita?

À esquerda temos os libertários e os da ditadura do proletariado, os anarco-sindicalistas e os reformistas, para quem tudo se arranja com uma remodelação dos impostos. O comunismo tem a sua etimologia na palavra comum. No entanto, os combatentes do comunismo fizeram questão de associar essa palavra a autoritarismo. Com isso, ficaram desprovidos de palavra para as coisas que as pessoas fazem em conjunto, em comunidade, e passaram a falar de comunitarismo.

Ideologia é em si mesma uma palavra sujeita a intensas guerras. Ideologia é boa, ideologia é má, depende para onde quer que vá!

A economia

Com esta introdução não pretendia confundir. Pretendia alertar que os debates políticos estão pejados de pessoas que usam este tipo de guerra. E quando são bons combatentes, não explicam que a fazem. Simplesmente assumem a sua versão dos acontecimentos, e vai de evangelizar todos os outros com a sua palavra, a verdadeira palavra!

E com isto pretendo dizer que se queremos entender alguma coisa a sério, seja política ou outra coisa qualquer, temos de ser imunes às guerras de palavras e temos de ir às coisas concretas.

Concretamente a vida das pessoas gira à volta da economia, isto é, a forma como os seres humanos actuam e alocam recursos materiais às suas actividades de forma a suprirem as suas necessidades, e também a forma como distribuem os resultados dessas actividades económicas ou produtivas. Se estamos na montanha e temos sede e precisamos de ir buscar água à ribeira para matar a sede, tudo isso é economia. Tenha ou não tenha dinheiro à mistura. Podemos fazê-lo de forma complicada: instituímos na letra da lei essa coisa chamada de propriedade privada, arranjamos um proprietário e atribuímos-lhe a ribeira; o dono da ribeira compra garrafas de plástico e energia e, com esta, enfia a água dentro das garrafas e vende-as; o comprador da garrafa de plástico dá três passos para o lado e põe a garrafa à venda; o comprador seguinte faz o mesmo, até que chega a nossa vez de sermos compradores. Ou então fazemos a coisa da forma mais simples e vamos nós mesmos à ribeira matar a sede. De uma forma ou de outra, é economia.

Todos nós temos necessidade de comer e de beber. E de vestir e dormir e ter um abrigo. E de ter educação e saúde. Temos necessidade de conviver, de nos deslocarmos de um sítio para o outro, de conhecer, de fazer desporto, de nos expressarmos verbalmente ou através da arte, de reconhecimento ou retorno por aquilo que fazemos. Somos bichos carregadinhos de necessidades. Os arautos do capitalismo até dizem que são infinitas!

Concretamente a nossa vida é moldada pela forma como tentamos satisfazer essas necessidades. No mundo actual, raramente nós satisfazemos as necessidades por nossa conta, sem a ajuda de outras pessoas. Esse seria o caso de um Robinson Crusoe vivendo isolado numa ilha remota. Nós, pelo contrário, fartamo-nos de satisfazer necessidades com coisas que não seríamos capazes de fazer nós mesmos: comida, roupa, telemóveis, automóveis, etc. Se não somos capazes de fazer nós mesmos, compramos! E para comprar, precisamos de dinheiro.

Não tinha necessariamente de ser assim. O mundo nem sempre girou à volta do dinheiro. Mas a forma actual como os seres humanos organizam as suas actividades económicas é assim. Canta-se "money makes the world go round", não no sentido de que faz o planeta girar, mas que nos faz girar a nós no planeta... mas mesmo nessa acepção a afirmação não é correcta: se não houvesse dinheiro, os seres humanos continuariam como formiguinhas numa azáfama qualquer a tentar arranjar pão para a boca e coisas para se entreterem.

De onde nos vem o dinheiro com o qual compramos as coisas que utilizamos para satisfazer as nossas necessidades? Há quem o herde, há quem receba renda das suas propriedades, há quem receba dividendos dos seus investimentos, há quem tenha mais-valias de coisas que comprou a um preço e vendeu a outro maior, há quem receba juros de aplicações financeiras, e há quem trabalhe. Está tudo na declaração do IRS!

A maioria de nós recebe dinheiro de diversas fontes. Mas também a maioria de nós depende de forma crucial do seu trabalho para conseguir o dinheiro necessário para viver. A grande maioria de nós trabalha, ou já trabalhou, ou vai trabalhar. Seja por conta própria ou por conta de outrem. Seja como gerente ou como tarefeiro.

Os trabalhadores

Sendo a economia, na acepção que aqui fazemos dela, o conjunto de actividades mais importantes dos seres humanos, poderemos alegar que, no estado actual das coisas, na forma como actualmente organizamos essas actividades, a segmentação mais fundamental que se pode fazer entre as pessoas, se o quisermos, é esta: num segmento os que dependem do seu trabalho para satisfazer a maioria das suas necessidades; noutro segmento os que não dependem do seu trabalho.

Muitos analistas, teóricos e práticos, economistas, sociólogos, políticos, e quem mais se dedica a estas artes, chama a esses segmentos "classes". E é assim que surge a famigerada "classe trabalhadora": o segmento da população que depende do seu trabalho para conseguir satisfazer as suas necessidades. A classe trabalhadora inclui gestores, inclui empresários por conta própria, inclui pessoas que auferem juros, lucros ou rendas. E também inclui pessoas como eu, que não são gestores nem empresários nem auferem juros, lucros ou rendas. O que as pessoas da classe trabalhadora têm em comum é que têm de trabalhar, senão não conseguem ter dinheiro suficiente para viver.

Nestes termos, a classe trabalhadora é uma realidade objectiva. Ou seja, ela existe, independentemente do que pensemos sobre ela. Mais do que isso: a nossa pertença ou não a essa classe também é objectiva. Quer queiramos ou não pertencer à classe trabalhadora, se o nosso rendimento depende de forma decisiva do nosso trabalho, então pertencemos a essa classe. Isto é tão objectivo como separar as pessoas entre as que estão vestidas com calças e as que não estão: quer tenhamos consciência disso ou não, quer queiramos ou não, se tivermos calças vestidas, pertenceremos à classe dos que têm calças vestidas.

Há muitos anos escrevi um texto onde perguntava: onde é que estão os trabalhadores? A minha argumentação era de que a maioria das pessoas não se identificava como trabalhador, o que é o mesmo que dizer que não tinha consciência de pertencer à classe trabalhadora. Ter ou não essa consciência é o que os tais analistas chamam de "consciência de classe".

Tal como na guerra de palavras, os que combatem a noção de "classe", tal como a definimos, e a noção de "consciência de classe", argumentam, sem nunca declararem que estão a fazer guerra a uma ideia, que "estamos todos no mesmo barco". Porventura estaremos todos no mesmo barco. Depende do que entendemos por barco. Por exemplo, estamos todos no mesmo planeta. Mas objectivamente não estamos nesse barco da mesma forma.

 

A esquerda e a direita

Na política, a dicotomia esquerda-direita já assumiu, e continua a assumir, muitos significados. Em jeito de ressalva, diga-se que essa dicotomia não é suficiente para classificar cabalmente os partidos políticos, isto é, para formar conjuntos minimamente homogéneos de partidos. No Portugal de hoje, e na política, parece-me que os termos esquerda e direita se utilizam sobretudo para classificar os partidos, as atitudes, as medidas, como privilegiando a classe trabalhadora, no caso da esquerda, ou privilegiando a classe não trabalhadora, no caso da direita.

Ora privilegiar a classe trabalhadora é algo de que ninguém se deve envergonhar, e por isso mesmo os partidos de esquerda não se inibem de o apregoar. Pelo contrário, privilegiar a classe não trabalhadora é algo que certamente não será muito bem visto, e portanto não se houve ninguém a publicitá-lo. Não existe, nas ideias ou nos discursos, uma coisa chamada "classe não trabalhadora". Essa classe, que engloba todas as pessoas que não pertencem à classe trabalhadora, tem existência objectiva: note-se que, para além das pessoas que "vivem de rendimentos", também há trabalhadores que não pertencem à classe trabalhadora, pelo simples facto de que têm outros rendimentos que são suficientes para a satisfação das suas necessidades. Mas ninguém fala dessa classe, certamente com esse nome. Em vez disso, o nome que foi adoptado pelos combatentes das guerras de palavras é... economia!

De cada vez que ouvimos um discurso político que não privilegie explicitamente a classe dos trabalhadores, podemos estar bem seguros que vem de alguém que privilegia a classe complementar. E é assim que temos tantos discursos a bem da economia! "É bom para a economia!" ouvimos nós repetidas vezes. "A economia portuguesa precisa de..." é o mesmo que dizer "a malta que não pertence à classe trabalhadora precisa de...". Façam o exercício seguinte: de cada vez que ouvirem um discurso político, experimentem substituir "economia" por "a malta que não pertence à classe trabalhadora", ou outro nome com o mesmo significado, e vejam lá se o discurso não fica logo muito mais claro!

Estamos todos no mesmo barco

Esquerda, direita, classe trabalhadora ou não... afinal estamos todos no mesmo barco? A resposta clara é: não.

Há pessoas que gostam de trabalhar. E ainda bem! E dentro dessas, há aquelas que têm a sorte de efectivamente trabalhar no que gostam – que maravilha! Mas não tenhamos ilusões: a maioria dos trabalhadores levanta-se de manhã cedo e chega a casa ao fim do dia, cansado, depois de um dia inteiro às ordens, sem vontade própria, a fazer o que o mandam, porque precisa do dinheiro.

E para explicar de forma simples porque é que não estamos todos no mesmo barco, atentemos ao exemplo do trabalhador por conta de outrem, que é a situação da maioria dos trabalhadores. Ele trabalha para uma instituição, por exemplo uma empresa. No final de um período, por exemplo no final do mês, a empresa, fruto das vendas de bens e serviços produzidos pelos seus trabalhadores, tem um determinado proveito. Esse proveito é como um bolo. Uma fatia servirá para pagar os materiais. Outra fatia para pagar a electricidade e a água. Outra põe-se de lado e vai-se amealhando para daqui a uns anos substituir os equipamentos. E depois de pagar todas essas coisas, sobra uma parte do bolo, que corresponde ao "valor acrescentado" da actividade produtiva. Esse valor acrescentado, ou gerado, à força do trabalho directo e das máquinas que por sua vez foram produzidas por outros, serve para pagar quem o gerou: os trabalhadores... e o dono da empresa. Ora isto é trigo limpo: o que ficar com os trabalhadores não vai para o dono, e o que ficar com o dono não vai para os trabalhadores. Estamos todos no mesmo barco até que chega o momento de decidir como é que se vai repartir esse pedaço do bolo que ainda sobra, e nesse momento chega o dono e decide conforme lhe aprouver, sem ter necessidade de dar cavaco a ninguém!

A repartição do bolo do valor acrescentado é feita, quase sempre, e excepto talvez no caso das cooperativas, pelo dono daquilo tudo, que é quem tem o poder, porque é que tem o dinheiro. Os defensores da classe que incorpora os donos disto tudo dirão que as "forças de mercado" irão actuar de forma a atribuir um salário justo aos trabalhadores. Mas todos nós, que pertencemos à classe trabalhadora, sabemos que no mercado os trabalhadores têm um poder quase nulo, a menos que se reúnam em estruturas como os sindicatos... e mesmo assim!...

Esta é a realidade objectiva da vida da grande maioria de nós, quer tenhamos consciência disso ou não.

E nesta realidade, os partidos políticos afirmam-se como defensores de uns ou de outros. Quando chega a hora de repartir a fatia do bolo, uns defendem principalmente os trabalhadores, outros defendem principalmente os donos.

E depois há os partidos políticos que defendem toda a gente!

Os partidos que defendem toda a gente...

Os partidos políticos que defendem toda a gente, não defendem de facto toda a gente. No seu discurso defendem os bem-comportados. Defendem os trabalhadores que são bem comportados, isto é, aqueles que têm verdadeiro amor à camisola, que dão horas extraordinárias à empresa sem exigirem remuneração, que vão tirar cursos de aperfeiçoamento em horário pós-laboral às suas custas, que "dão o litro" no local de trabalho e que denunciam os trabalhadores que são preguiçosos. Dizem então "os bons trabalhadores merecem ser premiados!" e falam de meritocracia.

(Curioso, não é, como nestas guerras de palavras nós vamos tantas vezes para onde nos querem levar?... Castigar os maus e promover os bons... Quantos nomes e quantas formas isso já assumiu ao longo da história?)

Ao mesmo tempo, os partidos políticos que defendem toda a gente, também defendem os donos, mas só os que são bem comportados, isto é, os que não são corruptos. E novamente lá estamos nós nas guerras de palavras!

Afinal o que é "corrupto"? Uma possível definição, conforme o dicionário, é "moralmente vergonhoso". Mas será?...

Quando, na hora de dividir o bolo do valor acrescentado, o dono, que já tem mais do que o suficiente para viver bem, fica com a parte maior e paga o salário mínimo aos seus trabalhadores, será corrupto? Eu acho que o seu comportamento, infelizmente tão frequente, é moralmente vergonhoso. Mas nós geralmente não o consideramos corrupto.

Geralmente o termo corrupto é utilizado com uma acepção jurídica, segundo a qual o corrupto é aquele que age à margem (ou fora) da lei para benefício próprio. No nosso exemplo, o dono que paga mal aos trabalhadores não viola nenhuma regra legal, portanto não é corrupto, mesmo sendo moralmente vergonhoso.

Os partidos que defendem toda a gente, e não se apresentam como sendo de esquerda ou de direita, defendem os donos disto tudo, desde que actuem conforme a lei e não sejam corruptos. Fazem disso uma bandeira. Só não dizem, como ninguém diz, que são os donos disto tudo que fazem as leis e que, portanto, definem o que deve ou não ser considerado corrupto.

De facto, a nossa sociedade está pejada de acontecimentos moralmente vergonhosos, mas não é normal ouvir-se os partidos que não são de esquerda nem de direita a pronunciarem-se sobre isso. Para eles, geralmente, a moral vergonhosa é reservada para os "preguiçosos" da classe trabalhadora. E nós, sem discernimento para entendermos que as pessoas que pertencem à classe trabalhadora e não trabalham são quem mais sofre com isso, vamos atrás desse paleio e já acreditamos que os culpados de nós não estarmos melhor na vida são eles, e não quem fica com a nossa parte do bolo. Ou seja, de tanto papar a propaganda já nem conseguimos ver onde está verdadeiramente a vergonha moral desta sociedade, desta economia e desta política.

Alguns partidos que defendem toda a gente e que não são de esquerda ou de direita (segundo eles), afirmam-se contra "o sistema". Há partidos que não são assim, que dizem não ser de esquerda ou de direita, porque apoiam as propostas da esquerda ou da direita consoante lhes pareçam meritórias. Mas nos partidos que são contra "o sistema", é natural que digam que estão para lá, e talvez acima, dessas questões menores como a dicotomia esquerda-direita: afinal eles são contra a esquerda e contra a direita, a favor de uma limpeza geral... apesar de ninguém saber bem em prol do quê.

...afinal são de direita

Ora isto de não ser de esquerda ou de direita, de acordo com a acepção que lhe dei, nomeadamente a de privilegiar ou não a classe trabalhadora, é uma mentira. Apesar de tudo, os trabalhadores vão trabalhar, e quando chega a hora de repartir o bolo, o que não for para eles será para os donos e vice-versa. Os partidos que dizem não ser de esquerda ou de direita, e mesmo que se afirmem contra "o sistema", não querem mudar este sistema económico. Eles servem-se daquilo que para a maioria das pessoas constitui "o sistema", nomeadamente o conjunto de coisas, pessoas e instituições que são corruptos ou que impedem que a "economia" se desenvolva. Mas mudar o sistema económico é algo que nunca está no seu programa. Garantidamente.

O sistema económico que nós temos, que se chama capitalismo, não privilegia a classe trabalhadora. Portanto, sempre que um partido político se coloca à margem do debate esquerda-direita, ele está a ser conivente com o sistema que existe e está, assim, a privilegiar os donos disto tudo. Está, desse modo, a ser de direita.

Que quem tem fortunas defenda os partidos de direita, isto é, os partidos que defendem os afortunados, faz todo o sentido. Que quem depende do seu trabalho para ter dinheiro para viver vote em partidos que defendem interesses antagónicos aos seus é, isso sim, vergonhoso, sobretudo para os que têm consciência disso, como por exemplo os que publicitam que "nos países liberais se ganha mais", como se alguma vez fosse verdade que o liberalismo económico privilegiasse a classe trabalhadora! Isso sim, é vergonhoso! Se alguém acha que precisamos de uma limpeza, ela deveria começar precisamente pelos que enganam os outros para benefício próprio, mesmo que dentro da lei!