quinta-feira, 30 de abril de 2020

Crítica literária...

Aliterações, musicalidades,
métricas, ritmos e rimas,
palavras certas
mas de diversos sentidos,
simultaneamente concisas e ambíguas,
são ferramentas.

Mas a essência da poesia
é outra coisa.

E nunca a vi
em escaparates de ferramentas.



awf
Angra do Heroísmo
30/04/2020

Síndrome de domingo...


Sofro de síndrome de domingo
desde que foi decretado
o recolher obrigatório.

As ruas sempre são o único espaço
onde posso ser sem pedir desculpa,
sem pagar renda e sem ser por favor.

As ruas são veias de liberdade
que me transportam pelo corpo todo
à minha velocidade.

Mas o sangue do espaço
foi substituído pela combustão interna
e a velocidade dos outros
impôs-se à minha.
Sou agredido nos sete sentidos
pelos cheiros, pelos perigos,
pelos latidos
dos alarmes caninos,
pelos ruídos.

Excepto nestes dias
de recolhimento obrigatório,
onde obrigatoriamente me recolho
na minha casa:
nas ruas.

E temo a segunda-feira que virá.

awf
Angra do Heroísmo
30/04/2020





quarta-feira, 22 de abril de 2020

Liberdade de pensamento...

25 de Abril

Liberdade de pensamento.



Dia da liberdade. Dia das tretas tantas que nos atiram aos olhos e nos enchem a alma de barreiras a cada instante.

Em 1969 Manuel Freire cantava a letra de Carlos Oliveira que dizia "não há machado que corte a raiz ao pensamento". Quanta ingenuidade!...

Já é antiga a história que se conta da ave de rapina que foi criada com as galinhas e que quando cresceu não queria abandonar o galinheiro. São também antigos os ouvidos e as mentes de mercador que acolhem esta história.

Se alguém perguntasse à ave de rapina se era livre, ela responderia: faço tudo o que quero, portanto sou livre.

A liberdade que lográmos resultou mais das barreiras que aprendemos a colocar a nós próprios do que propriamente das nossas "conquistas". Aprendemos e aceitámos o nosso galinheiro. Pensar para lá de, é já de si, consideramos nós, abstruso.

Dizemos "utópico" não como um horizonte que conduza os nossos passos, mas como uma qualidade daquilo que não merece sequer ser considerado.

Dizemos "radical" não como algo ou alguém que vai às raízes dos assuntos, mas como uma qualidade daquilo que não merece sequer ser considerado.

Definimos como "bom" aquilo a que estamos habituados e asseguramo-nos do sentido disso afirmando que "no meio é que está a virtude", mesmo antes de conhecer a escala que alberga esse meio, e acabamos na virtude que está entre o correio da manhã e o expresso, ou na que está entre o instagram e o facebook.
Afirmamos que "o óptimo é inimigo do bom" para podermos ficar satisfeitos com a nossa mediocridade, sem reparar que com a mesma verdade o bom é inimigo do razoável, o razoável é inimigo do fracote e este é inimigo do muito mau, e nada disso faz qualquer sentido.

É livre quem vive conforme as suas opções, dizia em letras bem gordas por baixo de uma máquina de vending. Mesmo que a gama de possibilidades seja apenas a que é fornecida por essa máquina.
Quando era adolescente, a turma toda e a professora sentiram-se no direito de rir quando ousei proferir a palavra fraternidade.

Hoje, quando propomos aos dirigentes das instituições monetárias que decidem muito das nossas vidas uma qualquer alternativa dizem-nos "você não está a compreender... isto é assim". E nós retorquimos "sim, compreendo que é assim, mas porque é que é assim?". Ao que nos respondem "é assim porque é assim". E nós acrescentamos "sim, mas se é assim, porque é que não pode ser assado?". E a resposta é "porque é assim".

Na escola, aparentemente, não é assim. Aí exalta-se a criatividade. Fala-se de tempestades cerebrais e de pensamento fora do quadrado. Coloca-se a inovação num altar e estuda-se o que é necessário fomentar nos cérebros dos educandos para promover a sua capacidade de engrandecimento deste novo santo.

Depois, quando disse "professor, penso que devíamos desenvolver sistemas de transportes alternativos aos automóveis, que sejam mais económicos, mais eficientes, mais democráticos, mais seguros, menos perturbadores dos ecossistemas" o professor respondeu "as pessoas não vão querer isso".

Pensamento fora do quadrado sim, mas dentro do rectângulo que é o terreno do jogo, se faz favor!

"O dinheiro surge do nada!" é uma verdade objectiva que a liberdade de pensamento do senso comum não alcança.

Haverá algo mais radical do que perguntar: como é que acreditas naquilo que acreditas?...

Disseram-te que as papilas gustativas se dividiam em grupos, umas para o doce, outras para outros gostos, e que cada grupo se situava numa zona da língua. Mas tu testaste, a ver se era assim?

Disseram-te que a Lua tem um grande poder nas nossas vidas. Mas investigaste para tentar perceber que influenza era essa?

Disseram-te que é primeiro preciso gerar riqueza para depois a podermos distribuir. Mas não te lembraste de pensar se a riqueza que existe já é suficiente ou não, se deve ou não deve ser ela própria, e já, repartida de forma mais igualitária, ou se a sua repartição mais igualitária impede a geração de mais riqueza no futuro.

Disseram-te que tem de ser assim, que não há alternativa, e tu não indagaste.

Nem te chegaram a dizer claramente que a dívida não era para se pagar, era para se ir pagando, e tu nem reparaste.

Lutas na tua cabeça batalhas gloriosas contra os sistemas totalitários para poderes conquistar a liberdade de ires, todos os domingos, juntamente com todos os teus conterrâneos, ao centro comercial mais próximo. E aí, cantas hinos à liberdade de poderes escolher de entre os milhares de produtos cintilantes que te são "oferecidos".

Mas se te aparece um utópico radical livre à frente, sabes imediatamente que ele é o fruto da manipulação de algum grupo que nos quer fazer mal.



E quando alguém te diz que a tua incapacidade de pensar livremente é o fruto de uma economia meticulosamente construída, tu disparas a tua arma automática "lá vem este com as teorias da conspiração!".

Disseram muitos em tempos que só pode ser livre quem for culto.

Mas a cultura foi endogeneizada, homogeneizada, hidrogenada e solidificada num conjunto de questões e respostas sobre o ano em que Portugal se tornou independente, os títulos dos livros escritos por Eça de Queiroz, o clube de futebol que ganhou o campeonato de há três anos e todos os pormenores da vida íntima do fazedor de opinião do telejornal, seja ele o Marques Mendes, o Marcelo Rebelo de Sousa, o António Vitorino, o Miguel Sousa Tavares ou outro qualquer.

Nas faculdades de economia não se aprende a pensar a economia. Aprende-se a compreender e aceitar a economia que temos, fazendo os possíveis por evitar alusões a quaisquer alternativas. Porquê?

Nas nossas famílias aprende-se que uma vida boa é ter carro, casa, família e saúde. E aprende-se que para ter saúde, é melhor não contar com o sistema nacional de saúde. Que é melhor um seguro. E aprende-se que é melhor não contar com a reforma da segurança social. Que é melhor fazer um plano de "poupança-reforma". E aprende-se que as melhores escolas são as privadas. Que é melhor fazer um empréstimo para as propinas. E que é melhor trocar de carro a cada quatro anos, porque a partir daí eles começam a dar problemas. E aprende-se que devemos estar bem dispostos, mesmo que tudo nos esteja a correr mal, que temos de fazer parte da solução e não do problema, que as nossas relações de amizade são a melhor chave que possuímos para abrir as portas do sucesso. E o sucesso, todos sabemos o que é.

As crianças desenham num papel e nós perguntamos "o que é?". E preocupamo-nos se não for algo concreto, que faça parte da nossa própria liberdade, algo que possamos facilmente reconhecer.

Trabalhamos afincadamente para que a liberdade dos outros seja contida dentro das mesmas barreiras que a nossa.

E no dia que o calendário tem reservado para a liberdade, ai dela que se alastre!, todos regozijam da consciência partilhada de que liberdade é podermos comprar muitas coisas e dizermos o que nos apetece sem sermos levados a sério e sem levarmos cacetada da polícia.

Mas não nos ocorre que na Avenida da Liberdade somos chamados de peões, só podemos atravessar nas passadeiras, e só durante os curtos períodos em que um boneco de luz verde fica aceso dentro de uma caixa metálica.


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Sugestão de leitura:

Em pdf: https://www.rebelion.org/docs/121965.pdf
Ou em livro: https://www.wook.pt/livro/a-formacao-da-mentalidade-submissa-vicente-romano/187329


Sugestão de audição no próximo dia 25:
http://noticias.centromariodionisio.org/?p=6411