sexta-feira, 27 de dezembro de 2019

Os pais no Natal...



No Natal os pais fazem questão de transmitir aos seus filhos a ideia do Pai Natal. É uma ideia rebuscada. O Pai Natal é um personagem que vive na imaginação colectiva de milhões de pais, mas que estes têm dificuldade em situar de modo concreto. Falta uma bíblia que unifique, ou um sistema de certificação ISO9000 que standardize para todos a história do Pai Natal.

De facto, apesar dos pais acarinharem muito esta ideia, eles não são capazes de dizer, senão para eles próprios pelo menos de forma coerente no seu colectivo, de onde é que ele vem, onde mora, quem são os seus pais, que idade tem, o que é que representa, como é que actua... As poucas características unificadoras nesta história são algo como: é um ser que só existe no Natal, já que durante o resto do ano ninguém se lembra da sua existência, é velho, é homem, tem barba branca, não é magro, vem de um local qualquer frio e mais perto do Árctico e distribui presentes. É basicamente isto. E é melhor não entrar em detalhes sobre a sua função de distribuição de presentes, a única função partilhada neste imaginário colectivo, porque senão a coisa descamba: quantos presentes distribui, se é só para as crianças ou para toda a gente, onde é que vai buscar os presentes, onde é que os entrega... tudo temas de discórdia.

Apesar da ideia do Pai Natal ser assim uma coisa de contornos gelatinosos, muitos pais esforçam-se imenso para garantir que os seus filhos acreditem nessa ideia. Fazem então coisas que não repetem em mais ocasião alguma durante o ano: brincam com os filhos ao faz de conta, vestem roupas propositadamente idiotas, entram em casa pela janela, contam histórias...

No final, ficam fascinados com o modo como os seus filhos acreditam no Pai Natal. Ficam deliciados! Descrevem às visitas as provas que possuem dessa crença dos seus filhos, cheios de orgulho!...

E isto é tudo um pouco espantoso, quando se repara bem. Na verdade, os filhos nunca têm problema em acreditar em histórias fantásticas. Pegam num pau e de repente já é uma espada, pegam numa bola de ténis e é uma cabeça, em pedrinhas e são pães, num livro aos quadradinhos e são os animais que falam, vêm um filme e ficam logo a acreditar nalgum personagem exótico que existe sabe-se lá onde.
Ainda menos difícil é fazer os filhos acreditar em qualquer coisa que os pais lhes digam. Se os pais lhes falarem da existência do João Pestana, que vem atirar areia aos olhos das crianças quando começa a ser tarde, e elas começam então a esfregar os olhos e a bocejar, as crianças acreditam. Se lhes contarem que há por aí um Homem do Saco que pega nas meninas e meninos que andam perdidos na rua, longe dos pais, e os levam consigo dentro do saco para sei lá onde, elas acreditam.

Muito para além disso, se os pais disserem aos filhos que o mundo é plano, que Deus (qualquer que seja) existe, que o melhor clube do mundo é o Barcelona, que o melhor na vida é estar calado e continuar a trabalhar, que a felicidade é casar e ter casa e carro e filhos e um bom emprego e um bom nome, os filhos vão acreditar em tudo, sem pestanejar. Porque os filhos são assim, ingénuos, vêm ao mundo pouco apetrechados para os jogos manhosos dos adultos... E nesse sentido até é bom que os adultos os iniciem nessas andanças, se não queremos que as crianças sejam ingénuas a vida toda e continuem a acreditar em coisas que os prejudicam a vida toda.

Portanto, qual é o espanto de as crianças acreditarem no Pai Natal?... E qual é a beleza disso?... É belo que as crianças acreditem no Homem do Saco quando os adultos lhes garantem que esse personagem existe?... Então porque é que acreditar no Pai Natal é belo?... Será pelas ideias lindas que acompanham essa crença?... Quais?... Que as crianças bem comportadas recebem mais presentes que as mal comportadas?... A sério?...

Todo o fenómeno pode ser entendido se percebermos que as crianças são, em boa verdade os pais.

Fui a esse manancial de informação mal amanhada que é a Internet à procura de exemplos de textos que atribuam importância à crença no Pai Natal. Desafio-vos a fazerem o mesmo e a relerem esses textos na perspectiva de que os pais é que são as crianças. Tudo ficará mais claro, prometo!

Esbarrei logo num texto que se intitula “7 razões pelas quais acreditar no Pai Natal beneficia os seus filhos”. Vejamos então quais são essas sete razões:

  1. Boas Memórias. Acreditar no Pai Natal cria boas memórias e permite depois reviver essas boas memórias. Bom... isto é uma treta! Muitas crianças apanham um susto de morte quando vêem pela primeira vez um grande personagem barbudo e barrigudo a fazer de Pai Natal. Quem tem as boas memórias guardadas são os pais. E são eles que gostam de as reviver. E, de resto, se as boas memórias do Natal são a presença da figura do Pai Natal, isso diz alguma coisa acerca da riqueza do Natal desses pais.
  2. Imaginações mais fortes. Pois... para os pais. Os pais, coitadinhos, é que atrofiaram a máquina da imaginação, e tentam atabalhoadamente exercitá-la no Natal, inventando histórias para tentar conciliar as extremidades inconciliáveis dessa narrativa. Os filhos, por seu turno, nunca tiveram dificuldade em imaginar. Os pais é que, infelizmente (e digo isto com sentimento), nunca foram capazes de acompanhar os filhos nas suas viagens surreais.
  3. Tradição. E lá vamos nós para a treta da conversa acerca da importância das tradições... Vamos tentar sintetizar: existem ritos, actividades com regras definidas que se repetem de forma previsível no tempo e numa qualquer comunidade. Esses ritos dão às pessoas uma sensação de pertença, de sentido, blá blá blá. O que quem fala destas coisas parece esquecer sistematicamente é que ritos há muitos e para todos os gostos, que é quase impossível viver sem os ter, e que eles não são necessariamente bons ou maus em si mesmos. Dependendo no nosso juízo, alguns podem ser bons e outros maus. E, mais do que isso, um ritual que é extinto é quase sempre substituído por outro qualquer. As crianças são livros abertos. Ainda não foram iniciadas em quaisquer ritos. E portanto irão receber dos pais e da comunidade aquilo que os pais e a comunidade lhes quiserem dar. E é assim que irão criar a sua ideia própria acerca das “tradições”, que se não forem umas, serão outras. No momento em que são crianças, o Pai Natal não é para eles tradição alguma. O Pai Natal só é uma tradição para os pais.
  4. Motivação para bom comportamento. Se a motivação das crianças para se comportarem bem é poderem receber prémios no final, mal andamos em termos de formação de valores. Porque, para quem ainda não se apercebeu do efeito dos prémios, o valor que eles transmitem é de que vale tudo, desde que se consiga o prémio, e que aquilo que se faz no entretanto não tem valor em si mesmo, só o prémio tem valor em si mesmo. Neste ponto não se trata de os pais serem as crianças, trata-se de os pais serem educadores medíocres, muitas vezes exaustos de energia, de recursos e de fundamentos.
  5. Desenvolvimento de uma postura crítica. Diz-se que as crianças vão tender a testar a história, para tentar descobrir a verdade... Bom, isso em parte não é verdade, e em parte é irrelevante. As perguntas surgem naturalmente na cabeça das crianças quando partes da história parecem não encaixar com o conhecimento que elas têm da realidade. Se elas começam a imaginar o Pai Natal a voar num trenó e depois reparam que os trenós não voam... então formulam uma questão. Se os amigos da escola lhe dizem que o Pai Natal não existe, então formulam uma dúvida. Mas se não existir motivo para duvidarem, continuarão a acreditar tranquilamente durante a vida toda. Tal como os adultos acreditam que o dinheiro é o produto do seu trabalho (mesmo que neste caso os adultos tenham algumas razões para duvidar... mas os adultos são muito bons a ignorar razões). Por outro lado, é irrelevante o desenvolvimento do pensamento crítico das crianças a tentar descobrir a verdade acerca do Pai Natal, porque isso é apenas um episódio e as crianças desenvolvem efectivamente o seu pensamento crítico numa série infindável de episódios novos todos os dias. Novamente, parece-me que o que está em causa para os pais aqui é serem eles próprios a jogar o jogo do gato e do rato, o jogo de conseguir responder às dúvidas das crianças mantendo a sua crença durante o máximo tempo possível! Quase como se existisse um troféu para os pais que conseguem manter o segredo (ou a mentira) até os filhos serem adultos!
  6. Fortalecimento (ou lá como se traduz “empowerment”) das crianças. Diz-se que as crianças que entretanto percebem a treta acerca do Pai Natal passam a fazer parte da equipa dos pais, com a responsabilidade de manter o mito nos que ainda acreditam. É claro que os pais é que ficam felizes de colherem os frutos de anos e anos de tanto esforço: finalmente conseguiram criar um ser igual a eles, que irá engrossar a sua equipa!
  7. Enfatizar a alegria de dar. Bom, isto é simplesmente uma mentira e uma estupidez. Aquilo que é dado no Natal é-o independentemente da crença ou não no Pai Natal. Não conheço família alguma onde as coisas que são dadas no Natal mudem no momento em que as crianças deixam de acreditar no Pai Natal. A estupidez deste ponto é que o Pai Natal, ao centrar em si mesmo a glória da dádiva, retira essa glória a todas as pessoas que efectivamente a merecem!

Há que desculpar os pais pela sua falta de destreza a brincar com os filhos e a criar um imaginário colectivo de um mundo melhor... para não referir a sua inabilidade em lutar por isso... Mas este último ponto é aquele onde encontro mais dificuldade em desculpar a sua atitude. De facto, a magia do Natal, se existir, está no querermos bem uns aos outros, no acreditarmos na paz, está na dádiva não apenas material, mas do nosso tempo, do nosso calor, da nossa atenção (mesmo que depois haja o resto do ano...).

Tenho uma entrada no meu blogue dedicada ao disco de vinil “Os operários do Natal”. Todas as suas músicas nos contam, preto no branco, como as pessoas à nossa volta se dedicam e entregam o seu amor uns aos outros. Essa é a beleza do Natal!... E os pais, em vez de assumirem e transmitirem isso mesmo aos seus filhos, como a coisa mais bela de que somos capazes, preferem fazer de conta que não foram eles, afinal eles são os sacanas do costume, e foi tudo obra desse personagem enigmático chamado Pai Natal.

A terminar, gostaria de deixar esta questão: porque é que as crianças, depois de descobrirem que foram enganadas durante tantos anos, adoptam os mesmos comportamentos que os pais e fazem o mesmo aos seus filhos?... Soa-vos a alguma coisa?...

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terça-feira, 24 de dezembro de 2019

Merry Christmas, you suckers...


(Paddy Roberts - 1962)


(tradução em baixo)

Merry Christmas, you suckers, you miserable men.
That old festive season is with you again.
You'll be spending your money on cartloads of junk
And from here 'till New Year you'll be drunk as a skunk.

Merry Christmas, you suckers. It's perfectly clear
That you fall for it all a bit sooner each year.
If it goes on like this, you will find pretty soon
You're singing "White Christmas" as early as June.

The Christmas card racket
would cost you a packet.
Now there’s Ecards,an annual blight
The seasonal tweet
makes cards obsolete
And saves loads of cash if you’re tight.

You'll be taking the kids 'round the multiple stores
To be frightened to death by some old Santa Claus.
Then it's parties with spirits and "vino" and beer.
Merry Christmas, you suckers, and a Happy New Year!

Merry Christmas, you suckers, you bleary-eyed lot.
You'll never get rid of that headache you've got.
But I hope you'll feel splendid. you certainly should,
With your stomachs distended with turkey and "pud."

Merry Christmas, you suckers. Jump into your cars,
Roar off to your neighbors to "sink a few jars."
Though your vision is double, just keep smiling through.
There are others in trouble a lot worse than you.

Beyond any question,
Acute indigestion
Will plague you and make you unwell.
You won't take the warning.
You'll wake up each morning
Undoubtedly feeling like hell.

But, stick to it, suckers. Go swallow a pill,
For this is the season of peace and good will
While we patiently wait for that nuclear blast.
Merry Christmas, you suckers. It may be your last.



(tentativa de tradução às três pancadas)

Feliz Natal, seus idiotas, seus miseráveis.
Esta velha época festiva está novamente convosco.
Ireis gastar o vosso dinheiro em carradas de tralha
e daqui ao ano novo estareis podres de bêbedos.

Feliz Natal, seus idiotas. É perfeitamente claro
que vocês caem nessa um pouco mais cedo a cada ano
Se continuarem assim, irão descobrir em breve
que estarão a cantar "White Chirstmas" em Junho.

A negociata dos cartões de Natal
custa-te uma fortuna
Cada época parece maior
Os postais são tão giros
mas não têm nada a ver
com o assunto em questão.

Irão levar os miúdos às lojas
para se assustarem de morte por um qualquer Pai Natal
Depois há festas com vinho e licores e cervejas
Feliz Natal, seus idiotas, e um feliz ano novo!

Feliz Nata, seus idiotas, que não enxergam a ponta dum chavelho
nunca se livrarão dessa dor de cabeça
mas espero que se sintam estupendos. Sem dúvida que deveriam
com os vossos estômagos distendidos com perú e bolo rei.

Feliz Natal, seus idiotas. Saltem para os vossos carros
Acelerem até aos vossos vizinhos para afundar mais uns copos
Apesar de já verem a dobrar, continuem a sorrir
há outros em muito pior estado que vós.

Sem dúvida
indigestão aguda
irá afligir-vos e fazer-vos sentir mal
Não ouvireis o conselho
Acordareis todas as manhãs
inquestionavelmente no inferno

Mas aguentem-se, idiotas. Engulam um comprimido,
Pois esta é a época da paz e da boa vontade
Enquanto esperamos pela explosão nuclear
Feliz Natal, seus idiotas. Poderá ser o vosso último.


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Complemento:

A minha loucura...

Porque metade de mim é o que grito.
Mas a outra metade é silêncio.

Poema "metade" de Oswaldo Montenegro:


domingo, 22 de dezembro de 2019

Lareiras e salamandras...

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Chegou o Inverno. Esperamos frio, embora hoje em dia já não se saiba bem o que esperar... Com o frio procuramos soluções para nos aquecermos. E entre elas estão as soluções que passam pela queima de madeira, geralmente lareiras e salamandras, mais ou menos sofisticadas.

Há quem acredite que o aquecimento através da queima de madeira é melhor do que outros métodos de aquecimento, num sentido lato, porque é natural. Mas não é. E neste artigo eu pretendo desmistificar um pouco este assunto.

Sem entrar em grandes detalhes sobre o processo de combustão, podemos imaginar que ele é um processo que requer um combustível, neste caso a madeira, um comburente, neste caso o oxigénio do ar, e que produz gases, cinzas e calor.

A combustão liberta energia, através de calor, de duas formas: condução/convecção e radiação. A condução e convecção aquece os gases libertados e o ar envolvente e forma uma corrente de ar que será ascendente, se não for forçada. Essa corrente de ar é necessária para que a combustão se mantenha, pois é desse modo que o comburente/oxigénio é renovado. Se tentarmos impedir a corrente de ar gerada pela combustão, a chama diminui e pode mesmo apagar-se.

A radiação emite calor como uma lâmpada emite luz, ou seja, em todas as direcções, através do ar, e à distância. Quando estamos num ambiente frio, de frente para a madeira a arder, sentimos o calor na parte da frente e o frio na parte de trás. Mas basta-nos colocar uma mão à frente da cara e deixaremos de sentir o calor na cara, do mesmo modo que a mão tapa a luz que nos ofusca.

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A corrente de ar gerada na combustão renova, conforme vimos, o oxigénio necessário à sua manutenção. Mas o que é que acontece aos gases quentes aí gerados? Ora, toda a gente sabe que os gases quentes saem pela chaminé para o exterior da casa.

Aquilo de que poucos se lembram é que todos os gases quentes que saem pela chaminé têm de ser substituídos por outros quaisquer gases no interior da casa. A saída dos gases pela chaminé cria uma baixa pressão no interior da casa. Consequentemente, a casa funciona como um aspirador do ar do exterior. E assim, o ar frio do exterior vai entrar por todas as frinchas disponíveis nas portas, janelas e outros orifícios. Esse ar frio vai contribuir para arrefecer a casa.

Por outro lado, o ar que alimenta a combustão na lareira ou salamandra não é ar frio que acabou de chegar do exterior. Antes é ar quente, que está no ambiente contíguo à lareira ou salamandra. Portanto, não só os gases quentes da combustão fazem com que o ar frio do exterior penetre na habitação, mas também contribuem para que o ar quente seja expelido, juntamente com os gases da combustão, através da chaminé.

O efeito líquido da energia libertada pela lareira e das correntes de ar geradas pode até ser negativo, resultando que a lareira contribua mais para arrefecer a casa do que para a aquecer!... Mas quem está nessas circunstâncias vai garantir que isso não é verdade, sobretudo porque quando a lareira está acesa, as pessoas se mantêm junto a ela. No entanto, as outras divisões da casa podem estar a ficar mais frias à custa disso!...

Sabendo disso, quem se preocupa com a eficiência energética (o que inclui uma proporção crescente de consumidores e consequentemente de produtores de lareiras e salamandras) tenta desenvolver métodos para aumentar a eficiência energética deste tipo de aquecedores.

Os recuperadores de calor, criados para esse fim, podem ser muito ou pouco sofisticados, mas basicamente fazem todos as mesmas duas coisas: limitam a corrente de ar que flui para a combustão e maximizam a transferência de calor dos gases da chaminé para o interior da habitação, antes de finalmente serem libertados no exterior.

A limitação da corrente de ar que sustenta a combustão é conseguida basicamente através da inserção da zona de chama num cubículo hermético com aberturas pequenas e reguláveis. O efeito evidente desta medida é que a combustão se torna mais lenta. Mas não só a combustão se torna mais lenta, como acaba por ocorrer num ambiente pobre em oxigénio, e isso tem consequências prejudiciais, conforme veremos mais adiante. Infelizmente, há ainda um terceiro efeito, que é a limitação da transferência de calor por radiação. De facto, a radiação emitida pela combustão é interceptada pelo material que constitui o cubículo onde a zona de chama foi inserida. Felizmente este efeito não é geralmente muito relevante, uma vez que os materiais utilizados na parte exposta da lareira ou salamandra são escolhidos de modo a permitir a passagem de grande parte da radiação ou a emissão de nova radiação.

Acerca da emissão de nova radiação, há um assunto que é muito relevante e muitas vezes é negligenciado pelos vendedores, instaladores e utilizadores de salamandras. As salamandras são, nada mais nada menos, do que lareiras com recuperadores de calor. A limitação da corrente de ar é conseguida fechando a chama no interior de um cubículo, muitas vezes de ferro fundido, e a transferência de calor dos gases de combustão para o interior da casa, antes de serem expelidos para o exterior, é conseguida através de longas chaminés expostas no interior da casa. Ora, o objectivo destes grandes tubos que constituem a chaminé é, para além de gerar uma boa "tiragem", mesmo esse: o de transmitir calor. Esse calor é transmitido por condução/convecção, mas também por radiação. Mas se a chaminé foi construída em aço inoxidável ou outro metal prateado, polido, espelhado... então a radiação emitida pela chaminé baixa para praticamente zero! Ou seja, as chaminés prateadas acabam por expelir os gases para o exterior sem deles ter extraído o máximo calor possível. Para evitar isso, há que substituir ou pintar a chaminé, de modo a fazer com que o seu aspecto exterior seja preto, tal como o material da própria salamandra.

A recuperação do calor dos gases de combustão, antes de serem expelidos para o exterior, pode assumir muitas formas: pode incluir permutadores de calor ar-ar com ventilação forçada, pode incluir permutadores de calor ar-água e um sistema que depois faz circular a água quente pela casa... Mas a eficiência energética destes sistemas pode medir-se sempre do mesmo modo, nomeadamente através da temperatura dos gases no momento em que são expelidos para o exterior, na extremidade da chaminé. Quanto menos quentes os gases saírem, mais do seu calor foi transferido para o interior da casa e mais eficiente será a salamandra ou lareira.

No entanto, e este ponto é importante, os gases têm de ser expelidos sempre quentes, caso contrário não haverá corrente de convecção a alimentar a chama, e eles têm de ser substituídos no interior da habitação por gases frios que vêm do exterior. A eficiência máxima, nestes casos, será conseguida se o ar frio que é sugado do exterior for conduzido directamente para a zona da chama através de uma conduta própria, ou seja, se a alimentação de ar para a lareira ou salamandra for feita directamente do exterior, através de um tubo próprio para esse efeito.

Em geral, portanto, a eficiência energética das lareiras e salamandras não é muito elevada.

Comparemos, se quisermos, com a eficiência energética de um aquecedor normal. A eficiência de transformação da energia consumida em calor que fica no interior da casa é de 100%.

Teremos, se quisermos ser honestos, de considerar a eficiência energética na produção e transporte da própria energia eléctrica. No entanto, na senda da honestidade, teremos também de considerar a eficiência energética na produção e transporte do material combustível (lenha ou derivados) utilizado na lareira ou salamandra.

Imaginemos que a produção de energia eléctrica é conseguida através da queima de carvão, em centrais termoeléctricas. Nesse caso, a eficiência energética da transformação do carvão na central é muito superior à eficiência energética da queima do carvão numa lareira. Basta pensarmos que as centrais termoeléctricas são enormes, estão quase sempre ligadas e são construídas empregando toda o conhecimento do estado da arte no que respeita a eficiência energética.

Mas grande parte da energia eléctrica que consumimos não é, felizmente, produzida em centrais termoeléctricas. E isso contribui para que esta energia possa ser um pouco mais limpa do que a que é produzida em centrais termoeléctricas.

O transporte da energia eléctrica implica perdas de eficiência, claro. Mas pensemos no que é necessário fazer até termos o combustível em nossas casas, à espera de ser queimado. O material precisa de ser recolhido (atráves de corte ou outro método), embalado e transportado. E tudo isso implica perdas de energia.

Ou seja, podemos entrar aqui em grandes discussões sobre o que é mais eficiente ou menos em termos energéticos, aquilo que tem mais impacto ou menos em termos de emissão de carbono para a atmosfera, ou medidas afins sobre a "amizade" ao "meio ambiente". As respostas nunca serão fáceis, se quisermos ser exaustivos. As barragens têm grandes impactos ambientais, as eólicas custam imenso a ser produzidas e instaladas, o corte da madeira exige energia só por si, etc...

Quem é fã de soluções mais naturais poderá ter em mente o caso "natural" em que o indígena vai de machadinha colher uns galhos ao mato que depois arde na sua lareira. No entanto, a produção de material combustível para lareiras é uma indústria em si mesma, muito distante desse conceito "natural" das coisas. Acreditar que essa indústria é boa para o ambiente é o mesmo que acreditar que a indústria da pasta de papel é boa para o ambiente, simplesmente porque à sua conta são plantadas enormes extensões de eucaliptos que, afinal, são árvores.

Temos que nos desenganar... em relação a isto e em relação a muitas coisas. Por exemplo, acerca do conceito de "floresta". Uma plantação de árvores, sejam elas quais forem, não é uma floresta. Ou não devia ser considerado uma floresta. Ou então, precisamos de outros termos para não nos confundirmos acerca das coisas. Todo o discurso oficial que podemos ouvir nos "media" nos fala de florestas quando se refere a plantações de pinheiros, eucaliptos ou outras árvores. Deixo ao vosso critério investigar as potenciais diferenças entre uma plantação e uma floresta não tocada pelo homem (se isso existir).

Portanto, provavelmente as lareiras e salamandras são energeticamente menos eficientes que um simples aquecedor.

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Segundo ponto: o trabalho que dão.

Creio que este ponto é consensual: as lareiras e salamandras dão muitíssimo mais trabalho a instalar e a manter do que um simples aquecedor eléctrico. Não se podem mover, obrigam-nos a operações de limpeza de cinzas e chaminés em posições não muito cómodas, implicam o transporte do material combustível até elas, quando estão ligadas implicam o nosso cuidado permanente... Enfim, são uma trabalheira!

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Terceiro ponto: os efeitos no ambiente.

A discussão sobre a eficiência energética já implica algum efeito sobre o meio ambiente. Nesse ponto também se abordou, embora superficialmente, a questão das plantações de árvores necessárias à produção de material combustível (alguma relação com os incêndios?...).

No entanto, os problemas ambientais gerados pelas lareiras e salamandras não se situam apenas a montante.

Os gases de combustão gerados pelas lareiras e salamandras são muitos e alguns são muito tóxicos!

Todas as combustões têm potencial para gerar gases tóxicos (aliás, tudo o que é demais é tóxico, mesmo o oxigénio). Mas as combustões das lareiras e salamandras são as piores, por dois motivos.

Em primeiro lugar, os combustíveis utilizados não são muito puros. Um hidrocarboneto, por exemplo uma molécula de butano (C4H10) ao arder completamente na presença de oxigénio gera moléculas de água (H2O) e de dióxido de carbono (CO2). No entanto, os materiais utilizados como combustível nas lareiras e salamandras não são tão puros como o gás butano que sai das garrafas. Em vez disso contém imensas impurezas, isto é, outras substâncias e elementos químicos. Assim, o resultado da sua combustão gera também óxidos de azoto e óxidos de enxofre, entre outros. Estes óxidos têm o potencial de causar sérios problemas de saúde nos humanos e demais animais, mas também de contribuir para a acidificação das chuvas.

Além disso, a combustão de materiais impuros gera também uma grande quantidade de partículas sólidas em suspensão e um conjunto potencial de outros poluentes, entre os quais dioxinas. Deixo um link sobre estes últimos:
https://en.wikipedia.org/wiki/Dioxins_and_dioxin-like_compounds

Em segundo lugar, a combustão nas lareiras e salamandras ocorre geralmente a temperaturas inferiores às temperaturas que ocorrem por exemplo numa caldeira de uma central termoeléctrica, e em ambientes menos ricos em oxigénio. A consequência inevitável disso é que a combustão é geralmente incompleta. E isso gera os seus próprios poluentes, entre os quais o monóxido de carbono.

De facto, o monóxido de carbono é um gás que pode ser queimado, na presença de oxigénio, para produzir dióxido de carbono. Mas se a temperatura for baixa e/ou não existir suficiente oxigénio, o monóxido de carbono não se transforma.

Repare-se que os recuperadores de calor têm por objectivo precisamente a queima mais lenta, a menor temperatura e com menos afluxo de ar!

É sobejamente conhecido o problema das intoxicações mortais com monóxido de carbono. A questão é que mesmo que a ventilação do espaço interior e o sistema de exaustão estejam a funcionar em pleno, o monóxido de carbono não desaparece: apenas é transportado para o exterior da habitação!

O resultado do que acabou de ser dito pode ser sentido na pele, e nos pulmões, por quem viaja numa noite fria para uma qualquer aldeia recôndita no fundo de um vale. O ar frio é mais denso e tende a descer. Durante a noite, na ausência do aquecimento solar que provoca correntes convectivas, o ar frio desce da montanha e acumula-se no fundo dos vales, podendo gerar-se inversões térmicas, isto é, situações em que o ar aquece com a altitude (ao contrário do que é mais normal). Um dos efeitos das inversões térmicas é o aprisionamento dos gases nessa câmara de ar frio.

Assim, nessas noites frias de inverno, as partículas sólidas e gases gerados nas lareiras das casas ficam aprisionados no fundo do vale, criando uma camada de névoa sobre a aldeia. Quem lá chega de carro ficará provavelmente feliz ao abrir a porta e sentir o cheiro à lareira... No entanto, em termos de saúde e ambientais, o odor agradável tem um revés tremendo.

Deixo apenas uma de muitas possíveis páginas na Internet a abordar este assunto:
https://www.nrcan.gc.ca/energy-efficiency/energy-efficiency-homes/combustion-gases-your-home-things-you-should-know-about-combustion-spillage/18639

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Quarto ponto: as bombas de calor.

Um aquecedor transforma a energia que lhe é fornecida (química, no caso da lareira, eléctrica no caso de um aquecedor eléctrico) em calor. A eficiência de um aquecedor é máxima (100%) quando o aquecedor transforma 1 unidade de energia em 1 unidade de calor que fica no interior da habitação.

Uma bomba de calor funciona de modo bastante distinto. As bombas de calor utilizam a energia não para aquecer, mas antes para transferir energia térmica de um lugar para outro. Se o conceito parece difícil de apreender, pensemos num frigorífico. O frigorífico arrefece o seu interior, transferindo o calor do lado de dentro para o lado de fora. Uma vez no lado de fora, o calor é dissipado na serpentina que se encontra geralmente na parte de trás do frigorífico. Assim, um frigorífico acaba por aquecer a sala onde se encontra. E se perguntarmos como é que aquece, a resposta é (em parte) que transfere calor do interior para o exterior. Talvez possa parecer estranho que o frigorífico vá buscar calor precisamente ao local que está mais frio, para o transferir para o local que está mais quente, mas é exactamente isso que ele faz.

Um ar condicionado faz exactamente o mesmo: no calor do Verão transfere a energia térmica do interior da casa (que está mais fria) para o exterior (que está mais quente).

No frio do Inverno é possível colocar estes mecanismos a recolher o calor no exterior da casa para o depositar no interior da casa.

A grande vantagem deste método sobre os aquecedores tradicionais é que enquanto nestes últimos uma unidade de energia transforma-se numa unidade de calor, nas bombas de calor uma unidade de energia pode transformar-se em mais de seis unidades de calor. Efectivamente, dependendo da qualidade do aparelho em causa, é fácil encontrar no mercado bombas de calor que são cinco vezes mais eficientes que um aquecedor tradicional.

Qual é a contrapartida?... Tem de haver um lado negro, não?... Não, na verdade não há lado negro. As bombas de calor (por exemplo ares condicionados utilizados para aquecimento) são significativamente mais caros de instalar e manter do que um aquecedor eléctrico simples. No entanto, não são necessariamente mais caros de instalar que uma lareira ou uma salamandra. E como vantagens são mais fáceis e baratos de manter, energeticamente muito mais eficientes, menos poluentes, menos perigosos e ligam-se e desligam-se premindo um botão.

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Quinto e último ponto: what's the point?...

As lareiras e salamandras são aparentemente mais simples, mais naturais e mais agradáveis... Mas sê-lo-ão mesmo?...

Na verdade, suspeito fortemente que dentro de cada homo sapiens existe um pirómano. Nós aparentemente gostamos do fogo. E gostamos de gostar do fogo. Por exemplo, rejeitamos o cheiro de muitos fumos, mas aprendemos a gostar do cheiro do fumo da lareira, mesmo que nos faça mal à saúde. Gostamos da cor das chamas, entre o vermelho e o amarelo, gostamos do dançar das chamas, acarinhamos a ideia nos agregarmos em torno de um pequeno sol (mesmo que o sol funcione de forma muito diferente).

E é assim que ao longo da vida tenho encontrado pessoas que, quando confrontadas com os dados que atrás exponho, tentam justificar perante si próprias e os outros a sua opção pelo aquecimento através de uma lareira ou uma salamandra. Mas não deviam precisar de grandes esforços, porque a justificação é simples: nós optamos pelas lareiras e pelas salamandras porque gostamos do fogo! Não é porque são mais baratas, mais simples, mais seguras, mais amigas do ambiente ou seja o que for. É porque nós gostamos do fogo.

Dito isto, eu acredito que devemos ser responsáveis pela nossa casa, num sentido lato, e assim devemos informar-nos sobre as coisas e a partir daí tomarmos as decisões que acharmos mais convenientes.

Entre elas está sempre também a opção de construir casas com melhor isolamento e com permutadores de calor ar-ar, vestir roupa mais quente, beber líquidos quentes e ser menos sedentário. Mesmo que eu próprio, para escrever este texto, tenha de ter estado sentado, parado, durante umas horas...


quinta-feira, 12 de dezembro de 2019

É assim na vida...


Gostávamos muito de doce de framboesa
e deram-nos um prato com mais doce de framboesa
do que era costume
mas
a nossa criada e a nossa tia-avó no doce de framboesa
para nosso bem
porque estávamos doentes
esconderam colheres do remédio
que sabia mal
o doce de framboesa não sabia à mesma coisa
e tinha fiapos brancos
isso aconteceu-nos uma vez e chegou
nunca mais demos pulos por ir haver
doce de framboesa à sobremesa
nunca mais demos pulos nenhuns
não podemos dizer
como o remédio da nossa infância sabia mal!
como era doce o doce de framboesa da nossa infância!
ao descobrir a mistura
do doce de framboesa com o remédio
ficámos calados
depois ouvimos falar da entropia
aprendemos que não se separa de graça
o doce de framboesa do remédio misturados
é assim nos livros
é assim nas infâncias
e os livros são como as infâncias
que são como as pombinhas da Catrina
uma é minha
outra é tua
outra é de outra pessoa

Adília Lopes
1988
in Obra, Mariposa Azul, 2000

sábado, 16 de novembro de 2019

Fugir para a frente...

(a história de quem sabe onde quer ir)

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Estou fechado num espaço predominantemente metálico. Há imensas pessoas que também aqui estão presas. Posso sair, se quiser, mas isso tem um custo, o custo de ter de deambular neste universo muito próprio durante bastante tempo e de ter de aguardar em filas até poder dar mais um passo rumo ao portal. No portal despimo-nos, tiram-nos tudo, e passamos, nós e as nossas coisas, através de máquinas que nos bombardeiam com radiação à procura de algum indício de que iremos atentar contra a sua ordem das coisas.

Não quero sofrer esse custo. Prefiro ficar. Mas ficar também não é fácil. A roupa não se adequa. Para além da que não coube na mala e que vai pendurada onde puder ser, há a que trazemos no corpo, própria para os cinco graus que fazem lá fora, mas não para os vinte e cinco que fazem cá dentro. Deambula-se neste universo muito próprio. Cruzamo-nos com imensas pessoas, de todas as cores, de todas as línguas, idades, religiões... ficamos com a sensação de que está cá todo o mundo e perdemos a consciência que há um outro universo de gente distinta lá fora.

Entre estas pessoas todas há algumas muito bonitas. Muito aprumadas, muito prezadas, as formas bem definidas e a roupa a permitir que se note. Roupa limpa, geométrica, cabelos sedosos. Algumas em passada acelerada até à próxima escada rolante. Outras paradas, de pescoço dobrado e olhar para baixo, para coisas de plástico.

Ninguém quer saber de nós. Os olhares não se cruzam. Não há sorrisos. Uns têm ar aborrecido, outros têm ar pasmado... mas ninguém quer saber de nós. Somos demasiados, não faria sentido cumprimentar cada pessoa que encontramos nestes corredores. Não chegaríamos a lado nenhum... e todos nós estamos neste universo precisamente porque sabemos que queremos muito chegar a algum lado. Por isso não perdemos tempo a falar com ninguém. Como ontem ao fim da tarde o senhor que descansava junto à Ponte Mocho me perguntou, mesmo sem eu o conhecer de lado algum, se tinha subido ao miradouro de Ledesma para ver as pontes e o rio, a uns três quilómetros de distância dali, do sítio onde conversávamos.

Neste universo os estímulos são por demais. Só não te pousam a mão no corpo como quem o quer agarrar, e deslizar sobre ele, para o sentir e o fazer sentir. Mas vontade não lhes falta! Obrigam-te a ziguezaguear por jardins de odores intensíssimos e que não se cheiram no universo de lá de fora. O teu olhar salta de um ecrã brilhante e em constante movimento para aterrar numa montra onde tudo é ouro... Fujo para ecrãs dignos de Wall Street, esplanadas troantes dignas de estádios, reclamos das mais belas luzes produzidas em fábricas do outro lado do mundo.

Ontem Monleras estava lindíssima. Silêncio... e pousado nele o piar do chapim real. O pequenito rei distingue-se das outras aves por uma manchita amarela e uma pinta azul. Não brilham, nem piscam. A paisagem compunha-se das mais subtis variações de castanho, verde e cinza, sob um céu azul e branco. Uma vastidão... e nela, os pequenitos frutos do pilriteiro, por serem vermelhos, são imediatamente identificados. Tal como o pio do chapim naquele silêncio.

Aqui os estímulos entram-te pelos sentidos e instalam-se no cérebro e no corpo todo, sem dares por isso.

Tento descansar o olhar. Procuro a linha do horizonte. Mas não a encontro. Este universo metálico só tem interior. Não se vê o chão. Não se vê o céu. Já nem sabemos se afinal eles se tocam...

Deambulo. Sinto-me mal. Sinto-me estúpido. Desligado. Irreal... E, de repente, noto que já ando mais apressado. Tenho ânsia de horizonte! Afinal é lá que dizem que está a utopia!

Finalmente encontro! Um horizonte de asfalto e blocos de apartamentos encontra um céu gasto para lá das caudas dos aviões que me ficam à frente do nariz, logo depois de espessos vidros, barreiras entre universos, apenas furados aqui e ali por uma espécie de túneis do espaço-tempo, por onde entram e saem as pessoas que sabem onde querem ir.

Não era nada disto que eu queria... Agrava-se a sensação de clausura e privação. Desisto de procurar um universo mais aprazível aqui dentro e penso em criar o meu próprio universo. Procuro uma mesa. Munido de objectivo, agarro nas tralhas e arrasto-as pelos mais longos corredores. Sinto-me descobridor em caravela, solto as velas, e vou para um lado qualquer, à procura, à procura, à procura... e pum! Mais uma vidraça. Não encontro a mesa. Caravela em inversão de marcha. Se não dá para um lado, dá para outro! E vou, e vou, e vou... e pum! Mais um túnel no espaço-tempo para um universo onde, mesmo que quisesse ir, os respectivos guardiões não me permitiriam.

Agora sinto que já procurei as chaves em todo o lado, até dentro do frigorífico... Já nem me lembro que existe paz... Aquela vastidão... julgamo-nos senhores do espaço e de repente reparamos lá em cima, muito por cima de nós, pairando na maior precisão e no menor esforço, os majestosos grifos. As vacas olham para nós com o mesmo espanto com que nós olhamos os grifos. Quando ganham confiança regressam ao pasto, e nós seguimos o nosso caminho. Olhamos para cima e os grifos já não estão lá. Como é possível?... Sem um som, sem mexer uma asa, a vastidão dos céus até onde os nossos olhos alcançam... e já não estão lá!

Aqui não há mesas.

Mentira! Há mesas no estádio!... Mas tenho de comprar bilhete. Opto... porque afinal "é livre quem vive conforme as suas opções", mesmo que as possibilidades de escolha tenham sido definidas à partida por outros e não incluam nada daquilo que verdadeiramente queríamos... mas que entretanto as luzes brilhantes já nos fizeram esquecer... opto por uma baguete com umas fatias de qualquer coisa lá para dentro. Tem um nome qualquer que já esqueci, mas digno de um príncipe, e o preço está a condizer. Mesmo que um príncipe nunca comesse uma baguete que, para poder ser mordida, implicasse abrir a boca como um crocodilo, mostrando a mais bela dentadura, salpicada de magníficos pedacitos intersticiais que sobraram da mastigação anterior.

O bilhete dá-me acesso a uma mesa no estádio. Retiro da mala os pincéis para o meu universo alternativo: auscultadores bluetooth, app de mp3 no telemóvel inteligente, computador portátil, modem 4G. Dobro o pescoço, viro o olhar para baixo, para o plástico e, mesmo sem querer, entro de cabeça neste mesmo universo de onde tento fugir.

PS – E ainda há quem se vanglorie de fazer parte disto!...

quinta-feira, 19 de setembro de 2019

Congruências...

Lisboa, fim do dia 24 de Junho de 2019.

Um restaurante a dizer "fechado" com a porta aberta e turistas comendo dentro.

Um tocador de viola na rua, ao lado de um sinal da Via Verde a dizer "não pare para pagar".

Uma inscrição na pedra de lioz do passeio à entrada da sede do CDS diz "somos contra a exploração do homem pelo homem".

O ministro das finanças diz que o sistema nacional de saúde está melhor agora que em 2015.

sexta-feira, 6 de setembro de 2019

Doente de...

Apeteceu-me dizer "doente de gente". Mas a gente não é apenas uma doença, é também uma razão de viver.

Apeteceu-me dizer "doente de civilização". Mas a civilização não é apenas uma doença. Também é música.

Sei lá de que estou doente eu... Estou cansado do ódio, estou cansado da ignorância, estou cansado do medo, estou cansado da pequenez...

Estou cansado dos discursos contra... Estou cansado dos discursos contra os cabrões que se aproveitam do ódio, da ignorância, do medo, da pequenez, para proveito próprio... quando cabrões assim sempre houve, e o que era preciso era sabermos viver nós, por nós, sem os cabrões, sem lhes estar sempre a discutir as cores dos cabelos, os discursos ignóbeis, as faltas de carácter, as mentiras... sem estarmos sempre à espera que os cabrões deixem de ser cabrões, porque isso não vai acontecer. Estou farto dos cabrões e farto de discursos contra os cabrões.

Falta-nos o amor. Falta-nos a esperança. Falta-nos a confiança em nós mesmos. Falta-nos a coragem.

Ou não falta?...

Talvez não falte. Talvez não saibamos apenas o que fazer.

Deixemo-nos então de dizer o que outro alguém disse e de barafustar ao vento. Estudemos. Discutamos. Tentemos!

Há uma vida para lá dos cabrões!

Há nós! Há todas as coisas boas que temos cá dentro! Aquilo que gostaríamos que fosse e não é... Façamos nós! A música, o poema, a comida, o alento, o abraço, a maçã, o telhado, o livro, a cadeira... O que é que não sabemos fazer?... Estudemos. Discutamos. Tentemos!

E tentemos talvez ser menos dependentes das drogas que nos dão: televisão, mexericos, discussões inconsequentes, viagens, tecnologias cada vez mais sofisticadas, todos os prazeres que são de comprar, todos os prazeres com que simplesmente enchemos o vazio. Há uma vida para lá disso. Estudemos. Discutamos. Tentemos!



A cagada anda aí, portanto... caso já não o soubéssemos.

Adiante. Adiante. Por outro caminho. Pelo caminho da vida. Pela vida, companheiros.



quarta-feira, 28 de agosto de 2019

O perigo de andar devagar...



(Mais sobre este triste caso aqui: http://vadebike.org/2011/02/tentativa-de-assassinar-ciclistas-em-porto-alegre/. Desde então ainda estou a aguardar por um atropelamento semelhante de automóveis por uma bicicleta.)

O último artigo que aqui publiquei, intitulado "poluição sofisticada", e contendo uma imagem de trotinetes estacionadas num passeio, pode deixar a impressão, no leitor incauto, de que sou contra as trotinetes eléctricas. Talvez este artigo possa esclarecer um pouco mais... Entretanto, espero que, apesar da impressão, a ideia principal desse artigo tenha passado: não é só por os veículos serem eléctricos que são "bons para o ambiente". Tal como as eólicas não são "ecológicas" e a economia verde não é geralmente solução para nada.

Este artigo é motivado por uma conversa entre amigos ocorrida recentemente, e por uma notícia que acabei de ouvir na rádio, na qual alguém do automóvel clube de portugal (neste caso as minúsculas são mesmo para diminuir três conceitos que me parecem demasiado empolados...) exigia o uso de capacetes pelos utilizadores de trotinetes eléctricas e bicicletas.

Porquê?...

Porventura responderão: para aumentar a segurança...

De quem?... O tipo do acp agora defende a segurança dos outros que não são automobilistas, é isso?...

Porque é que o tipo do acp não defende o uso de capacete nas touradas aqui na Terceira?... Ou o uso de contraceptivo nos actos sexuais?... Ou o uso de caixinhas para organizar os comprimidos dos velhotes?...

Por um lado, não acredito no pai natal (mais duas minúsculas), e portanto não acredito que o tipo do acp esteja assim tão preocupado com a cabeça dos outros. Por outro lado, parece-me simplesmente que o tipo do acp trata tudo o que se passa nas estradas como algo da sua laia. As estradas e os passeios e todas as zonas envolventes são o reino dos automobilistas, e o tipo do acp é o seu rei. Compete ao rei pronunciar-se sobre o que se passa no seu reino.

Pois a mim não me compete pronunciar-me sobre este assunto, mas prefiro fazê-lo, senão ele ameaça atacar-me as tripas, e isso sim, é algo que me compete... As minhas tripas competem-me. Portanto, toca a fazer das tripas coração para novamente mexer nesta imundice e deixar, talvez, no final, as coisas um pouquito mais claras.

As estradas não existem por causa dos automóveis. Os automóveis são coisas que existem há pouco mais de cem anos. As estradas são um nadita mais velhas. Mesmo que as estradas de hoje sejam moldadas aos automóveis... mas já lá iremos.

Durante todo o tempo em que existiam estradas sem automóveis, não foi necessário um código de estrada. Nem mesmo nas situações mais engarrafantes. E creio que é fácil ficar surpreendido com o quão recentes são normas como "a circulação deve ser feita pelo lado X em todo o país". E a razão para isso também devia ser evidente...

Cada lei é, em certa ou em toda a medida, uma ingerência na liberdade individual. As leis são as evidências da subjugação dos súbditos do reino a uma autoridade supostamente colectiva... uma outra espécie de ditadura... seja ela da maioria ou de quem for.

E, sendo assim, não é boa ideia regular tudo e mais alguma coisa à nossa volta. Pensemos no conjunto de coisas perigosas que fazemos na nossa vivência quotidiana. Quantas das coisas que fazemos incluem um risco? Comer com faca e garfo? Cortar os legumes com faca afiada? Cozinhar no fogão? Ter aparelhos eléctricos? Tomar medicamentos? Comer fruta? Sair à rua? Nadar no mar? Ter uma conta de facebook?...

Queremos mesmo ter leis a regular isto tudo, a vida toda, de forma a proibir o sofrimento?... Já se sabe que a melhor... e talvez única... forma de não sofrer é simplesmente não viver. Devemos proibir a vida?

O corolário do que expus é que devemos ser parcimoniosos na legislação.

Muitos condutores e passageiros reagiram contra a legislação que obriga ao uso do cinto de segurança nos automóveis. Muitos (e certamente todos conhecemos alguém assim) continuam a não cumprir a legislação, ou quando são condutores, ou quando são passageiros, ou quando vão atrás no banco ou enfiados na mala. E porquê?... Porque as pessoas querem ser livres, inclusivamente livres de fazer asneiras.

Quem é que, no processo de aprendizagem de condução de um veículo automóvel, teve um acidente? Certamente alguns... mas provavelmente uma minoria. Quem é que, no processo de aprendizagem de condução de uma bicicleta, teve um acidente? Eu arrisco a dizer que ninguém aprendeu a andar de bicicleta sem cair. E daí?... Acidentes de automóvel e acidentes de bicicleta são um pouco diferentes... ou não?

Depois de se aprender a andar de bicicleta, e consoante o espírito endiabrado de cada um, poderemos ser tentados a andar sem mãos, sem pés, sem dentes... E, pergunto: devemos possuir legislação para proibir a condução de bicicletas sem mãos?...

Talvez a nossa cabeça pré-formatada (e inconscientemente formatada) queira responder algo como: devemos proibir a condução de bicicletas sem mãos quando a condução for feita na "via pública". É assim... todos temos uma tendência, que julgamos natural, para sermos opinadores ao estilo do rei do reino das estradas, guru-mor do clube dos automobilistas.

Diz a mesma notícia que acabei de ouvir na rádio que durante o ano de sei lá quê houve qualquer coisa como trezentos e tal acidentes com trotinetes, dos quais resultaram sei lá quantos feridos ligeiros.

Sim... E?...

Depois houve-se alguém a dizer que um dos problemas é a condução sob o efeito do álcool. Pois... pois é... Aliás, o efeito do álcool manifesta-se de muitas formas... Não devíamos proibir o álcool por completo?

Quantos acidentes houve no mesmo ano de pessoas a descer escadas?... Se calhar algumas morreram em consequência da queda!... Se calhar descer escadas é mais perigoso que andar de trotinete!... Se calhar devíamos proibir as escadas!!...

Portanto... facto: conduzir trotinete no meio do tráfego sob o efeito do álcool dá direito a correr um risco elevado de partir a cabeça.

Outros factos:

  • as ditas "vias públicas" são em geral divididas exclusivamente em passeios e estradas (ou outro nome para isso)
  • os passeios não existiam antes da era do automóvel
  • compete aos passeios recolher tudo aquilo que possa estar na via pública a atrapalhar o trânsito: peões (já não se chamam pessoas), baldes do lixo, árvores, tabuletas, semáforos, etc.
Só não se metem os tractores nos passeios, porque claramente os passeios que temos são demasiado estreitos... que lá atrapalharem o trânsito eles atrapalham!...

E, já agora, o rei dos automobilistas não vem para a rádio exigir que as bicicletas, trotinetes, skates e tudo o mais andem na estrada e não nos passeios, como aliás está estipulado no "código", porque é evidente que isso iria atrapalhar o trânsito automóvel.

O passeio é assim uma espécie de concessão que os automobilistas fazem, reconhecendo que seria pouco prático construir passadiços aéreos desde a porta de entrada das casas das pessoas até à padaria.

Entretanto, noutras áreas, os automobilistas adiantaram já terreno e anteciparam-se à potencial construção de casas ou padarias: reservaram essas áreas só para eles e puseram lá umas tabuletas assim:

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Isso sim, é o reino dos automobilistas!... Ah, e como eles desejariam poder espalhar tabuletas destas pelas cidades inteiras!!...

Não, não estou a viajar na maionese. Quantos são os casos que conhecem de autoestradas construídas no meio de cidades, por entre prédios e outros espaços, e sobre os escombros das casas que tiveram de ser demolidas para a sua passagem?

Enfim... tenho de me conter, senão corro o risco de não acabar nunca este artigo.

O que pretendo dizer é que todo o sistema que temos montado, em termos físicos nos espaços públicos, em termos legais, em termos mentais dentro das nossas cabeças, é um sistema construído sob a premissa tácita de que os automóveis é que mandam, as estradas são para os automóveis, os espaços públicos são para as estradas.

Nesse sistema, e APENAS nesse sistema, existem riscos elevados de integridade para quem se passeia de bicicleta, de trotinete, ou simplesmente a pé.

Mas, claro está, à la zés velhos ninguéns dos restelos, de cada vez que surge uma nova forma de nos deslocarmos mais eficientemente, mais silenciosa, mais humana, e mais segura... essa nova forma tem dificuldade em encaixar-se no sistema pré-montado de passeios e estradas, e acaba, no processo, por atrapalhar alguém. E, como sempre, compete ao rei da chafarica ripostar, atrapalhando de volta: "só podem andar de trotinete se usarem capacete"!

Sim... gramava que um bando, uma resma, uma multidão de condutores de trotinete, de capacete na cabeça, sem álcool nas veias, e cumprindo todas as regras, enchesse as ruas e estradas das nossas cidades. O atrapalhanço seria garantido.

O que se faria então?... O que sugeriria então o rei da chafarica?... Mais capacetes?... Uma nova legislação?... Mais umas proibições?...

Ou será que finalmente começariam a perceber que o espaço é das pessoas, que as pessoas não são automóveis, que há outras formas de nos movermos para além dos automóveis, que as cidades devem ser diferentes, que toda a via pública deve ser passeio apenas?

terça-feira, 20 de agosto de 2019

Poluição sofisticada...



Um estudo, publicado em 2 de Agosto de 2019 na revista "Environmental Research Letters" e conduzido por investigadores da Universidade da Carolina do Norte, conclui que as trotinetes eléctricas podem poluir ainda mais que os modos de transporte habituais.

De acordo com esse estudo,

"...existe o potencial para as trotinetes eléctricas aumentarem as emissões no ciclo de vida do produto relativamente aos modos de transporte que pretendem substituir. (...) Alegações sobre benefícios ambientais resultantes do seu uso devem ser recebidas com cepticismo, a menos que tempos de vida mais longos das trotinetes, reduzidos impactos na extracção de materiais e menores impactos na recolha e distribuição das trotinetes sejam atingidos."

Isto não quer dizer que as trotinetes eléctricas são uma má ideia. Também não quer dizer que não têm o potencial para serem melhores, a nível de impacto ambiental, que os modos de transporte habituais. No entanto, este estudo põe em evidência algo que é muito importante e que se aplica a muito mais do que as trotinetes eléctricas:

não podemos ser naifs ao ponto de acreditar que por uma coisa ser eléctrica é "boa" para o ambiente.

Estou a pensar sobretudo nessa onda da "economia verde", na onda dos carros eléctricos, na onda das energias renováveis e todas as coisas afins.



A construção, instalação, gestão, manutenção e finalmente remoção de uma turbina eólica tem um impacto ambiental muito elevado! E o mesmo pode e deve ser dito acerca de carros eléctricos e afins.

A lição a tirar daqui é, novamente, aquela lição à qual os seres humanos fazem questão de não ligar: de que não é possível ter o melhor dos dois mundos, isto é, continuar na senda de nos movermos mais, de comprarmos mais, de sermos mais, de fazermos tudo mais rápido... e ainda assim manter um planeta com uma ecologia minimamente estável.

Ou, dito ainda de outro modo, não há milagres!

Isso devia ser evidente para todos, mas parece que insistimos na estratégia da avestruz, e toda a onda (que já não é de agora) de "ciência e tecnologia", "novas tecnologias", "investigação e desenvolvimento", "inovação e empreendedorismo" só serve para agravar o problema. No fundo, é apenas mais capitalismo. E, conforme já devia ser conhecido, o capitalismo transforma todas as ameaças em oportunidades... Quando tudo parece horrível, o capitalista empreendedor e inovador faz uma festa!...

O capitalismo não pode ser limitado por barreiras. Neste sistema económico, todas as desgraças são novas formas de fazer dinheiro.



"We have a duty to change our way of thinking".

quinta-feira, 8 de agosto de 2019

Comunhão...


Levei as tuas cinzas
comigo
Por toda a parte

Onde te senti
Abri mão de ti
E deixei-te ser.

Ali
Sempre estiveste
E estarás

Comigo

Por toda a parte.

segunda-feira, 22 de julho de 2019

Chantagem...

Esses chantagistas desses trabalhadores!... Ameaçam não trabalhar se não lhes derem o que eles querem!... Onde é que já se viu?...
 
Mas quem é que os enfermeiros julgam que são? 
Os professores devem achar que são mais do que os outros! 
Os juízes são uns privilegiados! 
Funcionários públicos? É só mama! 
Os pilotos? Em greve? A que propósito? 
Os médicos deviam era tratar as pessoas como nos seus consultórios particulares! 
Acho muito bem que impeçam a greve dos enfermeiros! 
Mas que poder é esse que os motoristas têm de parar um país? 
Os maquinistas em greve? E as pessoas é que se lixam, né? 
Os mestres da Soflusa também? 
Esses sindicalistas que ganhem juízo! 
Os estivadores não gostam? Então que vão para outro lado! 
Também eu tive de penar muito! 
Esses sindicatos novos não respeitam os acordos pré estabelecidos! 
Os polícias não deviam ter direito à greve! 
... 
É assim, não é?...
 
Quem se lixa é o mexilhão, claro! O mexilhão dos médicos, dos enfermeiros, dos polícias, dos pilotos, dos maquinistas, dos camionistas, dos juízes, dos funcionários públicos, dos técnicos de diagnóstico, dos mestres, dos inspectores da PJ, dos trabalhadores dos CTT, dos estivadores, dos artistas, dos estudantes, dos trabalhadores dos registos... E ainda mais o mexilhão que com maior ou menor dor de cotovelo não tem possibilidade ou tomates para ter um sindicato, o mexilhão que se cansou de ser um funcionário com condições de merda e teve a coragem de mudar e transformou-se num recibo verde, o mexilhão como eu, cujas greves não afectam ninguém, não são notícia de jornal, e logo são as únicas que recolhem a graça do pensamento dominante, o mexilhão que nem trabalho tem, o mexilhão que nem pensar sabe, ou não quer, e não conhece as regras do próprio mundo onde vive, o mexilhão que acredita que só há mexilhão abaixo de si, e acima só privilegiados, o mexilhão que queria ser ainda mais privilegiado que esses privilegiados, para lhes poder pagar em vingança a sua inveja e a sua mesquinhez, os Zés ninguéns desta vida que perpetuam um oceano de mexilhões onde devia estar uma humanidade.
 
O povo português devia estar todo em greve! Greve de ser português! Greve de ser povo! Greve de ser o que é e greve de simplesmente não ser!

Chantagem é agora o acto de exigir condições dignas para trabalhar.
Chantagem passará portanto a ser, igualmente, a exigência de trabalho antes do pagamento.

Que deus fez uma merda tão grande assim?...

Se ao menos fossem eles todos em greve!... Ou eu a fazer greve deles, ou duma sociedade deles!... 

Mas não posso. Eles sofreram. E agora a sua solidariedade para comigo é proporcional ao meu próprio sofrimento.
 
Tal como para com os enfermeiros, os juízes, os médicos, os professores, os polícias, os pilotos, os maquinistas, os camionistas, os funcionários públicos e quem mais vier.

Haja sofrimento então.
Seja feita a sua vontade.

sábado, 6 de julho de 2019

A anormalidade desportiva...

Este artigo é inspirado pelo seguinte vídeo, recentemente divulgado:



Efectivamente não é fácil fazer a distinção entre sexo masculino e sexo feminino. Os autores do vídeo afirmam, como se de uma verdade absoluta se tratasse, que distinção de género é uma coisa e distinção de sexo é outra. Quando na verdade, tudo isso não passam de tentativas de os seres humanos organizarem a realidade em caixinhas estanques. Enfim... às vezes pode ser necessário... e às vezes pode não ser fácil.

Mas eu gostava de levar este assunto um pouco mais além.

Podemos reparar que o vídeo em cima é todo acerca da fixação de critérios que permitam classificar uma pessoa como pertencente ao sexo feminino, para efeitos de participação em provas desportivas. E porque é que não se fazem provas deste tipo para verificar o sexo masculino dos atletas?... A resposta é evidente: porque me muitos desportos os atletas do sexo masculino conseguem melhores resultados que as atletas do sexo feminino.

E isso pode parecer fazer todo o sentido. Mas perguntemo-nos: qual é a lógica subjacente a essa distinção?... Provavelmente, avanço eu, consideramos injusto colocar os atletas todos no mesmo saco, quando sabemos à partida que, por motivos de ordem natural, uns vão sempre ter vantagem sobre os outros. Por exemplo: se sabemos à partida que numa corrida de 100m os homens têm vantagem sobre as mulheres, e portanto numa competição conjunta os vencedores vão ser quase invariavelmente homens, consideramos que isso é injusto para as mulheres. E assim criamos uma separação, para que cada "tipo" de atleta possa concorrer com os seus "semelhantes", naquilo que nos parecerá uma competição mais justa.

Talvez já estejam a ver onde quero chegar...

Se assim é, então porque é que se colocam todos os atletas masculinos numa única competição de salto em altura, mesmo sabendo que os que medem mais de um metro e noventa vão sempre vencer os que medem menos de um metro e sessenta?... Porventura terão os baixos culpa de serem baixos?... Qual é a justiça de os colocar todos numa só competição?...

Portanto...

O que está em causa no desporto de alta competição é afinal o quê?... Estamos a medir o quê?... Quando os atletas correm para chegar o mais rapidamente possível à meta, estamos apenas a medir o tempo que eles levam a fazê-lo?... Ou estamos a medir também o esforço com que se empenharam no momento da prova? Ou a sua preparação? Ou o quê?...

Nas provas de orientação da Federação Portuguesa de Orientação, e apenas como exemplo, existem categorias para atletas masculinos e femininos, para individuais e grupos, para novos e velhos, para provas curtas e provas compridas, etc.

No limite, cada atleta terá o seu próprio escalão. Ou seja, no limite, cada atleta deverá competir apenas e só consigo próprio. E esse será o extremo máximo da justiça: o que é justo é que cada um tente sempre bater o seu próprio recorde pessoal, dados todos os constrangimentos com que tem de lidar.

No extremo máximo da espectacularidade, se lhe posso chamar assim, temos as competições onde todos competem com todos, independentemente de quaisquer constrangimentos, e onde se apura o ser humano que é mais rápido, ou mais forte, ou por aí fora.

No entanto, não tardará muito, na era da biónica, para que os organizadores dos eventos desportivos terão de formular normas para distinguir o que é e o que não é um ser humano.

Podemos assim situar as provas desportivas (e, já agora, todas as outras) ao longo de um eixo, onde temos num extremo a justiça máxima e no outro extremo a espectacularidade máxima.

No nosso mundo, todas as provas de alta competição são provas que se aproximam da espectacularidade máxima.

E isso é muito giro... mas é precisamente por isso que eu deixei, já desde há algumas décadas, de prestar atenção a essas provas, sejam os jogos olímpicos, os campeonatos de atletismo ou os campeonatos de futebol. Porque essas provas desportivas podem ser para atletas do sexo masculino e para atletas do sexo feminino, mas parece-me que não são muito adequadas a seres humanos normais. São provas de freaks, de gente que se dedica excessivamente a um assunto só... Gente que tem o corpo fisicamente deformado para conseguir fazer uma só coisa, gente que dedica a maioria do seu tempo a fazer apenas essa coisa, gente que se estica até ao limite das normas em relação a tudo o que está ao seu alcance, naturalmente incluindo aqui todo o tipo de drogas, para conseguir ser o mais espectacular em seja lá o que for...

E nós, quais tarados a ver um espectáculo de freaks condenados a matarem-se uns aos outros ou a serem estraçalhados pelas feras, aplaudimos do conforto do nosso assento no estádio, ou no sofá.

Acabe-se com esses espectáculos de anormais, e num instante a questão da classificação sexual perderá o seu interesse. Como, digo eu, seria justo.

quarta-feira, 5 de junho de 2019

Os comboios, mais uma vez...

Nas últimas semanas têm sido publicadas notícias acerca de problemas na CP, Comboios de Portugal.

Já tenho publicado alguns artigos sobre aquilo que considero ser uma morte lenta e premeditada dada aos transportes ferroviários em Portugal.

Veja-se, por exemplo:
https://irresponsabilidadeilimitada.blogspot.com/2012/04/cp-modus-operandi.html

Não deixa, no entanto, de merecer destaque que são agora os próprios trabalhadores da CP que fazem greve pela contratação de mais pessoal...

Parece, neste país de automobilistas amantes da natureza, que os trabalhadores da CP são agora os únicos a defender o sistema ferroviário. Não é a população, não é a administração da CP, não é o ministro dos transportes, nem o primeiro-ministro, nem algo do género, não são os partidos políticos, não é um grupo de jovens à porta da Assembleia da República, nem um grupo de professores a passar a mensagem junto dos alunos... Nada!... Ninguém quer saber. A não ser, talvez, os próprios trabalhadores da CP que, ao defender a contratação de mais pessoal, não estão necessariamente a requerer melhores condições para si mesmos (embora provavelmente, e merecidamente, também possam estar).

É cansativo insistir neste assunto. Os comboios são muito mais eficientes em termos energéticos do que os automóveis, são mais seguros, e em muitos tipos de viagens são mais rápidos.

Mas os automóveis são "nossos"! Aha!... Podemos afirmar a nossa diferença, de Mini vermelho, ou de Mercedes Benz no meio das latas dos outros... Podemos tirar catotas do nariz e ter sexo dentro do nosso carro. Podemos ir para onde quisermos e quando quisermos sem ter de esperar na estação ou sequer ter de caminhar até ela.

Sim, podemos... O transporte rodoviário é hoje muito prático, mesmo que tremendamente ineficiente, porque ao longo das últimas décadas foram investidas quantidades colossais de dinheiro em tudo o que com ele estava relacionado.

Podemos usufruir do nosso carro... mas ao mesmo tempo podemos também:
  • pagar o imposto sobre veículos automóveis
  • pagar o imposto sobre produtos petrolíferos
  • espetar-nos de frente contra um muro
  • levar com um camião em cima
  • ser atropelados ao andar na rua
  • pagar os polícias, as ambulâncias, os "tapadores" de buracos, os mecânicos, os reboques, os seguros, os semáforos e sei lá que mais que está associado à coisa
  • (ah, mas podemos acumular pontinhos num cartãozinho colorido de uma empresa petrolífera qualquer!!! que bom!!)
  • ocupar o espaço público com asfalto... asfaltar tudo, cortar árvores, eliminar passeios, forrar anteriores jardins com parques de estacionamento
  • pagar o estacionamento
  • e perder tempo à procura dele
  • gramar com o barulho permanente dos automóveis a circular e ficar tão habituados a isso que já nem reparamos
  • respirar os gases tóxicos e as partículas em suspensão que resultam da queima de quantidades quase inimagináveis de combustíveis (só na Área Metropolitana de Lisboa são mais de 1.200.000 toneladas anualmente)
  • perder tempos infinitos em engarrafamentos e em compensação ganhar muitíssima ansiedade
  • contribuir em fim de vida, para uma sucata porreira, onde os pobrezinhos podem ir buscar peças baratas para as suas latas em desintegração
Enfim... palavras para quê?

Entretanto, há a "cena" da "alta velocidade"!

Os comboios são porreiros por causa da "alta velocidade"!...

As pessoas, todas amantes da natureza, claro!, só falta mesmo irem protestar em frente à Assembleia a pedir que os políticos façam contra os próprios políticos aquilo que os protestantes não fazem contra eles mesmos... essas mesmas pessoas que gostam de reciclar para ficar com o cadastro limpo, um dia irão perceber, mal ou bem, que a cena da alta velocidade é um buraco negro.

Por um lado, a classificação da velocidade em alta ou baixa é relativa e evolui no tempo. E isso significa que a corrida por velocidades mais elevadas não tem fim à vista. E também significa que quem embarca no sonho de se poder deslocar mais rapidamente só está a comprar infelicidade. Quando, afinal, a felicidade está se calhar bem mais à mão. Somos bichos de hábitos, bons e maus. É só necessário lembrar disso.

Por outro lado, a energia necessária ao transporte de alguma coisa através da atmosfera evolui com o quadrado da velocidade, e a potência necessária evolui com o cubo da velocidade. Para um comboio circular a 300 km/h ele necessita de 9 vezes mais energia no total da viagem, e 27 vezes mais energia em termos instantâneos, do que um comboio a circular a 100 km/h.

Se os amantes da natureza são maus na física ou a fazer contas, eles acabarão por perceber, mais tarde ou mais cedo, porque a física não se vai embora só porque não a sabemos abordar.

Seja como for, deixo-vos um vídeo que se aplica à construção de linhas de alta velocidade nos EUA. Talvez, apesar de tudo, dê para retirar algumas ideias acerca do que se passa no nosso país.





quinta-feira, 23 de maio de 2019

Seres humanos - bolas de neve de rabo na boca...

Porque é que somos como somos? Porque é que o mundo é como é?...

Grandes questões, às quais talvez seja importante tentar responder.

Se o quisermos fazer, por onde poderemos começar? Que ferramentas poderemos utilizar? Como saberemos se estamos a ir na direcção correcta? Como saberemos se existe ou não uma direcção correcta?...

Todos os dias o Sol nasce dum lado e põe-se do outro, na maioria das latitudes do nosso planeta. Se for assim mesmo todos os dias, não haverá grande necessidade de entender com profundidade a razão subjacente. Todo o tipo de explicações terão provavelmente o mesmo nível de utilidade prática. No entanto, se num determinado momento a meio do dia o Sol ficar negro e o céu escuro, isso já irá requerer uma explicação mais aprofundada. Porque isso acontece de forma irregular. Porque isso levanta a suspeita de que o Sol pode não estar sempre lá. Porque isso tem repercussões graves para a vida das pessoas.

No processo de entendimento do mundo, o estabelecimento de regras, de normas, de leis, de funcionamentos considerados normais, é fundamental. As pedras, quando atiradas para dentro de água, vão ao fundo. Este é um exemplo de uma regra sobre como o mundo funciona, que não explica nada muito detalhadamente, apenas nos diz que as pedras afundam. E, no entanto, nem sempre esta regra é verdadeira. A alguém que me diga "as pedras afundam" eu posso retorquir "mas ontem eu atirei uma pedra para a água e ela não afundou, logo a tua regra não é verdadeira". E, se assim for, e se acreditarmos que não é boa ideia manter regras que não são verdadeiras, rejeitaremos a regra de que "as pedras afundam".

Mas será isso uma boa ideia?... Claramente não. É melhor saber que as pedras afundam, mesmo falhando de vez em quando, do que não fazer ideia sobre o comportamento das pedras dentro de água. E é assim que as pessoas se habituaram a aceitar que as regras possuem excepções. "Não há regra sem excepção" é uma máxima muito propalada que, claro está, também pode admitir excepções, porque podem existir regras sem excepções.

O estabelecimento de leis, se assim lhes quisermos chamar, é fundamental para tentarmos começar a organizar nas nossas cabeças o caos aparente que é o mundo à nossa volta. Mesmo que essas leis não sejam perfeitas e em muitos casos não se verifiquem.

O passo seguinte é o da competição entre leis que pretendem explicar os mesmos fenómenos. E o seguinte é o da tentativa de aferição de quais as melhores leis. É necessário construir formas de testar a lei "todas as pedras afundam" e a lei "todas as pedras pretas, sem buracos, afundam em água doce" para escolher a que melhor descreve o mundo. Desse jogo constante entre a dúvida, a hipótese, o teste, a explicação, é que surge um melhor conhecimento do mundo.

Neste contexto, o que é que as pessoas pretendem dizer quando afirmam "não devemos generalizar"? Estarão a tentar dizer que as generalizações são más?...

Certamente que não. Sem generalizações, nada saberíamos do mundo. Dizer que o Sol nasce todos os dias dum lado e põe-se do outro é uma generalização. E é certamente melhor fazer essa generalização do que viver na incerteza sobre se o Sol vai nascer amanhã ou onde.

As pessoas afirmam que não devemos generalizar em contextos onde se pretende efectuar uma "má" generalização. Mas, como é que podemos saber de antemão se uma generalização é boa ou má, sem antes a testarmos?... Em rigor, não podemos saber.

O problema é que, em rigor, não podemos saber nada com certeza. Todo o conhecimento que temos se afirma através de generalizações que podem ou não admitir excepções e podem ou não ser suplantadas no futuro por generalizações melhores. Não podemos medir nada com um rigor absoluto, e não podemos saber nada com um rigor absoluto. O que não é o mesmo que afirmar que não existem regras perfeitas. Elas podem existir!... Nós é que podemos nunca chegar a saber quais são!

Tudo o que sabemos admite, portanto, um grau de incerteza. Vivemos no jogo do mais e do menos provável. E, dentro desse jogo, há uma outra regra que nos diz que se um universo é composto de muitos elementos e nós alvitramos uma regra sobre esses elementos depois de termos observado apenas um ou dois deles, corremos um sério risco de que a nossa regra seja má, isto é, que não se aguente assim que for colocada à prova. A isso chama-se por vezes "tomar o todo pela parte". E é um caso onde a máxima "não devemos generalizar" se pode aplicar.

Mais em geral, "não devemos generalizar" não é uma afirmação contra as generalizações, mas sim uma afirmação contra as más generalizações. O importante não é deixar de tentar encontrar regras gerais. Isso é importante e só assim o conhecimento pode progredir. O importante é encontrar formas de generalizar apenas quando se possui algum fundamento sólido para o fazer.

Quando isto que acabamos de ver se transporta para a realidade dos seres humanos, toda a situação adquire contornos mais críticos. Os seres humanos são diversos e muitíssimo complexos. As suas decisões não são facilmente previsíveis.

Neste contexto, como é que podemos aumentar fundamentadamente o nosso conhecimento acerca do ser humano enquanto indivíduo e no seu conjunto, em sociedade?... Bom, não há volta a dar-lhe, precisamos à mesma de generalizar, isto é, de encontrar regras, leis, ou o que lhes quisermos chamar. E, novamente, as leis irão admitir excepções, e umas serão melhores que outras, e algumas generalizações serão abusivas e outras não.

Claramente a probabilidade de nos enganarmos é bastante maior quando analisamos o ser humano individualmente ou em conjunto do que quando analisamos pedras atiradas para um meio líquido. Isso é assim mesmo... há que aceitá-lo, e seguir em frente.

Em todo o caso, é melhor a regra "pessoas com mais dinheiro compram mais gasolina" do que não fazer ideia sobre a relação entre o dinheiro das pessoas e a gasolina consumida, mesmo que em muitos casos essa regra não se aplique.

Na resposta à questão "porque é que somos como somos", nós temos a tentação, sobretudo se não tivermos dedicado muito tempo a pensar seriamente nestas questões, de atribuir à nossa vontade própria a causa de muitos comportamentos. É bom sentirmo-nos livres! É bom sentirmos que ninguém manda em nós!

Porém, dizer que a causa de comermos muitas cenouras é a nossa vontade é o mesmo que não dizer nada, a menos que saibamos relacionar a origem dessa nossa vontade com alguma outra coisa existente em nós próprios ou no mundo à nossa volta. Se tivermos dúvidas acerca disto, pensemos na utilidade prática da regra "com igual acesso a cenouras, as pessoas que mais as consomem são aquelas que mais vontade têm de o fazer". Saber ou não esta regra não nos irá trazer vantagem alguma na compreensão do mundo que nos rodeia.

De onde é que nos vem a vontade?... Como é que se forma?...

Nós temos vontade de vestir calças de ganga. Mas numa viagem a outro país distante, poderemos constatar que lá quase ninguém veste calças de ganga, apesar de estarem disponíveis nas lojas. E talvez isso nos faça pensar "porque razão as pessoas deste país não têm vontade de vestir calças de ganga, quando as pessoas do meu país têm?". Claramente perceberemos que existe um padrão, e que, portanto, a vontade das pessoas de vestir ou não essa roupa não varia de forma completamente aleatória. E poderemos (e deveremos, se quisermos conhecer melhor tudo o que há para conhecer) ficar curiosos acerca das causas que alteram as vontades das pessoas.

Poderemos chegar à conclusão que a causa da nossa vontade de comer cenouras é o termos sido confrontados com isso desde muito pequenos, através da acção dos nossos pais. Poderemos constatar que isso também ocorre no caso doutras pessoas. E a certo momento, quando julgarmos que temos observações suficientes, talvez possamos arriscar a generalização "pessoas que foram introduzidas pelos pais ao consumo de cenouras enquanto muito jovens, consomem mais cenouras enquanto adultas".

Se fizermos essa generalização, poderemos também afirmar que não é a vontade própria das pessoas que as faz comer cenouras, mas sim as suas experiências passadas. Poderemos até afirmar que as pessoas não têm vontade própria, antes respondem aos condicionamentos do meio. No entanto, em ambos os casos, não se está verdadeiramente a dizer que as pessoas não têm vontade, está-se apenas a dizer que a vontade que as pessoas têm não surgiu do nada, antes foi o resultado de outros factores externos às pessoas.

Isso será o mesmo que dizer que as pessoas não são tão livres como pensam que são. Têm vontade, sim, mas muitas vezes essa vontade não é exclusivamente sua, antes é o resultado da sua interacção presente e passada com o meio.

Essa é uma conclusão necessária para quem começa a tentar encontrar resposta para questões sobre o ser humano, sobretudo quando analisado em conjunto. E é uma conclusão que pode deixar algumas pessoas desconfortáveis. Afinal, descobrem, o seu gosto musical não depende apenas de si...

Mas, uma vez aqui chegados, levanta-se a questão de saber: se o meio que envolve as pessoas tem influência nas suas crenças, nos seus gostos, nos seus comportamentos... o que é que determina o meio que envolve as pessoas?...

A sociedade é composta pelas pessoas que nela vivem, pelas relações que estabelecem entre si e o mundo físico em que vivem, e pelos seus artefactos, aí incluídos as crenças colectivas, as línguas, o conhecimento partilhado, etc. Tudo isso depende dessas pessoas e dos condicionamentos do seu meio físico. As pessoas de Montemor-o-Velho saberão plantar arroz e as pessoas da Peneda saberão fazer a transumância, e não o inverso. E, no entanto, as pessoas de Montemor-o-Velho terão liberdade suficiente para aprender a conduzir o gado, se assim o quiserem... Embora, apesar disso, a regra continue a poder aplicar-se. Às vezes, parece que há razões mais profundas, forças que temos dificuldade em explicar, a justificar aquilo que fazemos.

E é do entendimento destas questões que vêm máximas como "a sociedade faz o homem e o homem faz a sociedade" ou "o homem faz-se a si próprio" ou "a sociedade reproduz-se" ou "o operário faz a coisa e a coisa faz o operário":



Nós somos muito menos livres do que julgamos. Por estes e por outros motivos. Somos determinados pelo meio bem mais do que aquilo que acreditamos.

Ao mesmo tempo, a sociedade depende de nós bem mais do que aquilo que julgamos. Todos já ouvimos a máxima "não vais mudar o mundo". Infelizmente, esta máxima (e suas variantes) é quase sempre proferida para nos fazer acreditar que não vale a pena tentar fazer as coisas doutro modo, sobretudo dum modo que consideramos melhor.

Mas, se nós não mudamos o mundo, como é que o mundo muda?...

A verdade é que são as pessoas que mudam o mundo. E, dentro dessa verdade, a verdade é que nós também mudamos o mundo. Simplesmente, e em geral (sempre as generalizações!), não mudamos o mundo a uma escala macroscópica, de uma forma que seja imediatamente visível por alguém que viva noutro país, por exemplo.

O mundo gira muito lentamente... Às vezes ouvimos dizer que o mundo roda a uma velocidade de 1600 km por hora!... E isso poderá ser verdade, para quem está numa região perto do equador, e relativamente a um determinado sistema referencial... mas também é verdade que se estivessemos na Lua, a olhar para a Terra, à espera que ela desse uma volta... iríamos ter de esperar um dia inteiro!... Imaginem um disco a rodar num gira-discos à velocidade de uma rotação por dia... Isso é, em boa verdade, muito lento.

E as mudanças profundas e visíveis na sociedade também se processam muito lentamente.

As dunas de areia podem ser enormes. Por maiores que sejam, elas deslocam-se. E por maiores que sejam, são sempre formadas por pequenos grãos de areia, sem os quais não existiriam.

Cada um de nós tem o seu papel. Deixa-se ir com os outros, faz força mais para um lado ou para o outro... e vai contribuindo, à sua escala, para a mudança global. Porque essa mudança global existe, sempre existiu e continua a existir, e não a podemos atribuir a mais nada senão a nós mesmos: seres humanos.



Toda esta reflexão me acompanha diariamente, como quem sabe quem comigo conversa, mas a sua tradução neste texto foi incitada pelo vídeo que vem em baixo. Nesse vídeo, de um canal que eu costumo seguir, o autor expõe a sua tese sobre como os vídeos do Youtube são mais ou menos vistos, tese que justifica, nas suas palavras, a opção pela criação e divulgação futura de vídeos sobre temas mais apelativos, e sobretudo com títulos e imagens mais apelativos, mesmo que ligeiramente enganadores, e mesmo que fugindo aos assuntos que o autor considera mais relevantes...

Por outras palavras, o autor desse vídeo parece que acabou de descobrir a pólvora: o sensacionalismo compensa!! Uau!!... Eu podia ter-lhe dito isso há muito tempo!!...

No entanto, e é aqui que queria chegar com todo o palavreado anterior, a grande questão é esta: se praticamente toda a gente está disposta a condenar o sensacionalismo como uma coisa má, porque é que ele existe em tão grande escala e é tão compensador?...

As coisas não são como são, porque sim, e já está. Nós não somos como somos, porque sim, e já está. Isso é o mesmo que fazer tábua rasa de todo o conhecimento que a humanidade foi construindo acerca de si própria e do mundo, e o mesmo que substituir um cérebro cheio de potencial por um sistema nervoso básico dedicado ao sexo e à comida.

Entendermos porque é que somos como somos e porque é que o mundo é como é, é essencial para sermos capazes de construir um mundo com menos notícias de merda, vídeos de merda, livros de merda, conversas de merda e toda a outra merda que por aí há. Enquanto fizermos como a avestruz e dedicarmos os nossos neurónios apenas a justificar porque é que não fizemos o que devíamos ter feito, enquanto continuarmos a acreditar e a propalar máximas do tipo "tu não vais mudar o mundo", enquanto continuarmos a aceitar que somos como somos e que o mundo é como é e não há nada a fazer, tudo continuará a seguir o mesmo caminho que tem vindo a seguir.

E, quer queiramos entedê-lo, quer não, o caminho que o ser humano tem vindo a seguir é um caminho que, à moda do Admirável Mundo Novo do Huxley, transforma o prazer imediato no fim último da existência e coloca o nosso sistema límbico no controlo da nave espacial.

Somos todos, cada um à sua escala, responsáveis. Queiramos ou não.



Adenda: do que acabei de dizer podemos tirar várias ilações. Uma delas é de que tudo está ligado entre si, mesmo que as ligações não sejam evidentes. Expressões como "não tens nada com isso", "cada um é que sabe de si" ou equivalentes não são correctas. Tudo, em maior ou menor grau, diz respeito a todos.

Isso não implica que não deva haver lugar para a privacidade. Deve sim, e esse aliás é um aspecto que muitos têm dificuldade em respeitar. Mas é também preciso ter a noção que, em grande medida, nós devemos quem somos aos outros e que, em alguma medida, a vida dos outros é condicionada pela nossa.

Muito se pode aprender com isto... Uma outra ilação, por exemplo, é a da humildade. Como dizia o outro, somos anões aos ombros de gigantes.