segunda-feira, 24 de junho de 2013

Ignorar não é nada bonito...


(esta foto foi tirada na Graça do Divor, aqui, em 2009)

'Carta para Josefa, minha avó', de Saramago:

Tens noventa anos. És velha, dolorida. Dizes-me que foste a mais bela rapariga do teu tempo e eu acredito. Não sabes ler. Tens as mãos grossas e deformadas, os pés encortiçados. Carregaste à cabeça toneladas de restolho e lenha, albufeiras de água. Viste nascer o Sol todos os dias. De todo o pão que amassaste se faria um banquete universal! Criaste pessoas e gado, meteste os bácoros na tua própria cama quando o frio ameaçava gelá-los. Contaste-me histórias de aparições e lobisomens, velhas questões de família, um crime de morte. Trave da tua casa, lume da tua lareira – sete vezes engravidaste, sete vezes deste á luz. Não sabes nada do Mundo. Não entendes de política, nem de economia, nem de literatura, nem de filosofia, nem de religião. Herdaste umas centenas de palavras práticas, um vocabulário elementar. Com isto viveste e vais vivendo. És sensível às catástrofes e também aos casos de rua, aos casamentos de princesas e ao roubo dos coelhos da vizinha. Tens grandes ódios por motivos de que já perdeste lembrança, grandes dedicações que assentam em coisa nenhuma. Vives. Para ti, a palavra Vietname é apenas um som bárbaro que não condiz com o teu círculo de légua e meia de raio. Da fome sabes alguma coisa: já viste uma bandeira negra içada na torre da igreja. (Contaste-me tu, ou terei sonhado que o contavas?...) Transportas contigo o teu pequeno casulo de interesses. E, no entanto, tens os olhos claros e és alegre. O teu riso é como um foguete de cores. Como tu, não vi rir ninguém. Estou diante de ti, e não entendo. Sou da tua carne e do teu sangue, mas não entendo. Vieste a este Mundo e não curaste de saber o que é o Mundo. Chegas ao fim da vida, e o Mundo ainda é, para ti, o que era quando nasceste: uma interrogação, um mistério inacessível, uma coisa que não fazia parte da tua herança: quinhentas palavras, um quintal a que em cinco minutos se dá a volta, uma casa de telha vã e chão de terra batida. Aperto a tua mão calosa, passo a minha mão pela tua face enrugada e pelos teus cabelos brancos, partidos pelo peso dos carregos – e continuo a não entender. Foste bela, dizes, e bem vejo que és inteligente. Por que foi então que te roubaram o mundo? Quem to roubou? Mas disto entendo eu, e dir-te-ia o como, o porquê e o quando se soubesses compreender. Já não vale a pena. O mundo continuará sem ti – e sem mim. Não teremos dito um ao outro o que mais importava. Não teremos realmente? Eu não te terei dado, porque as minhas palavras não são as tuas, o mundo que te era devido. Fico com esta culpa, de que me não acusas – e isso ainda é pior. Mas porquê, avó, porque te sentas tu na soleira da tua porta, aberta para a noite estrelada e imensa, para o céu de que nada sabes e por onde nunca viajarás, para o silêncio dos campos e das árvores assombradas, e dizes, com a tranquila serenidade dos teus noventa anos e o fogo da tua adolescência nunca perdida: “O mundo é tão bonito, e eu tenho tanta pena de morrer!” É isto que eu não entendo – mas a culpa não é tua.

(José Saramago, in Deste Mundo e do Outro, ed. Caminho)
(obrigado Ilda)




'O povo está divorciado da cultura', de Torga:

O povo está divorciado da cultura, e encolhe-se cada vez mais na sua fome e na sua ignorância. Somos nós, os que saímos dele e o queremos verdadeiramente servir, que temos o dever de o procurar, de o esclarecer, de o interessar activamente na sua própria salvação. Que lhe importam os grandes livros, se ele os não pode nem sequer ler? Que lhe importam as grandes sinfonias, se ele as não sabe ouvir? é urgente chamar o povo à realidade nacional. É preciso interessá-lo de verdade no processo social, onde ele tem o único papel que conta.
— Para isso?...
— Convidá-lo desde já a votar livre e claramente. Chamá-lo a determinar-se, a escolher os seus homens, a responsabilizar-se no seu destino,
— Esse destino é?...
— O destino de todos os corpos vivos: crescer, multiplicar-se, procurar a felicidade, e deixar no seu caminho uma nítida e aberta marca de compreensão e de amor.

Miguel Torga, in "Diário (1945)"

(esta foto foi tirada na Casa da Cultura de Vimioso, aqui, em 2010)


segunda-feira, 3 de junho de 2013

Feliz como uma criança...

de Mário de Sá-Carneiro:

Oh! A idade venturosa da infância! Onde há outra mais feliz e mais tranquila, mais sorridente - isto é, mais egoísta?... Em volta de nós podem suceder as piores catástrofes. Se elas nos não arrancam nem os brinquedos nem os bolos, não nos atingem de forma alguma... não as compreendemos sequer...
Quando muito, correm-nos lágrimas vendo chorar as nossas mães. No entanto, é só ainda vagamente que percebemos a dor humana. Por isso as nossas lágrimas secam depressa diante dos brinquedos. E se o quadro em que nos agitamos é risonho, a infância tansforma-se-nos então num jardim maravilhoso. Para as crianças felizes, só para elas, existe realmente um céu - o ceú dos seus primeiros anos.

O dia em que os correios fecharam...



Vejam até ao fim, que vale a pena. Reparem como o encerramento dos postos dos correios não acontece por acaso. E reparem no que aquela senhora diz, acerca da nossa valentia...

(obrigado Rui Viana)

Para onde vai o dinheiro que nos falta...

Entrevista que pelos vistos foi difundida a 1 de Maio de 2013 (obrigado novamente ao Frederico por me ter enviado isto):



Desde há muito tempo que tenho vindo a colocar esta questão às pessoas com quem falo. Se eu tiver dinheiro parado numa conta bancária, eu também quero poder emprestá-lo ao Estado português e receber um juro de 4 ou 5% ao ano. Exploremos um pouco mais este assunto.

Emprestar a um Estado é provavelmente a coisa mais segura que alguma pessoa pode fazer com o seu dinheiro. Certamente é muito mais seguro que emprestar a um banco. Pelo simples facto de que os bancos podem falir, embora isso seja raro, enquanto o Estado não pode. Isso não quer dizer que o Estado pague sempre as suas dívidas. Afinal de contas um Estado é, ou deveria ser, soberano. Mas quer dizer que é mais provável que um Estado pague as suas dívidas do que um banco, mesmo que pague a más horas.

No entanto, os Estados europeus e outros, tal como os bancos e muitas outras instituições, fomentaram o desenvolvimento de um sistema financeiro no qual algumas instituições não democráticas, vulgares empresas, têm o poder de fixar e de avisar toda a gente sobre o nível de risco inerente aos empréstimos aos diversos Estados. É assim que, de repente, se torna tremendamente importante saber o que a empresa de notação Fitch tem a dizer acerca do risco de emprestar ao Estado português ou a outros.

Isto não tinha de ser assim. Isto é assim porque isso é favorável às pessoas que têm mais dinheiro, e porque essas pessoas construíram este sistema ao longo das últimas décadas, numa interacção muito estreita com os diversos governos dos diversos países.

O Estado português, como tantos outros, endividou-se muito no passado. Não o devia ter feito. Nós, os portugueses, não o devíamos ter deixado. Mas foi assim. Os empréstimos avultados foram possíveis por várias razões, entre as quais posso destacar (1) o efeito imediato dos seus benefícios em contraste com o efeito diferido dos seus malefícios, que portanto os torna menos visíveis; (2) a possibilidade de os políticos canalizarem dinheiros que não são seus, e sobre os quais não terão de responder no futuro, para actividades e empresas que os podem beneficiar directa ou indirectamente; (3) o enorme benefício que esses empréstimos concedem a quem empresta o dinheiro, sob a forma de juros.

Cada vez mais pessoas começam a perceber que a ganância não é uma coisa positiva, tal como não é fazer dinheiro a qualquer custo. No entanto, parece que ninguém coloca em causa a legitimidade da existência de um rendimento como o juro, e que remunera nenhum esforço. O juro remunera o dinheiro, não remunera o esforço. O prémio para quem se esforçou pode ser (embora na nossa sociedade nem sempre seja assim) o dinheiro. Mas será legítimo que quem já tem esse prémio, depois tenha mais prémios só porque à partida já tinha um prémio? Será legítimo que alguém receba rios de dinheiro só por emprestar o seu dinheiro?... Porquê?...

A existência de juros, a possibilidade de os capitais circularem livremente pelo planeta, e o funcionamento de todo este sistema financeiro também não tinha de ser assim. É assim porque isso é favorável às pessoas que têm mais dinheiro, e porque essas pessoas construíram esse sistema ao longo das últimas décadas, numa interacção muito estreita com os diversos governos dos diversos países. É... estou a repetir-me... porque tudo isto vai dar ao mesmo: dar mais dinheiro a quem já tem mais dinheiro. É a mesma causa e o mesmo método para todos estes diferentes efeitos que só servem para nos tramar...

Portanto, o Estado português altamente endividado, fica sujeito ao pagamento de elevados montantes de juro.

E neste contexto, a variação da notação dos empréstimos ao Estado português pelas tais agências de notação implicou o início de um efeito de bola-de-neve: a diminuição da notação aumenta o juro, o que aumenta o défice e a dívida, o que diminui ainda mais a notação...

O Estado acaba então por ter de gastar muitos milhares de milhões de euros todos os anos apenas para conseguir pagar os juros da sua dívida global, sem sequer falar da diminuição (amortização) do verdadeiro valor da dívida. Começa-se então a gritar por todos os lados que "não há dinheiro" e começa-se a fazer a lavagem cerebral de uma população inteira, fazendo-a acreditar que "não há dinheiro" por causa dos gastos excessivos, por exemplo, nos correios, nas escolas, nos institutos de investigação, nos hospitais, nos transportes, nos tribunais, nos pensionistas, nos desempregados, nos medicamentos, etc. Mas nunca se põe em causa nem o mecanismo que conduziu até esta situação, nem o mecanismo que permite, a todo o momento que passa, que pessoas com muito dinheiro ganhem ainda mais dinheiro, com base num rendimento que deveria ser considerado ilegítimo, e ainda mais quando a maioria da população está em apuros, que é o juro.

Não há dinheiro, dizem-nos. E, na verdade, há muito dinheiro... só que ele não está no Estado. E é assim que o Estado precisa de se endividar ainda mais, não para manter os hospitais, que esses vão sendo "racionalizados", mas para manter o pagamento dos juros aos credores. E é assim que entra em cena a "troika", a tríade formada pelo Banco Central Europeu, pela Comissão Europeia e pelo Fundo Monetário Internacional. E o que é que a "troika" faz de tão miraculoso?... A "troika" empresta dinheiro ao Estado português, a taxas de juro bem superiores a 4% ao ano, bem superiores à taxa de juro que o comum português consegue se quiser fazer um depósito num banco ou se ele mesmo quiser emprestar dinheiro ao seu próprio Estado.

E porque é que o cidadão comum não pode então emprestar dinheiro directamente ao Estado?... No vídeo em cima podemos ver como aquele energúmeno fica encabulado com a questão. Mas não é que ele não saiba a resposta. Ele sabe. A resposta é muito simples: porque os rios de dinheiro que se geram com esta coisa dos juros que o Estado tem de pagar têm de ser canalizados para as mãos certas, isto é, as mãos dos bancos e dos seus amigos, das gentes de dinheiro, que são também as mãos dos tipos dos sucessivos governos que temos tido.

A concluir, interessa realçar que se fosse o cidadão comum a emprestar dinheiro directamente ao Estado, isso não resolveria praticamente nada. Isso apenas daria mais uma oportunidade aos portugueses que mais têm de se tornarem ainda mais ricos. Isso não acabaria com a pouca vergonha que é o enriquecimento ilícito à base de juros, isso não diminuiría a dívida do Estado nem o montante que ele teria de pagar anualmente em juros, isso não libertaria mais dinheiro para o funcionamento das coisas públicas, isso não acabaria com o crescimento das desigualdades económicas.

Porque é que eu e outros sentem então tanta necessidade de expor este caso? Porque se trata, simplesmente, de uma enorme evidência da canalização de verbas públicas para as mãos de alguns. Só isso. E é só isso que o Estado tem feito e irá continuar a fazer enquanto os portugueses o permitirem.