segunda-feira, 30 de março de 2020

A merda do futuro...

Escrevo este texto movido por uma profunda preocupação com o que acontecerá às nossas vidas de hoje em diante

Sim, o motivo é o coronavírus, e não, o motivo não é o coronavírus, é algo bem mais profundo e mais grave.

Numa altura em que se contabilizam mortos, parece descabido da minha parte afirmar que há algo mais grave. Mas há. Por um lado, há as mortes todas em geral. Por outro lado há as vidas, as nossas vidas todas, ontem, hoje e amanhã.

Não menosprezo o problema de saúde pública que temos em mãos, mas acredito que quase todos, pelo menos aqui à minha volta, e tanto quanto me apercebo, estão a fazer o que é possível fazer. E isso é quase comovente... pudesse ser assim em relação a tantas outras coisas.

Infelizmente, nos tais outros aspectos mais profundos e mais graves, não estamos a ajudar muito. A atitude mais comum será a de continuar a fazer o que sempre foi feito. Fazer o que sempre foi feito, ou não fazer nada, são apenas formas alternativas de perpetuar o que existe.

Falo, claro está, das questões económicas. Não fujam já! É verdade que os meus textos sobre economia se centram muitas vezes na crítica negativa ao sistema económico que temos, o capitalismo. Tenho boas razões para isso. Talvez isso afaste os leitores: porque é fastidioso, porque é mais do mesmo, porque, para tantos, se eu ataco o capitalismo então defendo sistemas autoritários (o que não é verdade).

É importante conhecer o sistema em que vivemos. Infelizmente, muitas pessoas não escolhem, nem conhecem o sistema em que vivem. Inclusivamente muitos defensores do capitalismo.

Se tem poupanças ou fontes de rendimento suficientes para não se preocupar com uma crise, se não necessita de trabalhar para pagar as contas, se pode correr o risco de investir em vários negócios que não vingam, para ficar finalmente com aquele que vinga, então este texto não é para si.

Este texto é dirigido a quem tem de contar os tostões para pagar as contas ou pagar os salários dos seus trabalhadores, mesmo que seja um defensor do capitalismo.

A mensagem que quero veicular com este texto é a seguinte:
  • A economia não tem de ser o que está nos livros. Nem nos livros de economia, nem nos livros de história. O sistema económico pode ser aquilo que nós quisermos que ele seja.
  • Apesar disso, sempre ouvimos os políticos e os “fazedores de opinião” a insistir na ideia de que “tem de ser assim”. A ponto de nós próprios acreditarmos nisso.
  • Infelizmente, nas circunstâncias actuais, manter a economia a funcionar como tem funcionado irá significar um enorme endividamento dos mais necessitados, directa ou indirectamente (via endividamento do Estado), a perpetuação do pagamento dessa dívida até ao fim dos nossos dias (lembremo-nos que já levamos 12 anos a tentar pagar a dívida da crise de 2008 e até ao momento não conseguimos quaisquer melhorias), e o agravamento da desigualdade económica entre quem tem muito e quem tem pouco.
  • As medidas que os governos estão a tomar, como linhas de crédito bonificado ou eurobonds, são apenas mais do mesmo ou, ainda pior, formas de tornar o sistema mais sofisticado, de não permitir uma economia alternativa e de dar a entender que isso não é possível.
  • No entanto, alternativas são possíveis e nunca foram tão necessárias como agora e nos tempos que hão-de vir. Os governantes nunca adoptarão, por sua iniciativa, uma alternativa ao que existe. Isso só acontecerá se nós fizermos pressão nesse sentido. É necessário pensar e agir.
  • Uma alternativa possível e que actua de modo muito mais eficaz na resolução dos problemas vindouros e em muitos problemas pré-existentes é a instituição de um rendimento mínimo incondicional.
  • Parte deste texto fundamenta a exequibilidade de implementação dessa alternativa, os efeitos positivos que teria nas vidas de todos, e as razões pelas quais os governantes nunca sequer tocam no assunto.
O texto está repartido em 15 pontos. Não precisa de ser lido de uma assentada. Talvez até seja bom lê-lo por etapas, com tempo para efectuar as suas próprias indagações e para confrontar o que aqui é dito com a realidade que vemos à nossa volta e nos chega pelos meios de comunicação social.

Acima de tudo, o meu principal propósito não é administrar receitas mas sim estimular a dúvida e a vontade de saber mais. Ficaria satisfeito se isso acontecesse, mesmo que discordem de tudo o que aqui digo.

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1 – Futurologia económica em tempos de vírus
  • Muitas empresas vão fechar.
  • A massa salarial global irá diminuir e a actividade económica irá reduzir-se.
  • Isto é tudo o que é necessário saber acerca do futuro da nossa economia.
Ao longo destes dias, e de muitos outros que virão, terão oportunidade de contactar com as mais diversas opiniões das mais diversas pessoas, algumas muito reputadas, sobre o que irá acontecer à economia regional ou mundial. A minha futurologia própria diz-me que iremos ser bombardeados com artigos de opinião nas rádios, nos jornais, nas televisões, nas redes sociais... e caso os cafés reabram, também nos balcões dos cafés.

Acompanhar todos os artigos de opinião, de gente engravatada ou não, é uma perda de tempo!

Para saber alguma coisa na vida, há que vivê-la e estudá-la. As opiniões dos outros também podem ter o seu papel, mas é preciso saber triá-las bem através dos nossos próprios crivos. E isto é válido também para as opiniões que eu mesmo vá exprimindo ao longo do texto.

Mas nem só de opiniões vive este texto. Nos tempos mediáticos que correm é cada vez mais importante saber distinguir entre factos e opiniões. Portanto, se puderem, não se fiquem pelo que eu digo. Procurai informação mais sólida: procurem factos, leiam livros, investiguem. Não procurem as opiniões dos outros. Já levamos décadas a ouvir as opiniões dos outros e as nossas vidas não ficaram muito melhores à conta disso.

Dito isto, pensemos então um pouco no que irá acontecer à economia nos próximos tempos.

Muitas empresas irão fechar. Temporária ou permanentemente. Deixarão de ter proveitos e será mais difícil manter o pagamento dos salários. Algumas empresas, poucas, poderão continuar a pagar por inteiro aos seus trabalhadores. Outras terão de os despedir. Outras ainda encontrarão situações intermédias, despedindo alguns trabalhadores e reduzindo o salário aos restantes.

As pessoas irão ficar nas suas casas. O seu rendimento irá reduzir-se e não terão, de qualquer modo, muitas oportunidades para o gastar.

Ou seja, em termos globais, haverá uma diminuição simultânea da procura e da oferta. No entanto, essa diminuição não acontecerá por igual em toda a economia. Por exemplo, a procura de bens alimentares possivelmente não será muito afectada, e a procura de outros bens, como o álcool, poderá até aumentar.

Os trabalhadores da função pública irão possivelmente continuar a receber o rendimento por inteiro, e se houver reduções elas não deverão ser muito grandes (não é do interesse dos governos matarem completamente a economia). Nesse sentido, os funcionários públicos têm uma almofada que os trabalhadores do privado não têm. O que está errado nisto não é os funcionários públicos terem uma almofada financeira, é os trabalhadores do sector privado não a terem.

De qualquer modo, à medida que o tempo for passando, os Estados irão cobrar menos impostos, porque o consumo será menor e os rendimentos individual e colectivo serão também menores.

Note-se que se houvesse alternativamente uma maior tributação da riqueza, estas flutuações na cobrança dos impostos não seriam tão acentuadas. Mas infelizmente a tributação alternativa da riqueza sempre foi uma miragem.

Assim, tarde ou cedo, também os Estados irão sentir a necessidade de cortar nas despesas. Farão o que estiver ao seu alcance para que os cortes sejam reduzidos, embora apenas dentro dos moldes actuais de funcionamento da economia, conforme irei referir mais adiante.

Dê por onde der, a economia vai sofrer. Isto não é opinião. Já é factual, porque já está a acontecer, e será inevitável no futuro próximo.

E isto é praticamente tudo o que é necessário saber acerca da futurologia económica. O mais que há a saber é sobre a realidade actual.

2 – A economia real e a futilidade
  • As actividades económicas têm importâncias objectivas diferentes. Algumas são mais importantes que outras.
  • A crise evidencia essa distinção: as menos importantes são mais afectadas.
  • A mecanização das actividades e o constante aumento da produtividade impelem-nos a construir uma economia cada vez mais supérflua.
  • Tornar o sustento das famílias dependente de actividades económicas menos essenciais, torna-as mais vulneráveis em tempos de crise.
Chamemos "economia real" à economia que lida mais directamente com a produção, distribuição e consumo de bens e serviços, distinguindo-a da "economia virtual" que, grosso modo, diz respeito às transacções que não têm por contrapartida algo que foi produzido. A transferência de propriedade de um terreno é um exemplo de uma parcela da economia virtual. As transacções financeiras também se encaixam nessa classificação.

Tomemos um exemplo caricatural protagonizado pelos Gato Fedorento já há 12 anos:


Para além de nos rirmos da ingenuidade do tipo do bife com batatas fritas, a verdade é que todos sentimos que há qualquer coisa de substancialmente diferente entre a criação de vacas e a transacção de títulos financeiros na bolsa.

Logo à partida poderá ocorrer-nos que uma crise económica não afecta o modo como as batatas ou as vacas crescem. No entanto, se para as batatas crescerem elas precisarem de adubo, talvez a crise acabe por atingi-las. Podemos então pensar que esta distinção entre "real" e "virtual" não é afinal a preto e branco, é numa escala de cinzentos, que transita suavemente das coisas mais reais para as coisas mais virtuais.

A economia real é menos afectada por crises económicas. No entanto, dentro dela há que fazer uma classificação adicional entre o que é mais ou menos  importante para as nossas vidas.

A teoria económica em que se baseia o capitalismo faz pouca distinção entre o que é importante ou não é importante. Nos seus termos, os mercados regulam o interesse que as pessoas têm em transaccionar os bens ou serviços. É às pessoas que compete avaliar a importância de cada produto ou serviço. Cada um é que sabe de si. Não há discurso moral. E os preços dos produtos oscilam com base nisso, reflectindo de algum modo essa importância relativa.

No entanto, acredito que todos nós, em conjunto, não teremos muita dificuldade em afirmar que, regra geral, produtos alimentares são mais importantes do que jóias: as jóias poderão ter muita importância subjectiva para quem as possui, mas sem produtos alimentares é difícil aguentar o peso dos colares.

Há, portanto, toda esta distinção entre o que é mais importante e o que é mais supérfluo, que passa completamente à margem dos mercados, da teoria económica ortodoxa e do capitalismo como um todo. Não há moral, não há juízo de valor, não há distinção entre correcto e incorrecto, a não ser a mais-valia da transacção.

É assim que vivemos todos um pouco numa dissonância cognitiva, a acreditar que pautamos a nossa vida por determinados princípios, quando na verdade fazemos as coisas doutro modo. Todos achamos que produzir bombas é mau, que fazer investigação científica para combater o cancro é bom, mas quando chega a hora da verdade, é o dinheiro que conta: certo e errado medem-se em termos de quanto ganhamos na transacção.

As crises, neste aspecto em particular, ajudam-nos a voltar ao básico, a sair das nuvens e a assentar os pés em terra. Mesmo que não queiramos.

Nos dias que correm, as redes sociais estão repletas de mensagens que enaltecem os "verdadeiros trabalhadores", chamados de heróis. Ninguém tem dificuldade em identificar quem são: os profissionais de saúde, os bombeiros, os carteiros, os que trabalham nos supermercados, os lixeiros, etc.

Numa nota pessoal, eu hesitaria um pouco na idolatria dos heróis... Enalteço a coragem dos que, podendo, não fogem de uma batalha justa, mas não creio que idolatrar heróis seja algo positivo.



Ou seja, parece que em tempos de crise esta distinção entre o que é importante e o que é supérfluo vem, em termos objectivos, mais à tona. Isso é assim porque as pessoas têm efectivamente medo de não ter acesso aos bens essenciais (e de repente o papel higiénico passou a ser muito mais importante do que o novo jogo para computador), mas também em consequência da ubiquidade da economia supérflua que o capitalismo foi gerando a uma escala global nas últimas décadas.

A economia supérflua não é só um modo de as pessoas viverem melhor. É sobretudo uma maneira de a economia, nos moldes em que existe, e independentemente das pessoas viverem melhor ou não, continuar a andar para a frente. A senda do crescimento perpétuo...

Que a economia supérflua sustenta o crescimento mais do que a felicidade não é uma opinião, é factual. Se acreditarmos no trabalho de quem tenta estimar a evolução do produto real ao longo dos séculos (ver por exemplo James Bradford DeLong), o produto real per capita terá crescido entre o ano do nascimento de Cristo e o ano 2000 entre 15 e 60 vezes. Quem é que acredita que as pessoas no ano 2000 eram em média entre 15 e 60 vezes mais felizes que as pessoas no ano 1? Se isso fosse verdade, e se hoje as pessoas auto-classificassem a sua felicidade com um 7, numa escala de 0 a 10, então as pessoas no ano 1 responderiam em média 0... o que não faz sentido.

Toda a gente tem facilidade em dizer que "dantes era uma vida muito dura!", porque tinham de andar a pé quando hoje andam de carro, porque tinham de lavar a roupa no rio quando hoje lavam na máquina. No entanto, toda a gente tem facilidade em dizer que "aquilo é que eram tempos!", porque as pessoas se juntavam para o bailarico enquanto hoje ficam em frente ao computador, porque havia muito peixe no mar e agora está à míngua, porque sentiam o apoio da comunidade para o que fosse preciso enquanto hoje as pessoas só se mexem se lhes pagarmos. Para tudo há prós e contras, e também para a nossa "evolução" económica. É fácil deixarmo-nos influenciar por uma determinada perspectiva e esquecermo-nos de outras.

Esta trajectória rumo ao supérfluo sofreu um impulso enorme com a revolução industrial.

Algures na Grã-Bretanha, no início da revolução industrial, um grupo de pessoas revoltaram-se contra a instalação de máquinas nas fábricas onde trabalhavam. Ficaram conhecidos como ludistas. Hoje, dizer que alguém é ou parece um ludista é o mesmo que, de uma forma jocosa, classificá-lo como retrógrado. Mas isso é errado, e devia ensinar-nos algo acerca do modo como as ideias e as palavras que as transmitem são inculcadas em nós, mesmo sem darmos por isso.

Na verdade, os ludistas estavam a fazer aquilo que qualquer pessoa sensata deveria ter feito: lutar pelos seus trabalhos! Eles sabiam que as máquinas que estavam a ser instaladas iriam substituir o seu trabalho, e logo que ficariam sem emprego.

É claro que a sua luta poderia ter assumido outras formas, talvez mais consequentes. No entanto, não é correcto dizer que eles eram contra o progresso.


Tal como dizia Neil Postman (um autor que não encontrarão a opinar no telejornal, até porque já morreu, mas cujos livros recomendo vivamente, em modo de estudo), hoje os computadores entram nas salas de aula e ameaçam os postos de trabalho dos professores. No entanto, em vez de serem os primeiros a combater a introdução dos computadores nas salas de aulas, são os primeiros a aplaudir! E isso devia dar que pensar.

Os economistas teóricos que fundamentam o regime instalado vieram, a posteriori, afirmar que é precisamente a destruição dos postos de trabalho que permite o progresso. Novamente, dá para pensar.

Não vou continuar a debater essa questão, embora ela mereça. Vou antes retomar a breve resenha histórica rumo ao que está a acontecer hoje e vai acontecer nos próximos tempos.

O que aconteceu com a revolução industrial foi, portanto, uma substituição do trabalho manual por trabalho mecanizado. Isso "libertou" uma quantidade enorme de "recursos humanos". Tal como a revolução agrícola também tinha libertado recursos humanos da produção no sector primário. Esses recursos humanos puderam então dedicar-se a outras actividades económicas, isto é, à produção de bens e serviços de que a sociedade estava carente e cuja oferta não era suficiente.

Isso prosseguiu durante mais de um século. Os aumentos de produtividade, no entanto, começaram a empurrar esta economia para o reino do virtual e do supérfluo.

Enquanto no início do século vinte uma pessoa "liberta" seria, discutivelmente, útil para ajudar na produção de outra coisa qualquer, no ano 2020 uma pessoa "liberta" vê-se à rasca para arranjar um novo emprego.

Isso acontece por vários motivos, mas também, e em grande medida, porque os bens e serviços que são verdadeiramente importantes para a sociedade já são produzidos em quantidade suficiente para satisfazer a procura e para sobrar.

Qual é o desempregado que nunca pensou na possibilidade de fazer um negócio por conta própria, para perceber logo ali que afinal o "mercado" já está cheio desse tipo de coisas a preços imbatíveis?...

É neste contexto que surge a idolatria da "inovação". Hoje, em 2020, apregoa-se a inovação nos meandros da economia como se fosse uma coisa boa em si mesma. Novamente, não há juízos de valor excepto o juízo de valor universal: dá dinheiro?

Esta fixação na inovação não corresponde, contrariamente às aparências, a uma vontade de algumas pessoas em aumentar o bem-estar da sociedade como um todo. É apenas, e de um modo quase gritante, o sistema económico a arranjar formas de continuar a seguir em frente, a crescer exponencialmente, a aumentar a taxa de retorno do capital e a criar empregos mais rapidamente do que eles são destruídos.

Note-se que a "destruição" dos empregos devia ser considerada uma coisa boa! Isso devia significar mais tempo livre para todos, com iguais rendimentos. A realidade é diferente deste sonho da "sociedade do lazer", porque o inovador de sucesso fica com o produto da inovação, e o trabalhador fica desempregado, sem rendimento, e irá possivelmente engrossar a enorme lista dos inovadores que não tiveram sucesso.

A inovação tem-se traduzido, de modo objectivo, numa deriva para a economia do virtual e do supérfluo.

Isso tem repercussões gravíssimas na saúde da nossa economia! Este é o momento para abrir os olhos, investigar e esclarecer as dúvidas. Não percam tempo com as opiniões dos outros, nem com as minhas. Vejam como as pessoas enaltecem nas redes sociais os trabalhadores das profissões que consideram mesmo importantes, vejam por onde as pessoas vão começar a cortar o consumo, vejam quantos postos de trabalho serão afectados por isso, vejam como a economia sofrerá e como as dívidas e os respectivos juros irão disparar.

3 – A economia real, a futilidade e a crise económica
  • As crises económicas raramente têm a sua origem numa escassez de bens e serviços essenciais.
  • A crise que vem será mais um exemplo: não faltarão bens essenciais, mas haverá muitos desempregados sem acesso a eles.
  • Tentar empregar esses desempregados em sectores de produção de bens essenciais, para que possam ter rendimento, não é uma solução. De facto, os aumentos de produtividade que nos empurraram para a economia do supérfluo não são reversíveis, e cedo estaríamos em crise de sobreprodução.
Na economia tudo está interligado, e as mesmas realidades podem ter várias facetas. A produção global de uma região, por exemplo, pode ser medida pelo valor acrescentado gerado durante a produção dos bens e serviços, pode ser medida pelo rendimento que as pessoas receberam, ou pode ser medida pelo valor dos bens e serviços consumidos. Com algumas artimanhas contabilísticas, estes três valores são equivalentes.

Quando há uma diminuição no rendimento dos agentes económicos, eles consomem menos. A quebra no consumo induz uma quebra na produção, e a quebra na produção acentua a diminuição do rendimento. É um fenómeno que se auto-alimenta. O mesmo pode ser dito de uma evolução positiva, o que aliás justifica a lógica do crescimento económico exponencial (a famigerada meta de crescimento do PIB de 3% ao ano), um alastramento semelhante ao de um vírus.

Ao contrário do que pode parecer, muitas crises não são originadas por quebras na produção, mas antes precisamente pelo oposto: por excesso de produção. De facto, numa economia de mercado o excesso de produção conduz a uma diminuição dos preços, e se esse efeito for pronunciado, os próprios proveitos também descem (multiplicação da quantidade pelo respectivo preço). E é este excesso de produção e a diminuição imediata dos proveitos que depois, mas só depois, conduz ao encerramento de empresas e acaba por originar uma escassez de produção.

A crise que ainda estávamos a viver, e digo "estávamos" porque agora estamos num ponto de viragem, vinha de 2008. Essa crise foi originada por razões ainda menos óbvias. Muitos saberão papaguear coisas como "foram as hipotecas nos Estados Unidos". Mas o que é que isso quer dizer exactamente?... Como é que as hipotecas nos Estados Unidos acabaram por se repercutir nos nossos salários?...

Em boa verdade, a crise de 2008 teve a sua origem precisamente naquilo a que classifiquei de "economia virtual". Foi a interacção entre os bancos e os mercados financeiros que fez com que alguns bancos "quisessem cair". Do modo que o sistema financeiro foi e está construído, quando um banco cai, arrasta muitos outros negócios consigo, num efeito dominó. Portanto os Estados intervieram para os segurar. Foram-nos aos bolsos, literalmente, e gastaram dinheiro público nisso, sem nos perguntar. E quando esse dinheiro acabou, foram buscar mais, aos enigmáticos e elusivos "credores". Os mesmos que ainda hoje, passados 12 anos, recebem anualmente tanto quanto é gasto com todo o Sistema Nacional de Saúde.

Quando registaram a declaração do IRS no ano passado, repararam na imagem que a Autoridade Tributária nos disponibilizou?


"Saiba para onde vai o dinheiro dos seus impostos”... mas a maioria não sabe. Repare naquela fatia verde, bem grande, em baixo à esquerda, a dizer “operações relacionadas com a dívida pública”... Se quiserem saber qual é a fatia dos impostos que desde 2008 foi inutilizada através do pagamento de juros, sugiro uma consulta das Contas Gerais do Estado.

Portanto, e colocando as coisas de uma forma simples, quanto menos "real" é a economia e quanto mais supérflua é, maior é o risco de grande volatilidade e de crises económicas mais profundas.

O momento actual deve permitir-nos entender isso muito facilmente: tudo pára, excepto o essencial.

Não quero ser mal interpretado: todos queremos coisas supérfluas! Todos queremos jantar fora de vez em quando, todos queremos jóias, e ir ao cinema e ter uma bicicleta com quadro em fibra de carbono e ir ver o concerto dos sei-lá-quê. Saibamos ser consumidores responsáveis, e esses bens e serviços podem ser muito bons! Mesmo que aprender a conseguir viver sem eles também possa ser bom.

(Neste momento devo ter perdido metade dos leitores, indignados que eu tenha classificado a actividade económica onde actuam como supérflua. A minha também é supérflua... e talvez fosse bom não sermos tão melindrosos. Todos gostamos de filmes em que o herói toca piano durante um bombardeamento aéreo e isso faz as pessoas acreditar e lutar e... e isso é nos filmes. Na prática, os frios números dirão quais foram os produtos que as pessoas continuaram a consumir e os outros cujo consumo foi significativamente reduzido.)

Infelizmente, no sistema económico que temos, aqueles cuja vida (não apenas económica) depende de actividades económicas menos essenciais, está claramente em maior risco numa situação de crise. Não há, no entanto, possibilidade de empregá-los de outro modo. A produtividade é hoje de tal modo elevada que os bens essenciais de que necessitamos são produzidos por uma quantidade mínima de pessoas.

Por exemplo, um grupo profissional que nos dias que correm aparece às vezes incluído no grupo dos "heróis", são os produtores de bens alimentares. Mas no actual estado da arte, basta-nos uma muito pequena minoria de pessoas a trabalhar nesse sector para alimentar toda a gente.

E assim sendo, não adianta tentar fazer com que a economia regresse à sua base.

Com a economia que temos, no curto prazo, haverá bastantes pessoas que terão de cortar no consumo supérfluo e haverá ainda alguns que não terão o suficiente para o consumo essencial. No médio prazo, inevitavelmente, a quebra na procura irá acabar por afectar todos os sectores, mesmo os sectores de bens essenciais.

4 – Mas... tem de ser assim?
  • O problema das crises não é a existência ou inexistência de bens essenciais, é a forma como eles são ou não distribuídos por todos.
  • Numa verdadeira democracia, as pessoas proteger-se-iam, aprovando regras de distribuição apropriadas.
O principal objectivo na condução de uma economia deve ser o de garantir que todos, numa situação de crise ou fora dela, e independentemente das suas características pessoais, tenham acesso aos bens e serviços essenciais

Cada pessoa terá a sua noção subjectiva sobre o que é ou não essencial, mas talvez com algum esforço possamos encontrar um consenso, e logo algum tipo de definição objectiva de bem essencial.

Conforme vimos nos pontos anteriores, a escassez de bens essenciais não é geralmente um problema. Pelo contrário, o problema é às vezes a sua superabundância. Mas se assim é, porque é que existem pessoas sem acesso aos bens essenciais?

Porque é que, nas crises, tantas pessoas ficam com acesso comprometido a bens essenciais, se existe capacidade produtiva para a satisfação de todos?

A resposta é: falta de dinheiro. A necessidade só se traduz em procura efectiva, se os agentes económicos tiverem possibilidade de pagar. Do modo como a nossa economia funciona, se eu posso fazer um sumo de limão, e se outra pessoa quer beber um sumo de limão, mas não tem como pagar... então eu não faço um sumo e ela não bebe!

Vemos assim que as próprias crises são elas mesmas, em grande medida, coisas virtuais!...

Não há como pagar, porque não há rendimento. Não há rendimento porque não há produção. Não há produção porque não há procura.

Pensemos novamente nos luditas. No seu caso, as máquinas substituíram-nos e eles ficaram desempregados. Mas comparemos a situação anterior e posterior à inserção das máquinas na fábrica. Antes das máquinas havia X pessoas e a fábrica produzia Y produtos. Depois das máquinas havia X pessoas e a fábrica produzia Y ou mais produtos. Afinal, onde está o problema?...

Se em ambos os casos o produto é o mesmo, então o rendimento também é o mesmo. O problema está, como sempre esteve e continua a estar, no modo como esse rendimento é repartido pelas X pessoas. Antes das máquinas, todas as pessoas recebiam uma parcela do produto. Depois das máquinas, o produto passou a ser repartido por uma minoria (que viu assim aumentado o seu rendimento) e a maioria passou a receber nada.
E isso, dirão muitas pessoas, está certíssimo, pois é precisamente a expectativa de um maior rendimento que faz com que o empreendedor invista no progresso tecnológico, que é o que faz com que o nosso mundo possa andar para a frente. Mas se para "andar para a frente" a economia precisa de criar não apenas desempregados, mas pessoas sem acesso aos bens e serviços essenciais, então alguma coisa deve mudar.

O problema, desde a origem dos tempos, sempre foi a apropriação dos rendimentos: quem é que fica com o quê.

Numa sociedade ou economia onde as regras fossem efectivamente ditadas pela maioria das pessoas, aquilo a que comummente se chama "democracia" (apesar de depois na prática se achar que uma democracia é simplesmente uma sociedade onde de tempos a tempos se vota), os rendimentos gerados pelo progresso tecnológico seriam certamente repartidos por todos, ainda que não necessariamente de forma igual. Assim, o trabalho que deixava de ser necessário numa actividade seria reconvertido noutra actividade considerada útil por todos, ou em tempo livre dedicado a actividades não remuneradas.

5 – Solução habitual: mais do mesmo
  • As regras das nossas economias são ditadas pelos governantes.
  • Tipicamente os governantes atacam as crises pondo mais dinheiro a circular sob a forma de empréstimos. Isso está a acontecer neste preciso momento.
  • Emprestar a quem já está falido cria uma situação de dependência impossível de extinguir e só agrava o problema.
  • Empréstimos em tempo de crise levantam a questão da legitimidade dos juros cobrados, e a questão de saber qual a origem desse dinheiro, que antes supostamente não existia.
Nas nossas economias, intrinsecamente e cada vez mais propensas a crises, a solução passa sempre pela "injecção de liquidez". Esse é o jargão tantas vezes utilizado para a colocação de mais dinheiro em circulação. Há muitas maneiras de colocar mais dinheiro em circulação na economia. Mas tipicamente recorre-se a apenas uma maneira: "linhas de crédito". Ou seja, empréstimos.
No ponto anterior, levantámos a questão do porquê da existência de pessoas sem acesso a bens essenciais em simultâneo com a capacidade de produção desses bens para a satisfação de todos. Vimos que isso acontece porque as pessoas sentem a necessidade, mas não têm meios de pagamento. Os empréstimos são, efectivamente, uma forma de ultrapassar momentaneamente este problema, dando às pessoas esses meios de pagamento, a troco da sua restituição futura e do pagamento de juros.

Mas quando os governos injectam liquidez, geralmente fazem-no através da criação de incentivos aos empréstimos dos bancos às empresas. Os empréstimos directos às famílias são deixados para último recurso, no caso de famílias que decididamente não conseguem manter o consumo mais essencial, como por exemplo a habitação.

Agora mesmo, no início da crise que se segue (de crise em crise...), o governo português veio anunciar, em consonância com instituições de outros países e supranacionais, empréstimos a juros "bonificados" para empresas no valor de vários milhares de milhões de euros.

Desde 2008 que o Estado português, e logo todos nós, está refém de uma dívida pública enorme que, conforme já referi de passagem no ponto 3, consome anualmente em juros um montante equivalente ao custo de todo o Sistema Nacional de Saúde. O "equilíbrio das finanças" passou a ser a pedra de toque, e o ministro que menos gasta é idolatrado como o antigo ditador Salazar.

Como é então possível que agora, de repente, o défice e a dívida já não constituem problema, e o discurso do "não há dinheiro" é instantaneamente substituído pelo "crédito para todos"?

Como é possível?... Como é possível que a taxa de juro média da dívida portuguesa seja bastante superior à taxa de juro que agora se irá conceder às empresas para as salvar da crise que aí vem?

Já veremos como é possível. Porque sim, é possível, e sem qualquer dificuldade. E entretanto andámos estes anos todos à míngua...

Mas regressemos à nossa linha. O governo anuncia então a disponibilidade de dinheiro para ser emprestado às empresas. São os bancos a emprestar, claro, porque o governo não tem dinheiro.

As empresas com quebras nos rendimentos obtêm assim um empréstimo, e com esse valor poderão manter o pagamento dos salários e a actividade produtiva, mesmo que não consigam vender tanto como antes. Se isto for feito para o todo da economia, as pessoas continuarão a receber o seu salário, os rendimentos irão manter-se, mais tarde ou mais cedo o susto passará, as pessoas poderão consumir nos mesmos níveis pré-crise, e tudo regressará ao normal.

Tudo, excepto um pormenor muito importante: as empresas estarão a funcionar em pleno, mas terão agora dívidas de valor avultado para pagar. E isso é um problema grave!

Se antes do coronavírus uma empresa laborar perto da linha de água, ou seja, com proveitos e custos de grandeza comparável, será difícil que consiga, após a crise, amortizar o empréstimo que entretanto contraiu. Esta será a situação de muitas pequenas empresas por este país fora, e provavelmente por este mundo fora. Esses pequenos empresários ver-se-ão confrontados agora com a difícil decisão de terminar o negócio por completo, ou preservar os postos de trabalho e avançar com o empréstimo, na esperança que um dia no futuro a dívida possa ser paga. É uma decisão muito difícil! E, para além de todo o peso que já têm nos ombros, ainda terão de sofrer a censura de uma sociedade inteira que tantas vezes põe uma gravata em cada fato-macaco e mete tudo no mesmo saco, sem fazer as devidas distinções.

Como se isso não fosse bastante, o nosso ministro da economia anunciou que os empréstimos teriam spreads de 1 a 1,5%. Ou seja, os bancos arriscam-se a fazer muito dinheiro com esta crise!... Por cada mil milhões de euros de empréstimos, os bancos arrecadarão anualmente (e durante sabe-se lá quantos anos) 10 milhões de euros. Os defensores do nosso sistema bancário dirão que os bancos estão a fazer o seu trabalho, que se é trabalho tem de ser remunerado, que existe um risco inerente aos empréstimos que tem de ser coberto, e muitas outras coisas. Sim... mas nada disso impede que as coisas poderiam ser feitas de outro modo. Obrigar as empresas a recorrer a empréstimos que dificilmente conseguirão pagar a médio prazo e ainda por cima cobrar-lhes um juro, parece-me imoral. Mas, lá está, a nossa economia não é dada a moralidades. Se dá para fazer dinheiro, então está certo. E como isto dá para fazer muito dinheiro, então está certíssimo.

Não é demais lembrar que houve um tempo, na história da humanidade, em que emprestar a pessoas carenciadas com o objectivo de obter um ganho, um juro, era classificado como usura, ou agiotagem. E quem o praticava era o usurário, ou agiota.

Mateus 6:24: "Ninguém pode servir a dois senhores, pois odiará a um e amará o outro, ou será leal a um e desprezará o outro. Não podeis servir a Deus e ao dinheiro."

Porém, na actualidade, podemos ouvir o nosso Primeiro Ministro a dizer "agora é a fase de serem os bancos a ajudarem todos aqueles que são essenciais serem ajudados". O que antes era agiotagem, agora é ajuda. E ainda teremos de agradecer!

6 – De onde vem o dinheiro para os empréstimos?
  • O dinheiro tem uma natureza virtual: serve para trocar, mas não tem qualquer outra utilidade.
  • Exceptuando as notas e moedas, que são uma pequena fracção de todo o dinheiro que existe, o dinheiro não tem existência física.
Levamos demasiados anos a ouvir o hino do "não há dinheiro". O "não há dinheiro" justificou, desde 2008, o congelamento dos salários da função pública (com as devidas repercussões no privado e em toda a economia), o congelamento da admissão de novos funcionários públicos, mesmo em serviços carenciados (e sim, há objectivamente muitos serviços públicos necessários às nossas vidas com escassez de recursos humanos, como é agora evidente no Serviço Nacional de Saúde), a diminuição do investimento público, o aumento de impostos, a privatização de empresas como os CTT, a ANA, a REN, a EDP e outras.

Todas as medidas de austeridade conseguiram, além de tornar a nossa vida razoavelmente pior, fazer com o valor da dívida pública portuguesa passasse de próximo de 130 mil milhões de euros em 2008 para próximo de 250 mil milhões de euros no presente (a preços de 2016). Isto TEM de fazer-nos pensar.

Tantas vezes foi repetido que "não há dinheiro" que todos acabámos por aceitar como uma verdade que não há mesmo dinheiro.

Agora, afinal, surge um rio de dinheiro!

Podíamos pensar que este dinheiro seria emprestado pelos tais elusivos "credores", e que esses credores estariam noutro país. Aparentemente faz sentido: o dinheiro surge em Portugal vindo de outro país.

No entanto, os outros países sofrem do mesmo coronavírus e sofrerão da mesma crise económica, e portanto os empréstimos irão estar disponíveis para as empresas de todos os países em simultâneo!

Então afinal há dinheiro?... De onde vem esse dinheiro?... Dos Rockefeller?...

É de primordial importância que se entenda o processo de criação de dinheiro. É estonteante perceber que vivemos num mundo onde a moral que mais conta é a do dinheiro, e no entanto a grande maioria das pessoas não sabe explicar como o dinheiro surge!

Sem perceber a origem do dinheiro é impossível perceber a economia em que vivemos.

Mesmo sem saber a origem do dinheiro, é fácil entender o que o dinheiro é. O dinheiro é, de forma simples, algo que é aceite na economia como meio de pagamento. Nesta acepção simples poderão entrar outras coisas para além de moedas e notas, como por exemplo sacos de arroz, desde que eles sejam aceites como meio de pagamento, por exemplo, quando vou ao dentista.

Aquilo que é usado como meio de pagamento tem então um valor de troca: quando eu vou ao dentista e levo sacos de arroz para pagar, o dentista e eu acordamos entre nós que um determinado número de sacos de arroz vale uma consulta. Mas o dinheiro também pode ter um valor de uso, um valor intrínseco. Neste exemplo, o arroz tem valor em si mesmo, pois podemos usá-lo para outros fins que não apenas como meio de pagamento.

Quando o dinheiro é composto de coisas físicas que possuem um valor intrínseco, isso pode levantar uma série de problemas. Se na nossa economia os pagamentos fossem feitos em arroz, haveria uma tendência grande para aldrabar a quantidade de arroz que estava nos sacos. Seria necessário medir com rigor os sacos de arroz recebidos em cada transacção. Além disso, o arroz passaria a ser bastante cobiçado por todos. Os produtores de arroz teriam uma vantagem face a outros produtores, pois poderiam utilizar o fruto da sua actividade produtiva directamente como meio de pagamento. O arroz poderia deteriorar-se, se alguém o tentasse armazenar por muito tempo. E seria difícil "injectar" dinheiro na economia.

Moedas de ouro apresentavam algumas vantagens perante sacos de arroz. Os detentores do poder, fossem quem fossem, cedo perceberam que cunhando moedas com símbolos próprios e proibindo, energicamente, a contrafacção e a adulteração das suas moedas, podiam fazer com que o valor de troca fosse superior ao valor de uso.

Esta diferença entre valor de uso e valor de troca disparou no momento em que se inventaram as notas. As primeiras notas eram papéis que atestavam depósitos de moedas ou outros valores junto de um qualquer "guardador". Se as pessoas acreditassem que o papel que recebiam conferia o direito de ir junto desse "guardador" levantar o dito depósito, então tudo correria bem. O valor de uso do papel era quase nulo, mas o seu valor de troca podia ser muito elevado: o dinheiro deixou de ter valor intrínseco.

As notas tornaram-se tão comuns que toda a gente as aceitou como meio de pagamento.

Algumas notas ainda possuem uma inscrição que denota a sua origem como certificado de depósito. Na imagem em baixo pode ler-se "the United States of America will pay to the bearer on demand One Dollar".


Mais recentemente os depósitos bancários tornaram-se tão vulgares e a tecnologia tão avançada, que passou a ser possível efectuar pagamentos transferindo imediata e automaticamente dinheiro de uma conta bancária para outra. Assim, o dinheiro, que já tinha perdido o seu valor de uso, perdeu também o seu suporte físico.

Ou seja, no mundo de hoje, o dinheiro é algo que não tem suporte físico, que não tem qualquer valor intrínseco, mas que toda a gente aceita como pagamento. É um pouco... virtual!

Mas entender isto, não responde à questão de saber de onde o dinheiro vem. Imaginemos, para simplificar, que o dinheiro actual é constituído apenas por notas e valores em contas bancárias. De onde é que essas notas e esses os valores registados nos bancos vêm?

As notas são pedaços de papel. Papel muito sofisticado, para ser difícil de falsificar. Mas, apesar de tudo, pedaços de papel. E são produzidas em fábricas. As notas de euro são produzidas em diversas fábricas no espaço europeu. Em Portugal, são produzidas pela empresa Valora, detida totalmente pelo Banco de Portugal. No seu portal na Internet indicam que em 2017 produziram 144 milhões de notas de 20€, ou seja, notas num valor de troca total de 2880 milhões de euros. Só que essas notas, no momento em que saem da fábrica, não têm esse valor, uma vez que não estão em circulação.

As notas entram legalmente em circulação quando um agente económico se dirige a um banco e efectua um levantamento, seja num caixa automático ou manual. Nesse momento, as notas são entregues a esse agente, mas em contrapartida o valor da sua conta bancária diminui. Podemos então afirmar que as notas substituem temporariamente, até serem de novo depositadas algures por alguém, os valores que as pessoas têm nas suas contas bancárias.

Tudo, portanto, e nas economias actuais, se resume aos valores inscritos nas contas bancárias. Mais adiante veremos como esses valores das contas bancárias são gerados.

7 – Vantagens e inconvenientes do poder de gerar dinheiro
  • O poder da geração e introdução de dinheiro na economia permite o financiamento de projectos considerados necessários e o impulso da actividade económica.
  • A injecção de liquidez na economia poderá também causar um aumento generalizado dos preços ou uma desvalorização da moeda face a moedas estrangeiras.
  • O efeito predominante depende do modo como a economia responde ao aumento da procura e da dependência que a economia tem face a produtos importados.
  • A desvalorização da moeda não é algo necessariamente mau, uma vez que cria um estímulo para a produção local substituir as importações e torna as exportações mais apetecíveis a quem possui outras moedas.
Vamos imaginar, por um momento, que somos reis de um qualquer pedaço de terra na idade-média. No espaço da nossa jurisdição só nós podemos emitir moedas. Isso confere-nos um poder imenso! Imaginemos que queremos construir um convento megalómano numa aldeia chamada Mafra. Será que o problema do "não há dinheiro!" se coloca?... Não! Se nos faltar dinheiro, simplesmente cunharemos mais moedas e utilizá-las-emos como meio de pagamento aos trabalhadores. Bom, se formos verdadeiros déspotas poderemos simplesmente chicotear os trabalhadores. Mas com dinheiro a coisa fica mais sofisticada e dá menos azo a escaramuças.

A capacidade de cunhar mais ou menos moedas pode ser utilizada para fins mais meritórios. Por exemplo, se a actividade económica em todo o reino aumentar (número de transacções e respectivo valor médio), poderá haver falta de moedas, o que irá dificultar as transacções. Nesse caso, simplesmente cunharemos mais moedas e arranjaremos forma de as introduzir na economia: ou distribuindo-as aleatoriamente em viagens de avioneta, ou dando-as aos pobres ou, por exemplo, encomendando outra obra megalómana.

Mas quando o rei cunha e distribui novas moedas pelas pessoas, o que acontece à economia?... Provavelmente quem recebe as moedas irá guardar uma ou outra, e irá gastar as restantes, comprando as coisas que antes não podia comprar. Todas as pessoas na economia tenderão assim a aumentar o seu consumo. Mas, para que o consumo possa aumentar, é necessário que haja mais bens e serviços disponíveis, ou seja, é necessário que se produza mais. Os vendedores, ao verem o consumo a aumentar e os seus stocks a diminuir, poderão fazer duas coisas: aumentar os preços para aproveitar a febre da sexta-feira preta cheia de novas moedas cunhadas pelo rei, ou aumentar as encomendas e pressionar os produtores para produzir mais. O mais provável é que na economia toda haja uma combinação destes dois efeitos.

No entanto, um vendedor só terá sucesso no aumento dos preços de venda se efectivamente os bens começarem a escassear. Caso contrário, os clientes irão simplesmente comprar a preços mais baratos na loja ao lado.

Portanto, temos aqui uma lição importante: quando se emite e se introduz mais dinheiro na economia, gera-se um aumento na procura. Se a oferta estiver em condições de acompanhar esse aumento na procura, o efeito predominante é o aumento da produção, que por sua vez irá conduzir a um aumento do rendimento, o que irá sustentar esse aumento da procura nos momentos subsequentes. Se, pelo contrário, a oferta não estiver em condições de acompanhar o aumento na procura (o que pode acontecer por falta de algum tipo de recurso produtivo, ou simplesmente por inércia das empresas), então o efeito predominante será o aumento dos preços.

Podemos também considerar o que aconteceria se a economia não fosse, à partida, auto-suficiente, e tivesse que importar uma parte dos produtos consumidos. Nesse caso, a procura de importações aumentaria, e os fornecedores do exterior responderiam com uma combinação de dois efeitos: aumento da quantidade e aumento de preços. Porém, o aumento de preços em transacções internacionais é muitas vezes mediado através da taxa de câmbio.

O vendedor internacional mantém o preço de venda expresso na sua própria moeda, independentemente do destino da encomenda: um vendedor de tapetes da Pérsia, continuará a cobrar X unidades monetárias da Pérsia, quer o tapete seja vendido para um reino ou para outro. Mas se nós quisermos comprar muitos tapetes, o vendedor da Pérsia irá eventualmente ficar com excesso de dinheiro do nosso reino, que mais ninguém quer a não ser as pessoas do nosso reino, e portanto ele acabará por valorizar menos esse dinheiro. Ou seja, a nossa moeda passará a valer menos a nível internacional.

A lição anterior pode então ser reformulada do seguinte modo: a introdução de dinheiro na economia tende a aumentar a actividade económica, a aumentar a inflação caso o tecido produtivo não consiga responder adequadamente, e a desvalorizar internacionalmente a nossa moeda caso estejamos muito dependentes das importações.

Note-se, todavia, que uma desvalorização da moeda não é necessariamente uma coisa má. Este é um assunto que geralmente origina muitos mal-entendidos. No jargão da economia, uma moeda "forte" não é uma moeda que tem uma taxa de câmbio alta, mas sim uma moeda cuja taxa de câmbio não varia muito no tempo. Por exemplo, o facto de um euro valer actualmente cerca de 120 ienes (moeda do Japão), não tem qualquer significado acerca da "força" ou da qualidade da moeda em si.

Por outro lado, as valorizações e desvalorizações das moedas têm sempre vantagens e inconvenientes, e o seu efeito líquido não é evidente. De facto, quando uma moeda desvaloriza, as importações tornam-se mais caras, o que é mau para os consumidores e para os importadores de matérias primas, mas isso estimula a economia local a produzir mais para substituir essas importações, o que é bom. Por outro lado, as exportações tornam-se mais baratas (mau), mas isso faz aumentar a sua procura (bom).

8 – A inflação
  • As variações imprevisíveis nos preços aumentam o risco nas transacções económicas.
  • A inflação subtrai valor real às poupanças em dinheiro.
  • Quando os salários aumentam em consonância com a inflação, eles não perdem valor.
  • Consequentemente, a inflação é um problema sobretudo para quem tem grandes poupanças em dinheiro.
  • A deflação conduz geralmente a uma retracção do consumo e consequentemente de toda a actividade económica.
Mas afinal, qual é o problema da inflação?...

A inflação é uma subida generalizada dos preços na economia. Isso tem essencialmente dois efeitos nefastos: aumento do risco e perda de valor. O risco de realizar investimentos aumenta quando a evolução dos preços não é fácil de prever. Isso é de fácil compreensão. Mas se a inflação for constante, mesmo que elevada, a evolução dos preços será fácil de prever e o risco nas transacções será baixo.

O problema principal da inflação é a perda de valor de tudo aquilo que pode constituir uma reserva de valor e não tem valor de uso. De facto, se existir valor de uso, então o seu preço irá aumentar juntamente com os preços dos outros bens e serviços todos da economia. Mas se não existir valor de uso, como no caso de uma nota, então o seu valor de troca diminuirá. Exemplificando: se reservarmos valor através da acumulação de madeira, quando os preços subirem de forma generalizada, o preço da madeira também irá subir, e assim o seu valor irá manter-se. Se reservarmos valor num depósito a prazo, quando os preços subirem de forma generalizada a nossa reserva de valor passará a valer menos em termos reais, uma vez que com os mesmos euros poderemos comprar menos produtos.

Todas as economias contemporâneas possuem serviços estatísticos que produzem regularmente estatísticas sobre a evolução dos preços. As taxas de inflação divulgadas servem de guia para todos os agentes económicos. Isso gera um efeito que se auto-alimenta e que não só perpetua as subidas dos preços, mas também os homogeneiza em toda a economia, para todos os bens e serviços e para todos os recursos, inclusivamente a mão-de-obra.

De facto, se os trabalhadores sabem que a inflação dos últimos meses foi de um determinado valor, eles terão toda a legitimidade de pressionar os empregadores no sentido de conseguir um aumento que pelo menos reponha esse poder de compra. Se isso não acontecer, então a inflação irá traduzir-se numa perda de valor do trabalho.

Se, no entanto, e conforme é comum em muitas economias e em muitos períodos, os preços, inclusivamente do trabalho, subirem todos de uma forma aproximadamente homogénea, então os preços relativos irão manter-se, e o único efeito de monta será a perda de valor do dinheiro.

Ora isso é um problema grave para quem tem as suas poupanças em notas ou numa conta bancária!

Ao contrário do que se possa pensar, a inflação acaba muitas vezes por ter um impacto maior na riqueza dos muito ricos, do que no salário dos trabalhadores. Porque enquanto os salários tendem, em condições normais, a sofrer aumentos que pelo menos compensam a inflação, o detentor de riqueza sente a inflação como uma desvalorização constante e inexorável do seu dinheiro.

Quem tem muito dinheiro está permanentemente preocupado em encontrar aplicações que possuam um retorno superior à inflação e em usar o seu poder no sentido de reduzir a inflação ao mínimo.

Os preços também podem descer de forma generalizada. Nesse caso existe deflação, o que na nossa economia é geralmente um problema para todos, uma vez que tende a retrair toda a actividade económica. O modo mais fácil de entender este mecanismo é pensar que os consumidores não têm incentivo para comprar logo, pelo contrário, têm incentivo para adiar o consumo, esperando pela queda nos preços. Adiar o consumo diminui as vendas, diminui os proveitos, diminui os rendimentos, diminui a produção... Por isso as situações de deflação são sempre indesejadas.

9 – A guerra pelo controlo da emissão de dinheiro
  • O poder da emissão de dinheiro foi, ao longo dos séculos, transferido do rei para órgãos políticos onde estavam representados os interesses dos poderosos.
  • Na Europa, a transferência recente do poder de emissão de dinheiro para o Banco Central Europeu (BCE) não foi uma medida democrática, mas um acordo entre homens de negócios.
  • O BCE não tem por objectivo emitir moeda para impulsionar a economia, mas sim controlar a emissão de moeda de modo a manter a inflação em torno dos 2%.
Se, ainda no nosso hipotético reino, nós não formos o rei, mas formos um próspero burguês, pagando a mercenários para piratearem os povos e os mares e vendendo produtos importados a quem os pode pagar, acumulando com isso uma grande fortuna, não vamos achar muita graça ao poder que o rei tem de emitir mais ou menos dinheiro conforme lhe convém.

Conforme vimos, a introdução de mais dinheiro na economia cria instabilidade, o que é mau para o negócio, e além disso pode aumentar a inflação, retirando valor real à nossa fortuna.

Se nós somos ao mesmo tempo poderosos, porque ricos, e não gostamos da actuação do rei, vamos naturalmente fazer o que estiver ao nosso alcance para resgatar ou pelo menos controlar esse seu poder. Raramente, ao longo da história, alguém possuiu exércitos mais poderosos que os do rei, pelo que guerreá-lo não era geralmente viável. O que não obstava a que se lançassem as tropas do rei em batalhas contra uma data de inimigos dos senhores ricos, desde que se convencesse o rei que eram também seus inimigos. Mas a luta pelo poder foi sendo construída por dentro.

Com o passar do tempo, e com ou sem o seu consentimento, o rei foi perdendo poder, sendo cada vez mais relegado para um papel semelhante ao do actual Presidente da República. O nosso Dom Carlos gostava de pintar...

A luta pelo poder de emitir muito ou pouco dinheiro, e decidir o modo de o introduzir em circulação, passou a jogar-se nas câmaras, parlamentos, assembleias ou outras instituições similares. O jogo político começou. De resto, introduzir mais ou menos dinheiro na economia é uma questão que diz respeito a todos, e portanto é, e sempre foi, uma questão política.

Emitir dinheiro sempre foi, e ainda é, uma ferramenta poderosíssima da política económica.

Mas se a emissão de dinheiro é uma ferramenta poderosa, e se o poder é sempre cobiçado, como é que Portugal perdeu esse poder?

Imaginemos que Portugal, ou qualquer outro país europeu, contém vários grupos de gente poderosa que vai alternando no poder. Consoante a respectiva política, ora se emite mais dinheiro, ora se emite menos, ora se distribui por estes, ora por aqueles. Entretanto, com o passar do tempo, a economia europeia vai-se interligando e estabelecendo relações comerciais cada vez mais importantes, assim como transferências de capitais e relações de poder. Eventualmente, o contexto de incerteza em relação às diversas inflações de cada país e às taxas de câmbio vai dificultar os negócios.

Entre a possibilidade de os poderosos europeus se guerrearem permanentemente ou ficarem sujeitos ao poder de outros, a transferência do poder de emitir dinheiro para uma instituição "independente" como o Banco Central Europeu (BCE) foi uma espécie de acordo de cavalheiros.

Houve algum referendo sobre o assunto?... Não, não houve. Houve sequer um debate profundo na sociedade sobre as vantagens e os inconvenientes de o fazer?... Não, não houve. Houve apenas uma decisão conjunta dos poderosos de cada um dos países europeus para fazer essa transferência de poder. E nós ficámos suficientemente entretidos com as novas notas e moedas, e a possibilidade de as usarmos no estrangeiro, para não prestarmos a devida atenção ao essencial.

E foi assim que uma das mais poderosas ferramentas de política económica, cujo domínio foi motivo de cobiça e guerras durante séculos, foi transferida alegremente para uma instituição longínqua, que na verdade ninguém sabe bem quem controla. Pistas para investigação: quem controla o BCE? quem controla as pessoas que controlam o BCE?

O BCE, segundo o BCE:


Uma outra perspectiva (que não é a minha, mas é interessante) sobre o sistema monetário europeu:


Já vimos no ponto 7 que a emissão de dinheiro produzirá uma combinação de dois efeitos: aumento da actividade económica e aumento dos preços. Dependendo do contexto, o efeito predominante será um ou outro. Assim, o BCE podia utilizar a política monetária para aumentar o emprego em períodos de maior desemprego, ou para estimular as empresas em momentos de recessão (sempre com o objectivo do crescimento incessante!). Mas não! O único objectivo do BCE é o de manter a inflação em níveis baixos. Ponto. Porquê?...

Esta questão que eu levanto é de primordial importância em momentos de crise, como aquela que se avizinha. Porque num contexto de crise o BCE pode emitir mais dinheiro e aguentar o barco. Só que essa não é a função que lhe compete segundo os próprios estatutos. É assim, por causa dos estatutos. Os estatutos foram redigidos pelos poderosos. Os poderosos fizeram o que mais lhes conveio, alimentando a opinião pública com os chavões habituais: "o que é bom para a economia é bom para todos nós" ou "para distribuir riqueza é primeiro necessário gerá-la".

A minha tese é que isso é assim porque a inflação, além de atrapalhar os negócios, corrói as fortunas e obriga-as a procurar aplicações mais rentáveis, o que é cada vez mais difícil num mundo cada vez mais globalizado e competitivo. Todavia, só quem esteve dentro das cabeças desses poderosos é que pode afirmar com segurança a real razão do nosso sistema monetário ter sido construído deste modo.

10 – Como é que o BCE introduz dinheiro na economia?
  • O BCE introduz dinheiro na economia estimulando o aumento do crédito.
  • O crédito é estimulado através da descida da taxa de juro dos empréstimos do BCE aos outros bancos e, como resultado da concorrência entre estes, através da descida da taxa de juro dos empréstimos aos agentes económicos: famílias, empresas e Estados.
  • Os valores nas contas bancárias são gerados no momento em que o banco atribui crédito, são transferidos entre contas nas operações de compra e venda, e são extintos no momento em que se paga a dívida ao banco.
  • A aparente luta entre os maiores partidos dos países "ocidentais" entre maior ou menor intervenção do Estado na economia é uma distracção que contribui para perpetuar o actual sistema.
  • O nosso sistema monetário confere a instituições privadas e nada democráticas chamadas bancos o poder da repartição do dinheiro novo e o poder da cobrança de juros dos devedores.
O rei podia cunhar moedas e entregá-las a quem quisesse. Mas o BCE funciona de um modo diferente.

O BCE, assim como toda a União Europeia, é o produto dos interesses de homens de negócio que acreditam no funcionamento dos mercados. Não é, como alguns acreditam, o fruto dos interesses dos povos europeus (que imagem tão bela!). E acreditar no funcionamento dos mercados quer dizer o mesmo que acreditar no salve-se quem puder. Não vou aprofundar este assunto, uma vez que não faltam estudos sobre ele, e as nossas próprias vidas são testemunhos disso mesmo.

Assim, quando o BCE quer introduzir dinheiro na economia, ele reduz a taxa de juro dos empréstimos que efectua. Mas o BCE não empresta dinheiro às pessoas, empresta dinheiro aos bancos. São os bancos, então, que emprestam dinheiro às pessoas.

A lógica subjacente a todo o mecanismo é a dos mercados. A taxa de juro faz as vezes de preço do dinheiro. Os bancos compram o dinheiro ao BCE, e vendem-no posteriormente aos agentes económicos a um preço um pouco mais elevado. Ou seja, emprestam-no a taxas de juro mais elevadas. Se o BCE vender o dinheiro mais barato aos bancos, a concorrência entre eles na tentativa de atrair agentes que queiram contrair empréstimos irá forçar as suas próprias taxas de juro a baixar. Ora, se as taxas de juro forem mais baixas, mais consumidores e mais investidores estarão dispostos a pedir empréstimos aos bancos.

Quando um agente económico (família, empresa, seja quem for) contrai crédito junto de um banco, acontece um milagre: nesse momento, um funcionário do banco digita umas coisas no computador, e imediatamente aparece um aumento de X euros na conta bancária!... É claro que, nesse mesmo instante, também surgem os mesmos X euros numa outra conta, a conta da dívida que o agente passa a ter em relação ao banco.

Podemos agora responder à questão que tinha ficado em aberto no final do ponto 6: como é que surge o dinheiro nas contas bancárias ou, mais geralmente, de onde vem o dinheiro?

A resposta é: de lado nenhum! O dinheiro surge do nada!

Para quem nunca tinha contactado com esta realidade, eu acredito que não seja fácil de engolir. Mas isto é um facto. Na realidade, o dinheiro surge do nada. E, novamente, afirmo: não acreditem no que eu estou aqui a escrever: investiguem.

Se quiserem, o dinheiro surge da dívida, uma vez que o dinheiro surge na conta bancária no momento em que também surge a dívida.

É muitíssimo importante perceber o seguinte: no nosso sistema, (1) o dinheiro só é criado pelos bancos, numa aplicação informática, criando o registo de um débito e de um crédito ao mesmo tempo; (2) o dinheiro só desaparece no momento em que se pagam as dívidas aos bancos; (3) todas as transacções de compra e venda, e todas as transferências unilaterais (as que não têm por contrapartida a transacção de um bem ou serviço), apenas fazem o dinheiro circular, transitar de um agente para outro.

Se percebermos bem este último parágrafo, já teremos entendido mais de economia do que a grande maioria das pessoas.

Por exemplo, passaremos a falar de "gastar dinheiro" com outro cuidado... Porque gastar dinheiro não é, afinal, fazer com que ele desapareça. Gastar dinheiro é simplesmente transferi-lo para outros agentes económicos. Quando um governo "gasta dinheiro" no rendimento social de inserção (ou algo similar), ele está, na verdade, a transferir dinheiro da sua posse para a posse de algumas famílias. E estas, quando o gastarem, vão estar a transferi-lo para os comerciantes que lhes vendem os produtos. Portanto, se quisermos, o governo estará a transferir indirectamente para os comerciantes e os produtores todos de toda a economia. Se o governo não "gastar" esse dinheiro, é dinheiro que não chegará aos bolsos das empresas.

Se percebermos isto, provavelmente já estaremos em condições de perceber a lógica da economia keynesiana ou de planos Marshall e coisas do género. Não existe, muito ao contrário do que tantos julgam, um conflito entre o Estado e as empresas, entre a economia social e o neoliberalismo. A economia keynesiana ou os planos Marchall são simplesmente formas de o Estado a manter a actividade económica a funcionar nos moldes habituais, isto é, num sistema capitalista. E, novamente, se percebermos isto, percebemos que afinal dois campos que julgávamos opostos são, afinal, as duas faces de uma mesma moeda.

Mas voltando ao BCE. Esse banco central podia funcionar doutro modo. Os seus estatutos podiam instruí-lo para criar dinheiro nas contas bancárias das pessoas mais necessitadas, consoante alguma assembleia de maiorais assim decidisse. Podiam, claramente, pois o dinheiro surge assim mesmo, do nada.

Deixo-vos aqui um vídeo onde se explica esta natureza virtual do dinheiro, recomendando que o vejam com a atenção que merece:


Só que quem construiu o BCE e o sistema monetário europeu, à revelia das vontades dos seus povos (que nem os próprios saberiam elencar), não quis assim. Quem desenhou o BCE preferiu montar um sistema que empresta, e sublinho este "empresta", dinheiro aos bancos, que por sua vez emprestam dinheiro às pessoas.

Os bancos, que são empresas privadas, ficam assim com o poder de gerar dinheiro e de o distribuir pelos agentes, e também com o poder de cobrar um juro como contrapartida dos empréstimos. E, quando o fazem, ainda se diz que estão a "ajudar" a economia. Não tinha de ser assim, mas quem construiu o sistema monetário europeu assim quis.

11 – Uma casa gerida pela mão invisível
  • As teorias económicas dominantes advogam que a não intervenção nos mercados é a melhor forma de atingir o óptimo social.
  • Mercados intervencionados são o estado natural das coisas. Paradoxalmente, mercados livres só existem com a intervenção dos Estados.
  • Os mercados "livres" não têm moral e conduzem-se apenas pela mais-valia da troca, ou seja, pela análise custo-benefício.
  • As nossas casas não são geridas como um mercado livre, porque implicitamente as pessoas entendem que existem muitas imperfeições nas economias caseiras, e porque as soluções da mão invisível contrariam os nossos preceitos morais.
  • As regras que utilizamos para gerir a economia são cada vez mais sofisticadas e resultam de um trabalho moroso e meticuloso de quem mais beneficia com elas.
A mão invisível é um conceito introduzido por Adam Smith em meados do século dezoito, para tornar mais concreto o mecanismo que, nos mercados, faz com que se atinjam equilíbrios que deixam todas as partes satisfeitas. A mão invisível de algum modo faz com que, no encontro da oferta e da procura num mercado livre, a procura do interesse individual conduza ao óptimo colectivo. Isto não é factual, é uma opinião.

Aprende-se nas nossas faculdades de economia a fazer uns gráficos muito bonitos de curvas da oferta e curvas da procura, que se cruzam precisamente no ponto óptimo, e depois fazem-se experiências de intervenção forçada nos mercados para fixar preços, ou fixar quantidades, ou monopolizar a produção de algo, ou seja lá o que for... e conclui-se sempre que há um desvio do ponto óptimo, e logo há uma perda de utilidade de excedente de sei lá quê, e portanto isso é muito mau. Corolário: o melhor é não intervir de modo algum e deixar os mercados funcionar por sua conta.

Ao contrário do que se possa pensar, mercados a funcionar por sua conta é coisa que nunca existiu na história da humanidade, até ao momento em que os Estados, fortes aliados das empresas, fizeram questão de gravar em leis intransponíveis que assim fosse.

Todos os povos, ao longo dos tempos, tiveram uma noção sobre o que estava certo ou errado nas transacções económicas que efectuavam, e não tinham quaisquer problemas em intervir, caso considerassem necessário. Até Jesus interveio irado no mercado cambial lá do sítio!...


Imaginemos que a nossa própria casa é gerida como se fosse um mercado. Todos os bens e serviços têm um e um só dono, e há preços para tudo. Os pais têm cada um o seu rendimento, e há um Estado invisível que os taxa, transferindo uma parte do seu rendimento para os filhos. E agora... desenrasquem-se!

Porque não?... Já houve um economista a ganhar um prémio Nobel precisamente por aplicar as teses neoclássicas à economia caseira (procurem Gary Becker, talvez gostem. Eu não o farei por questões de higiene).

Mas levemos a coisa mais a fundo. Uma criança quer comer cereais. Paga pela tigela limpa, pela colher limpa, pelo leite (se for com leite) e pelos cereais. Se quisermos, paga também pelo usufruto da cadeira.  Os outros pagam de modo semelhante. A quem é que pagam?... Bom, o cereal irão pagá-lo ao seu dono, que será a pessoa que o foi comprar numa loja e o irá vender, a um preço superior, dentro de casa. A tigela limpa irão pagá-la a quem a comprou, uma parte, mas também a quem a limpou, outra parte.

Ao fim de algum tempo já não há louça limpa. A pessoa que lavava a louça recebeu dinheiro de todas as utilizações da louça limpa, fartou-se de lavar louça e agora quer gastar o dinheiro a ver filmes no televisor que pertence a outro elemento da família. A procura por louça limpa irá fazer o preço da louça limpa aumentar. A certa altura, o preço será suficientemente elevado para que um elemento da família compre um curso online sobre lavar pratos e monte o seu próprio negócio de lavar pratos. Mas agora ele percebeu que pode monopolizar a coisa, e então resolve praticar preços elevados perante a procura de todos os outros membros da família!

Podíamos experimentar fazer as coisas assim. Querem?... Se calhar iria resultar lindamente!... Ou não, quem sabe?... A verdade é que quase ninguém gere a sua casa deste modo, apesar de, segundo alguma teoria, a mão invisível garantir que isso nos conduz ao óptimo. Porquê?

Bom... é uma longa conversa. Por um lado, essas teorias económicas partem de um conjunto de pressupostos muito fortes e muito extensos que na prática nunca se verificam: igualdade de condições iniciais dos agentes, racionalidade, conhecimento perfeito sobre tudo, concorrência, etc. E isso faz com que, em condições reais, os óptimos sejam coisas virtuais. Mas por outro lado, e talvez mais importante do que isso, sobretudo em contexto familiar, os mercados não pensam nem sentem, os mercados, e quem acredita neles, não tem moral alguma a não ser a moral do dinheiro: é para fazer dinheiro? então é bom!

Rapidamente teríamos agiotas a emprestarem coisas a preços exorbitantes, os fortes a explorar os fracos, toda a gente a transaccionar drogas e prostituição, etc., etc., etc. Que é, afinal, o que acontece nas nossas economias!...

Só que nós não queremos que as nossas casas funcionem como as economias reais! Quase todos nós possuímos (ainda) alguma moral, alguma distinção sobre o que consideramos correcto ou incorrecto. Nos tempos que correm, "moral" é uma coisa muito mal vista, talvez por associação com a imposição. Mas a existência de moral não implica a sua imposição. Infelizmente, creio, temos deitado fora o bebé junto com a água do banho, e por não gostarmos de imposição de moral acabamos sem moral alguma.

No entanto, no momento presente, a maioria das pessoas ainda se guia por alguma moral. Não consideramos correcto que as crianças trabalhem, não consideramos correcto que as pessoas tenham de vender o seu corpo para poderem comer, não consideramos correcto que os não aptos para trabalhar sejam abandonados à sua sorte, etc.

Por isso, porque confiamos na nossa capacidade de tomar decisões acertadas, e porque afinal queremos ter mão no nosso destino e fazer conforme a nossa vontade, e não consoante a vontade de qualquer mão que aí venha, visível ou invisível, somos nós quem manda nas nossas casas. Nós decidimos como as coisas hão-de ser feitas, e fazemos os possíveis para o cumprir. E depois falhamos, e mudamos de planos. Mas, a cada instante, é de acordo com a nossa vontade. Quando somos muitos, institui-se, de forma tácita ou expressa, um modo de tomar decisões colectivas (políticas): ou é cada pessoa um voto, ou o "chefe" ou "chefa" decide tudo, ou outra combinação qualquer.

Curiosamente, ao contrário do que acontece no mundo das empresas, onde geralmente os votos dos agentes têm o mesmo peso que o dinheiro que eles possuem, nas nossas casas as decisões muito raramente se baseiam no dinheiro que as pessoas têm.

Por outro lado, nas nossas casas, geralmente os mais velhos têm um voto com peso superior aos mais novos.

Porque é que as regras com que regemos as nossas economias são diferentes das regras com que regemos as nossas casas?...

Porque é que, a certa altura do campeonato, deixámos de acreditar na nossa capacidade para tomar boas decisões colectivas, e passámos a preferir ser geridos por uma mão invisível, um mercado, uma porcaria qualquer que na verdade ninguém alguma vez viu ou sabe o que é?
Ou será que isso nunca chegou a acontecer?... Será que nós nunca deixámos de acreditar na nossa capacidade de tomar decisões, mas simplesmente nunca nos deram o acesso ao poder para podermos ser nós a tomá-las?...

Será que o nosso sistema económico é obra do acaso, da natureza, ou de um deus?... Ou será que é aquele que mais convém a quem tem o poder?...

Acreditar que, no todo da sociedade e da economia, quem tem o poder está disposto a perdê-lo, de bom grado, em prol do "bem comum", é ser ingénuo. Acreditar de antemão na boa vontade de estranhos não é um bom princípio, tal como acreditar na sua má vontade. Melhor será tentar analisar como, através dos tempos, quem tem o poder fez o possível para o preservar e aumentar. A sua vontade não é boa nem má, é simplesmente uma vontade muito sua e geralmente um pouco egoísta.

Neste momento estamos numa dessas situações em que os poderosos, quem detém as fortunas e os políticos que olham pelos seus interesses, terão de se esforçar a encontrar soluções para sair da crise sem que o seu poder seja comprometido. Pelas notícias que nos vão chegando, dará direito a várias reuniões, e não se irá decidir à primeira. Mas, provavelmente, no final deste processo, o sistema económico que temos acabará por ficar mais sofisticado, e o seu poder sairá reforçado.

12 – O Estado como ferramenta dos poderosos
  • A manutenção e o apetrechamento dos "recursos humanos" em condições de serem produtivos exige um esforço financeiro significativo.
  • Originalmente esse esforço pertencia aos mestres, aos senhores dos escravos, aos donos das fábricas, mas com o tempo ele foi sendo transferido para os próprios trabalhadores e para o Estado.
  • A aparente luta entre o Estado e as empresas é falaciosa. O Estado e as empresas revesam-se na dita manutenção e apetrechamento dos "recursos humanos". O Estado elabora e impõe as regras pelas quais se rege a nossa economia – sem ele, a economia seria muito diferente.
Existe, conforme já mencionei, esta ideia de que o Estado e as suas preocupações sociais atrapalham a vida das empresas, e que as empresas querem viver com um Estado minimalista. Esta ideia é objectivamente falsa.

No entanto, apesar de falsa, é apenas natural que esta ideia se multiplique nas nossas cabeças. Porquê? Porque é uma ideia bem engendrada, que à primeira vista faz todo o sentido e sobretudo porque é constantemente propagandeada pelos nossos políticos. Ouça-se uma discussão na Assembleia da República ou um debate televisivo entre "fazedores de opinião" e, mais tarde ou mais cedo, lá há-de surgir a ideia de que as empresas querem menos impostos, o Estado está a asfixiar as empresas, ou é preciso taxar as empresas para pagar a saúde, ou algo do género. Sempre o mesmo conflito: Estado social de um lado, empresas e empresários do outro.

É assim uma espécie de luta entre pobres e ricos que toda a gente entende bem. Quem é de "esquerda", a favor dos pobres, coloca-se do lado do Estado. Quem é de "direita", a favor das empresas (não fica bem dizer a favor dos ricos... nisso, bata-se palmas à Manuela Ferreira Leite!), coloca-se do lado das empresas. Faz todo o sentido.


No tempo da escravatura legal e escancarada, que não foi assim há tanto tempo, os senhores dos escravos tinham de fornecer tudo aquilo de que eles necessitavam. Podiam não o fazer, mas nesse caso os escravos não trabalhariam tão bem. Poderiam até morrer, e isso implicaria ter de adquirir mais escravos, o que seria uma maçada. Portanto, o mais normal era fornecerem-lhes as condições mínimas para vestir, comer, dormir, cuidados de saúde, ferramentas, instruções acerca do que fazer e não fazer, etc.

Hoje a escravatura existe, mas já não é bem vista, e portanto faz-se de conta que não existe. Mas os escravos de hoje apresentam-se nas empresas munidos de tudo aquilo de que necessitam para poderem trabalhar com elevada produtividade, para tornarem a empresa mais competitiva nos mercados, para gerarem riqueza, para tornarem a economia mais próspera, para que, um dia, possamos todos viver melhor!

As pessoas que trabalham, nos dias de hoje, recebem muito pouco das empresas além de dinheiro. É com o dinheiro que recebem que têm de, por sua conta, tratar da sua saúde, do seu vestuário, da sua alimentação, da sua habitação, da sua formação... até das suas ferramentas! Hoje em dia, e cada vez mais, é usual a empresa requerer que o trabalhador leve para utilização na empresa o seu próprio carro, o seu próprio computador, a sua própria farda, o seu próprio telemóvel.

Aliás, no contexto actual de teletrabalho, uma prática que possivelmente muitas empresas irão querer estender para lá da situação de emergência, os trabalhadores têm de fornecer também as cadeiras, as secretárias, a iluminação, o papel, a caneta, o aquecimento, a Internet e tudo o mais.

O Estado, ao proporcionar às pessoas as condições de que elas necessitam para serem trabalhadores produtivos, está a substituir-se às empresas.

Na medida em que os empresários com mais poder considerem que uma das áreas em que o Estado intervém é suficientemente rentável, logo fazem pressão para que o Estado transfira a respectiva responsabilidade, leia-se rentabilidade, para eles.

Assim tem acontecido em Portugal ao longo das últimas décadas nos mais diversos sectores, com a colaboração activa de todos os governos, mesmo dos governos supostamente mais à esquerda. Afinal, quem é que manda no Estado?...

Uma razão pela qual a discussão política ganhou má fama entre nós é a sua associação aos partidos políticos que temos. Aparentemente, nas discussões que vamos tendo, é mais importante quem é que tem razão, ou saber que "o meu partido é melhor que o teu", do que propriamente o assunto colectivo que temos em mãos e para o qual é necessário encontrar uma solução colectiva.

E, infelizmente, as discussões políticas entre os partidos do costume absorvem o imaginário da população. Ou seja, apesar dessas discussões serem quase sempre uma coisa que anda sempre à volta do mesmo, mais para uma ou para outra face da mesma moeda, o espectador convence-se de que não há alternativa: tem de ser aquela moeda, ou com uma face, ou com outra. O que não é verdade.

Tomemos um exemplo. As empresas precisam de pessoal bem formado. Para isso, as pessoas têm de ir à escola. Se as pessoas pagarem a escola do seu bolso, não poderão viver com os salários mínimos que temos, e portanto os salários mínimos terão de aumentar. Se, alternativamente, as pessoas frequentarem a escola pública, então o ensino é financiado em parte pelas pessoas, na medida do possível, e em parte pelas empresas, no remanescente (esta distribuição depende de subir impostos aqui ou ali). De uma forma ou de outra, as coisas vão dar muito ao mesmo.

Discutem-se minudências quando as grandes questões ficam todas à margem! Por exemplo: devemos formar os jovens para serem trabalhadores especializados muito produtivos, ou para serem generalistas e capazes de interligar os diversos aspectos da vida e do mundo?... (Muitos pais começam por esta última opção e depois passam para a primeira, assim que os filhos atingem a adolescência. E também isto merece o nosso pensamento.)

Neste momento vivemos aquilo que para as empresas é o melhor de dois mundos: deixamos para o sector público aquilo que é pouco rentável e para o sector privado aquilo que é mais rentável. O Estado, seja qual for o governo, constrói o enquadramento necessário para tornar possíveis estas maravilhas. E assim, com um sistema de propriedade mista, as empresas dedicam-se em exclusivo, sem concorrência e sem limite temporal, à "desnatação". E assim o Estado pode desinvestir e baixar ainda mais a fasquia dos serviços mínimos. Tudo bem sincronizado.


Na verdade, o sistema económico que temos não poderia existir sem Estado. Novamente, o BCE foi instituído por órgãos dos Estados, sem que a população participasse nisso activamente. E quem diz o BCE, diz a polícia, os tribunais, todo o sistema bancário, os códigos do trabalho, do direito comercial e do direito fiscal. Ou seja, todas as regras e os mecanismos para fazer valer essas regras. É assim que o Estado viabiliza o sistema que temos.

13 – Existe possibilidade de mudança?
  • O sistema económico que temos não é democrático. As pessoas muito raramente participam activamente na elaboração das regras e sentem-se impotentes para as mudar. Aliás, acreditam que isso não é possível.
  • A democracia implica conhecimento e participação activa.
  • A mudança é possível, mas implica acção e conhecimento.
O Estado tem poder para fazer as coisas de outro modo? Sim, tem. Mas para isso acontecer, é necessário que o sistema que temos seja verdadeiramente democrático!

O sistema que temos não é democrático. A democracia não é um sistema no qual se coloca uns papéis em urnas de tantos em tantos anos, e já está. A democracia é um sistema em que as pessoas têm o poder de decisão. Mas, verdadeiramente, quantos de nós sentem que têm o poder de alterar o rumo das coisas?...

Para que o sistema seja democrático é necessária uma grande mudança. No mínimo, é necessário que as pessoas tenham conhecimento suficiente para saber o que escolher em cada situação concreta, por exemplo em relação à permanência ou saída do euro, que criem partidos políticos onde a sua voz seja verdadeiramente ouvida e, finalmente, que esses partidos alcancem o poder através das eleições.

Isso é o mínimo necessário para poder mudar alguma coisa.

Já muitas pessoas deixaram de acreditar no sistema eleitoral. As elevadas abstenções revelam isso mesmo. No entanto, a verdade nua é que quem ganha eleições com 10% de abstenção festeja do mesmo modo se tiver 80% de abstenção. Isso não lhes interessa nada! E a questão da legitimidade é muito bonita para conversas filosóficas de vão de escada, mas na prática não adiantam nada.

Se as pessoas desistirem de tentar a mudança através do voto, só irão conseguir fazer alguma coisa através da luta, nem que seja à batatada. Quantos de nós estarão prontos para isso?...

No dia 12 de Março de 2011 centenas de milhares de pessoas saíram às ruas em muitas localidades portuguesas para manifestarem o seu desagrado em relação à situação económica. Foi uma manifestação em grande! E o que é que resultou daí?... Nada. No dia 23 do mesmo mês José Sócrates apresentou a sua demissão, e nas eleições seguintes foi eleito Passos Coelho que, toda a gente sabe, melhorou muito a situação económica das pessoas que se manifestaram no dia 12.

Aliás, neste jogo da moeda de duas faces é assim que a coisa funciona: quando alguma coisa corre mal, vira o disco e toca o mesmo!... Aliás, lembro-me do pedido de demissão de António Guterres, no final de 2001, quando nada o obrigava a isso (o PS tinha 115 dos 230 deputados na Assembleia da República), apenas para ser substituído por Durão Barroso, que pouco depois se pôs a andar para a presidência da Comissão Europeia e foi substituído por Santana Lopes.

Resumindo: a mudança é sempre possível. Ou dentro do sistema, ou fora dele. Para isso é necessário acção e conhecimento. Sem o primeiro, nada acontece. Sem o segundo, arriscamo-nos a mudar para outra versão do mesmo. Conhecer e fazer conhecer os assuntos que vou abordando neste texto já será um bom contributo nesse sentido!

14 – Alternativa: Rendimento Mínimo Incondicional
  • O Rendimento Mínimo Incondicional (RMI) é depositado mensalmente nas contas bancárias de todas as pessoas.
  • O dinheiro para o RMI não é emprestado, é dado. O dinheiro para o RMI não é cobrado em impostos, é gerado nos bancos tal como se fosse um crédito.
  • O RMI, apesar de exequível e de mitigar muitos problemas, nunca foi implementado no passado porque pode aumentar a inflação, torna evidente a verdadeira origem do dinheiro e diminui a oferta de mão-de-obra barata.
  • O RMI garante o acesso de todos aos bens e serviços essenciais e restitui a dignidade aos trabalhadores que a não têm. Em contrapartida, retira poder económico a quem mais o tem.
Infelizmente, o problema das alternativas é serem sempre muitas. Se houvesse uma só, talvez as pessoas não se dispersassem tanto.

Entre as diversas alternativas, o Rendimento Mínimo Incondicional (RMI) é aquela que me parece mais viável e mais eficaz no combate à crise que se avizinha.

O RMI é um rendimento que é depositado nas contas bancárias das pessoas todos os meses. Todas as pessoas, sem excepção, recebem esse rendimento: sejam novos, velhos, licenciados ou sem estudos, com ou sem saúde, sejam quem forem. Inclusivamente com ou sem trabalho, ricos ou pobres, com ou sem outras fontes de rendimento.

Como as pessoas estão habituadas à ideia de que "o dinheiro não nasce nas árvores", e que "o dinheiro custa a ganhar", e que "não há dinheiro!", esta proposta de instituir um RMI vai naturalmente parecer descabida.

O actual "rendimento social de inserção", ou versões similares no passado ou noutros países, é mal recebido por algumas pessoas que consideram que os seus beneficários são preguiçosos, não trabalham porque não querem, e acabam por receber o dinheiro que foi tirado aos outros que o conseguiram a trabalhar. Embora em alguns casos isso possa acontecer, a verdade é que noutros casos as pessoas não têm rendimento porque não conseguem arranjar emprego. Se é difícil empregar um filho recém-licenciado, deve ser fácil de entender que não é fácil empregar toda a gente. O que se fará aos que não conseguem encontrar emprego? Por outro lado, e conforme já vimos no ponto 10, o dinheiro circula em cada transacção. Portanto, o rendimento social de inserção não só ajuda directamente quem o recebe, mas acaba por ajudar também a padaria, o café, a loja de roupa, a gasolineira, o barbeiro, e todas as outras actividades da economia. Finalmente, o rendimento social de inserção é financiado com os nossos impostos. E por muito mal que o sistema tributário tenha sido desenhado, ele em geral vai sempre buscar mais a quem ganha mais, e acaba por ser mais justo e digno do que transformar os mais necessitados em pedintes e abandonar a sua sorte à boa vontade de quem passa. Que existam pessoas que preferem dar esmola em vez de instituir um sistema de apoio baseado nos impostos é algo que sempre me deixou perplexo.

Mas o RMI nada tem a ver com o rendimento social de inserção. O seu modo de funcionamento é diferente.

O dinheiro para o RMI é criado pelo banco central do país em causa, ou pelo BCE, tal como o dinheiro é criado quando se pedem créditos (que é, afinal, a única forma de ele ser criado). Assim, nunca se coloca o problema da falta de dinheiro. Além disso, o dinheiro não é retirado a ninguém sob a forma de impostos. Ele é simplesmente criado em operações bancárias. E as comparações entre trabalhadores e preguiçosos não se colocam, uma vez que os trabalhadores também recebem o RMI e ficam, assim, com mais uma fonte de rendimentos a somar às que já têm.

Mas isso pode ser feito?

Pode. Muito facilmente. Basta que quem controla o sistema monetário europeu assim o determine.

Tudo o que escrevi neste texto fundamenta o que acabo de dizer. Mas também advogo neste texto que não devem simplesmente acreditar nas minhas palavras. Nem se devem ficar apenas pelas ideias em que já acreditavam. Coloquem-nas em causa, duvidem, procurem informação e, nunca é demais repetir: investiguem.

Mas, perguntarão, se é assim tão fácil, porque é que isso não foi feito antes?

Por pelo menos três motivos. O primeiro motivo prende-se com tudo o que já foi dito acerca da introdução de dinheiro na economia, como isso afecta a taxa de inflação e a taxa de câmbio e como isso afecta os negócios e a riqueza das pessoas. Quem tem o poder e possui grandes fortunas e dirige grandes negócios não está nada interessado em ter desvalorizações da moeda e taxas de inflação elevadas. Na verdade, os trabalhadores, as pessoas cuja fonte de rendimento principal é o trabalho, também não querem inflação. Mas mais vale ter inflação e ter trabalho, do que não ter inflação e estar desempregado, e a inflação pode ser sempre compensada com aumentos salariais apropriados.

O segundo motivo para isso não ter sido feito antes, é que iria abrir um precedente gravíssimo. Se essa medida fosse implementada, dificilmente haveria forma de a reverter. Se todas as pessoas compreendessem finalmente que o dinheiro é criado do nada, e que assim podiam ter acesso, todos os meses, a um montante, na sua conta bancária, que lhes permitiria pagar as despesas em bens essenciais... elas dificilmente abririam mão disso no futuro. Mas muito mais do que isso: perceberiam como toda esta questão das "dívidas soberanas" é, afinal, uma grande mentira. Perceberiam como afinal todos os juros que o Estado paga aos "credores", milhares de milhões de euros a cada ano que passa, e que é cobrado às pessoas em impostos, tudo isso é apenas uma maneira de enriquecer os que mais têm à custa dos outros. Perceberiam até, finalmente, que a simples existência de um juro é um aproveitamento, uma espécie de chantagem que quem tem mais exerce sobre quem tem menos. E quem tem o poder não deve querer abrir mão dele assim tão facilmente...

O terceiro motivo é que se todas as pessoas receberem o suficiente para viver com condições mínimas sem trabalhar... vai haver muita gente que vai deixar de trabalhar!

Finalmente, poderíamos acrescentar, embora com menos relevância, que só nos últimos anos, com o advento da informática, existe a capacidade técnica para implementar tal medida na escala em que é necessária.

Muitas pessoas poderão ficar preocupadas com o terceiro motivo que apontei, nomeadamente o da redução da disponibilidade de mão-de-obra. Do ponto de vista do pequeno empresário, isso pode ser um verdadeiro problema, uma vez que menos pessoas estarão dispostas a trabalhar e as que estarão irão possivelmente exigir um salário mais elevado. Mas do ponto de vista da pessoa que o empresário é, isso não devia ser um problema, porque ele também receberá o RMI e portanto a sua própria subsistência não dependerá mais do seu negócio.

Do ponto de vista da sociedade, e tal como nos momentos de crise, a oferta de bens essenciais nunca será insuficiente: a produtividade, por uma vez, jogará a nosso favor. Quanto à oferta de bens não essenciais, ela será estimulada precisamente pela enorme injecção de dinheiro na economia concretizada com o RMI.

Resumidamente, o RMI opera uma redistribuição do rendimento na sociedade, garantindo que todos têm acesso aos bens essenciais em todas as circunstâncias, e que as pessoas deixam de ser obrigadas a suportar empregos desumanos que as embrutecem, lhes tiram a saúde e a vida, e lhes dão muito pouco em troca.

Quanto aos poderosos... O que determina o poder é, afinal, a capacidade de ter os outros a trabalhar para nós. Quem tem dinheiro, tem essa capacidade. Mesmo quando simplesmente usamos o dinheiro para adquirir um produto, estamos no fundo a fazer com que todo o trabalho necessário para colocar esse produto nas nossas mãos tenha sido financiado por nós: estamos a colocar os outros a trabalhar para nós. Portanto, o RMI retira poder a quem mais o tem. E provavelmente de forma definitiva.

Essa é a razão essencial para o RMI nunca ter sido sequer colocado à mesa da discussão como uma alternativa viável. Por isso, e porque as pessoas nunca se uniram para o exigir.

Neste momento e nos meses que seguirão os empregadores vão ter de despedir muitas pessoas. Com ou sem empréstimos. E as pessoas vão ficar sem rendimentos. Agora é o momento certo para implementar o RMI.

15 – O que seguirá
  • À crise na saúde seguirá uma crise económica.
  • Os governos irão agir sobre a crise utilizando as ferramentas habituais, nomeadamente o crédito.
  • O resultado de aguentar negócios e pessoas falidas com empréstimos já devia ser evidente para todos: é a perpetuação da crise, das desigualdades e duma vida muito dura para quem está pior.
Conforme se pode ouvir nas notícias, tudo está a ser montado para um tremendo festival de mais do mesmo: empréstimos, credores, dívidas, juros, bancos...

Do ponto de vista dos empresários, alguns irão fechar já os seus negócios. Irão endividar-se os que podem, e irão ficar entalados, durante muitos anos. Irão endividar-se alguns que não podem, e perecerão mais tarde. Os que não precisam, irão florescer com a quebra na concorrência e a baixa dos preços nos recursos (materiais e humanos), aumentando assim as desigualdades já existentes.

De toda a dívida que for gerada, os donos dos bancos e outros credores que eventualmente se juntem ao festim irão cobrar muitos milhões de euros em juros todos os anos, durante muitos anos.

Será apenas mais do mesmo, com ou sem eurobonds.

E a economia aguenta?... Ai aguenta, aguenta!

Aguenta, porque quem tem o poder e o exerce inclusivamente através do Estado, não deixará a economia cair. Basta que fique naquele "ponto óptimo" de maximização do lucro. Todas as reuniões apressadas de poderosos de que ouvimos falar irão afinar o método. A crise será grande, e eles tratarão de a resolver, à sua maneira, sem nunca nos deixarem entender que pode ser doutro modo.

Parece uma "teoria da conspiração", não parece?... O problema da generalização dessa expressão e desse comentário é que algumas pessoas passaram a acreditar que não existem conluios, ou seja, que os donos dos grandes negócios mundiais não negoceiam entre si. O próximo passo é acreditar que eles querem o nosso bem. Os que acreditam que estamos todos no mesmo barco já estão bem encaminhados!

Se tiver de fazer futurologia, será a seguinte: na hipótese pouco provável de as pessoas entenderem como o sistema bancário e a economia funcionam, em termos gerais, e lutarem por medidas alternativas como o Rendimento Mínimo Incondicional, ou outras, poderemos ter um mundo bem melhor do que o actual. Na hipótese alternativa, e mais provável, de isso não acontecer, sairemos desta crise de saúde pública com uma crise económica eterna, num sistema que se tornará ainda mais sofisticado, de forma a manter as pessoas sempre à rasca, mas suficientemente bem para quererem continuar. Não duvidem que as melhores cabeças pensantes do planeta estão neste momento a desenhar as linhas com que todos nos coseremos.

Deixo-vos com um vídeo de uma das melhores cabeças pensantes, mas desta vez com ideias que considero meritórias.



AWF, 30 de Março de 2020

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*O título deste artigo inspira-se no texto "FMI" escrito por José Mário Branco, um desabafo num outro momento de crise, mas que merece ser ouvido por inteiro e com a cabeça no presente, do qual deixo aqui alguns excertos, para o que possam ser úteis:

"(...)
Entretém-te filho e vai para a cama descansado,
que há milhares de gajos inteligentes a pensar em tudo neste mesmo instante,
enquanto tu adormeces a não pensar em nada.
Milhares e milhares de tipos inteligentes e poderosos com computadores,
redes de polícia secreta, telefones, carros de assalto, exércitos inteiros,
congressos universitários, eu sei lá!
(...)
Entretém-te meu anjinho, entretém-te,
que eles são inteligentes,
eles ajudam, eles emprestam, eles decidem por ti,
decidem tudo por ti.
Se hás-de construir barcos para a Polónia
ou cabeças de alfinete para a Suécia,
se hás-de plantar tomate para o Canadá
ou eucaliptos para o Japão...
Descansa que eles tratam disso,
se hás-de comer bacalhau só nos anos bissextos
ou hás-de beber vinho sintético de Alguidares-de-Baixo!
(...)
Quanto menos souberes a quantas andas melhor para ti.
Não te chega para o bife?
Antes no talho do que na farmácia!
Não te chega para a farmácia?
Antes na farmácia do que no tribunal!
Não te chega para o tribunal?
Antes a multa do que a morte!
Não te chega para o cangalheiro?
Antes para a cova do que para não sei quem que há-de vir!
Cabrões de vindouros, hã?
Sempre a merda do futuro!
E eu que me quilhe?
Pois pá! Sempre a merda do futuro, a merda do futuro, e eu hã?
Que é que eu ando aqui a fazer?
Digam lá, e eu?
José Mário Branco, 37 anos...
Isto é que é uma porra!
Anda aqui um gajo cheio de boas intenções,
a pregar aos peixinhos,
a arriscar o pêlo, e depois?
É só porrada e mal viver, é?
O menino é mal criado,
o menino é 'pequeno burguês',
o menino pertence a uma classe sem futuro histórico...
Eu sou parvo ou quê?
Quero ser feliz porra!
Quero ser feliz agora!
Que se foda o futuro!
Que se foda o progresso,
mais vale só do que mal acompanhado.
Vá, mandem-me lavar as mãos antes de ir para a mesa.
Filhos da puta de progressistas do caralho da revolução que vos foda a todos!
Deixem-me em paz porra,
deixem-me em paz e sossego,
não me emprenhem mais pelos ouvidos caralho,
não há paciência,
não há paciência.
Deixem-me em paz caralho!
Saiam daqui!
Deixem-me sozinho,
só um minuto.
Vão vender jornais e governos e greves e sindicatos e policias e generais para o raio que vos parta!
Deixem-me sozinho!
Filhos da puta!
Deixem-me só um bocadinho.
Deixem-me só para sempre.
Tratem da vossa vida que eu trato da minha.
Pronto, já chega.
Sossego, porra!
Silêncio, porra!
Deixem-me só!
Deixem-me só!
Deixem-me só!
Deixem-me morrer descansado.
(...)"