terça-feira, 12 de maio de 2015

Matéria nobre...

A propósito disto:


o poema de Eugénio de Andrade, a dizer-nos que o segredo é a paixão. A paixão daquilo que se faz apaixonadamente, acrescento eu, para que não fiquemos pelas paixões mais ou menos românticas ou carnais, que são mais ou menos passageiras. A paixão, por exemplo, com que aqui escrevo.


MATÉRIA NOBRE

Pode ouvir-se ainda o seu
bater contra o peito.
Há tantos, tantos anos exposto
à violência da luz do meio
dia. Quase amargo, quase
doce. Só a paixão o rouba
à morte, o impede de ser
panela esburacada
onde o vento assobia.
Ou pior: coisa viscosa, mole,
inerme. Coração,
matéria nobre.

Parece mentira...


Parece mentira que não se fale do tema... Pois parece.
E eu bem que tenho tentado... A economia, que o alemão barbudo chamava de infra-estrutura, por bons motivos...

Mas parece que vinga mais o "o meu é para mim, que se foda o mundo",
e toca a privatizar mais um hospital!...

Ainda na onda da música ska-punk, uma canção do grupo "La Raíz" de Gandía, uma cidade da Comunidade Valenciana. Esta canção integra o álbum "Así en el cielo como en la selva" que está integral e gratuitamente disponível no site do grupo. Aplaudo a atitude. Aplaudo as ganas e as mensagens, mesmo que sinta que por vezes não estão muito de acordo com o estilo musical.





PARECE MENTIRA

Quién es ese que carga contra la gente,
vengo a decirle que con palabras también se entiende
la lucha por el poder, las mismas caras de siempre,
su sucia plata, su sucia ley, el pueblo sabe muy bien.

Parece mentira que la mano invisible lo vea y no sepa actuar,
Parece mentira, nos dijeron, la ley del mercado no puede fallar,
Parece mentira que no se hable del tema,
Parece mentira que no den solución al problema, solución al problema.

Si mi boca disparara las palabras necesarias,
para despertar a tantas almas errantes, bellas durmientes.
Un silencio suyo, es como un murmullo,
lo mío es para mí, y que se joda el mundo.

Parece mentira que la mano invisible lo vea y no sepa actuar,
Parece mentira nos dijeron la ley del mercado no puede fallar
Parece mentira que no se hable del tema,
Parece mentira, que no den solución al problema, solución al problema.

Hoy despidieron a 14 del almacén,
hoy bajó la esperanza y subió el pan,
hoy el jefe compró un chalet en B,
y no nos puede pagar.

Hoy derruyeron el colegio donde estudié,
hay un proyecto de un centro comercial,
mañana niños que hoy no saben leer,
tampoco podrán comprar.

Hoy no cobró su subsidio el pobre Manuel,
privatizaron ese nuevo hospital,
hoy enfermó la abuela del 5. B,
mañana... dios dirá.

sábado, 2 de maio de 2015

Quiero amor...



La gran orquesta republicana
Quiero amor

No quiero un sistema podrido y militar,
no quiero vuestras guerras ni energía nuclear
no quiero un gobierno de políticos corruptos,
en realidad no quiero no quiero gobierno.

No quiero el ejercito,
no quiero monarquía,
no quiero la república si nada va a cambiar
No quiero vuestra patria,
no quiero la bandera
que no, que no, que no me representa.


Pero si alguien pregunta: yo lo que quiero es amor.
Aquí tienes mi respuesta: yo lo que quiero es amor.
En realidad lo que quiero es amor.
En realidad lo que quiero es amor.
En realidad lo que quiero es amor.
En realidad lo que quiero es amor.

No quiero las prisiones, no quiero las fronteras
No quiero que la historia este llena de mentiras.
No quiero ver negocio en hospitales y en escuelas
No quiero que la iglesia se meta con mi vida.

No quiero los transgenicos ni plantas patentadas,
no quiero pesticidad que evenenen la comida,
maltrato de animales, politicos en venta,
que no, que no, que no me representan

Pero si alguien pregunta: yo lo que quiero es amor.
Aquí tienes mi respuesta: yo lo que quiero es amor.
En realidad lo que quiero es amor.
En realidad lo que quiero es amor.
En realidad lo que quiero es amor.
En realidad lo que quiero es amor.

O medo...



Mia Couto, num discurso proferido em 2011 nessa coisa chamada "Estoril Conferences", um encontro chique, como há muitos, para abordar "problemas globais", numa tentativa de tornar a globalização numa coisa mais linda (tenho vontade de vomitar...).

Eduardo Galeano, em três pequenos textos que seleccionei.

Tudo para pensar muito e devagar.

O medo é natural. Tal como a fome. O modo como agimos, apesar dessas sensações primitivas, é a parte que nos compete.

Mia Couto


Murar o Medo


(link)

O medo foi um dos meus primeiros mestres.

Antes de ganhar confiança em celestiais criaturas aprendi a temer monstros, fantasmas e demónios. Os anjos, quando chegaram, já era para me guardarem. Os anjos actuavam como uma espécie de agentes de segurança privada das almas.

Nem sempre os que me protegiam sabiam da diferença entre sentimento e realidade. Isso acontecia, por exemplo, quando me ensinaram a recear os desconhecidos. Na realidade a maior parte da violência contra as crianças sempre foi praticada, não por estranhos, mas por parentes e conhecidos.

Os fantasmas que serviam na minha infância reproduziam esse velho engano de que estamos mais seguros em ambiente que reconhecemos.

Os meus anjos da guarda tinham a ingenuidade de acreditar que eu estaria mais protegido apenas por não me aventurar para além da fronteira da minha língua, da minha cultura, do meu território.

O medo foi afinal o mestre que mais me fez desaprender.

Quando deixei a minha casa natal, uma invisível mão roubava-me a coragem de viver e a audácia de ser eu mesmo. No horizonte vislumbravam-se mais muros do que estradas. Nessa altura algo me sugeria o seguinte: que há neste mundo mais medo de coisas más do que coisas más propriamente ditas.

No Moçambique colonial em que nasci e cresci, a narrativa do medo tinha um invejável casting internacional: os chineses que comiam crianças, os chamados terroristas que lutavam pela independência e um ateu barbudo com um nome alemão.

Esses fantasmas tiveram o fim de todos os fantasmas: morreram quando morreu o medo. Os chineses abriram restaurantes à nossa porta, os ditos terroristas são hoje governantes respeitáveis e Karl Marx, o ateu barbudo, é um simpático avô que não deixou descendência.

O preço dessa construção de terror foi, no entanto, trágico para o continente africano. Em nome da luta contra o comunismo cometeram-se as mais indizíveis barbaridades. Em nome da segurança mundial foram colocados e conservados no poder alguns dos ditadores mais sanguinários de toda a história. A mais grave desta longa herança de intervenção externa, é a facilidade com que as elites africanas continuam a culpar os outros pelos seus próprios fracassos.

A guerra fria esfriou, mas o maniqueísmo que a sustinha não desarmou, inventando rapidamente outras geografias do medo a oriente e a ocidente e, porque se trata de entidades demoníacas, não bastam os seculares meios de governação, precisamos de intervenção com legitimidade divina.

O que era ideologia passou a ser crença. O que era política tornou-se religião. O que era religião passou a ser estratégia de poder. Para fabricar armas é preciso fabricar inimigos. Para produzir inimigos é imperioso sustentar fantasmas.

A manutenção desse alvoroço requer um dispendioso aparato e um batalhão de especialistas que, em segredo, tomam decisões em nosso nome.

Eis o que nos dizem: para superarmos as ameaças domésticas precisamos de mais polícia, mais prisões, mais segurança privada e menos privacidade; para enfrentarmos as ameaças globais precisamos de mais exércitos, mais serviços secretos e a suspensão temporária da nossa cidadania.

Todos sabemos que o caminho verdadeiro tem que ser outro. Todos sabemos que esse outro caminho poderia começar, por exemplo, pelo desejo de conhecermos melhor esses que, de um e de outro lado, aprendemos a chamar de “eles”.

Aos adversários políticos e militares juntam-se agora o clima, a demografia e as epidemias. O sentimento que se criou é o seguinte: a realidade é perigosa, a natureza é traiçoeira e a humanidade imprevisível.

Vivemos como cidadãos e como espécie em permanente situação de emergência. Como em qualquer outro estado de sítio as liberdades individuais devem ser contidas, a privacidade pode ser invadida e a racionalidade deve ser suspensa.

Todas essas restrições servem para que não sejam feitas perguntas, como por exemplo estas:
Por que motivo a crise financeira não atingiu a indústria do armamento?
Por que motivo se gastou, apenas no ano passado, um trilião e meio de dólares em armamento militar?
Por que razão os que hoje tentam proteger os civis na Líbia são exactamente os que mais armas venderam ao regime do coronel Gaddafi?
Por que motivo se realizam mais seminários sobre segurança do que sobre justiça?

Se queremos resolver e não apenas discutir a segurança mundial, teremos que enfrentar ameaças bem reais e urgentes. Há uma arma de destruição massiva que está sendo usada todos os dias, em todo o mundo, sem que seja preciso o pretexto da guerra: essa arma chama-se fome!

Em pleno século XXI, um em cada seis seres humanos passa fome. O custo para superar a fome mundial seria uma fracção muito pequena do que se gasta em armamento. A fome será, sem dúvida, a maior causa de insegurança do nosso tempo.

Mencionarei ainda uma outra silenciada violência. Em todo o mundo uma em cada três mulheres, foi ou será, vítima de violência física ou sexual durante o seu tempo de vida. É verdade que sobre uma grande parte do nosso planeta pesa uma condenação antecipada pelo facto simples de serem mulheres.

A nossa indignação porém é bem menor que o medo!

Sem darmos conta fomos convertidos em soldados de um exército sem nome e, como militares sem farda, deixamos de questionar. Deixamos de fazer perguntas e discutir razões. As questões de ética são esquecidas, porque está provada a barbaridade dos outros. E, porque estamos em guerra, não temos que fazer prova de coerência, nem de ética nem de legalidade.

É sintomático que a única construção humana que pode ser vista do espaço seja uma muralha, a Grande Muralha, que foi erguida para proteger a China das guerras e das invasões. A Muralha não evitou conflitos nem parou os invasores. Possivelmente morreram mais chineses construindo a muralha do que vítimas das invasões que realmente aconteceram. Diz-se que alguns trabalhadores que morreram foram emparedados na sua própria construção. Esses corpos convertidos em muro e pedra, são uma metáfora do quanto o medo nos pode aprisionar.

Há muros que separam nações, há muros que dividem pobres e ricos mas não há hoje no mundo um muro que separe os que têm medo dos que não têm medo.

Sob as mesmas nuvens cinzentas vivemos todos nós, do sul e do norte, do ocidente e do oriente.

Citarei Eduardo Galiano acerca disto, que é o medo global, e dizer:
Os que trabalham têm medo de perder o trabalho; os que não trabalham têm medo de nunca encontrar trabalho; quando não têm medo da fome têm medo da comida; os civis têm medo dos militares; os militares têm medo da falta de armas e as armas têm medo da falta de guerras.

E, se calhar, acrescento eu agora, há quem tenha medo que o medo acabe.



Eduardo Galeano

El miedo

Una mañana, nos regalaron un conejo de indias.
Llegó a casa enjaulado.
Al mediodía, le abrí la puerta de la jaula.
Volví a casa al anochecer
y lo encontré como lo había dejado:
jaula adentro,
pegado a los barrotes,
temblando del susto de la libertad.


 
El miedo global
Los que trabajan tienen miedo de perder el trabajo.
Los que no trabajan tienen miedo de no encontrar nunca trabajo.
Quien no tiene miedo al hambre, tiene miedo a la comida.
Los automovilistas tienen miedo de caminar
y los peatones tienen miedo de ser atropellados.
La democracia tiene miedo de recordar
y el lenguaje tiene miedo de decir.
Los civiles tienen miedo a los militares,
los militares tienen miedo a la falta de guerras.

Es el tiempo del miedo.

Miedo de la mujer a la violencia del hombre
y miedo del hombre a la mujer sin miedo.
Miedo a los ladrones, miedo a la policía.
Miedo a la puerta sin cerradura,
al tiempo sin relojes,
al niño sin televisión,
miedo a la noche sin pastillas para dormir
y miedo al día sin pastillas para despertar.
Miedo a la multitud,
miedo a la soledad,
miedo a lo que fue
y a lo que puede ser,
miedo de morir,
miedo de vivir...

 
Ventana sobre el miedo

El hambre desayuna miedo.
El miedo al silencio aturde las calles.
El miedo amenaza:
Si usted ama, tendrá sida.
Si fuma, tendrá cáncer.
Si respira, tendrá contaminación.
Si bebe, tendrá accidentes.
Si come, tendrá colesterol.
Si habla, tendrá desempleo.
Si camina, tendrá violencia.
Si piensa, tendrá angustia.
Si duda, tendrá locura.
Si siente, tendrá soledad.

quarta-feira, 22 de abril de 2015

O problema da nudez...

A origem do mundo. Gustave Courbet, 1866.


1 - O episódio, que é o que menos interessa...

No passado domingo, na praia de Matosinhos, depois de ter jogado à bola (com o pé e com a mão, embora não ao mesmo tempo) e de, cheio de calor, ter temperado (como o aço rubro) na água fria do mar, dirigi-me para o balneário, a terceira rocha junto ao paredão do porto de Leixões a contar do mar, para me vestir e ir embora. Depois de, já em criança, ter chegado à conclusão que fazer um grande esforço para trocar de calções com uma toalha à volta é uma inutilidade, adquiri o hábito de trocar de calções sem toalha à volta. Além de ser muitíssimo mais prático, permite arejar melhor os tintins e deste modo secá-los. Porque também não é nada prático, nem cómodo, nem higiénico, vestir cuecas e calças com os tintins ainda húmidos. Finalmente, faço-o também para aproveitar uns segundos que seja sem roupa a tolher-me os movimentos.

A ponta de um dedo, enquanto fazia nudismo numa
praia perto da Zambujeira do Mar em 2009.


Gosto de me sentir nu. Gosto da sensação de não ter nada a apertar-me ou a alterar aquilo que no fundo sou. Gosto de ter a pele toda à mostra, e os pêlos todos. De passar a mão na pele da cara e de poder deslizar num contínuo até aos pés, sentindo que cabeça e pés partilham o mesmo embrulho e fazem parte do mesmo corpo, do meu corpo, muito uno. Sem sentir que a cabeça está aqui, as mãos acolá, os pés mais adiante, com botões e cintos e fivelas e colarinhos e elásticos e cordões pelo meio.

Por isso mesmo às vezes aproveito, quando estou em casa e há condições para isso, para andar nu. E porque tenho o sono leve, infelizmente, e porque rodopio na cama durante a noite e o pijama se enrola todo transformando-se em camisa de forças, durmo sempre nu.

As condições para me pôr nu em casa incluem não ter de fazer uma actividade que ponha em risco a integridade física da pele (que feliz ou infelizmente é delicada, como em quase toda a gente), não correr o risco de gelar de frio, e ter a expectativa de estar sozinho e invisível para os outros durante um bom bocado.

Desde cedo, desde criança, como atrás referi..., que aprendi as normas sociais desta questão. Aprendi que devo trocar de calções na praia com uma toalha à volta não por minha causa, mas por causa dos outros, porque eles podem não gostar. Mais tarde, aprendi com bastante surpresa... eu diria mesmo choque, que se pode ser preso por andar nu na rua. Para mim isso levantou uma série de questões de difícil resposta: e se a pessoa não tiver mesmo nada para vestir? e se, por exemplo, os amigos lá da rua me fizerem uma "barrela" (como eles chamavam à brincadeira idiota de tirar a roupa toda a uma pessoa e deixá-la nua no meio da rua... o termo existe no meu dicionário e está associado com as lavagens de roupa à moda antiga, em que inclusivamente se procedia ao branqueamento com cinzas)? e porque é que a pessoa há-de ir presa? que mal é que ela estará a fazer aos outros?...

Bom, com mais ou menos questões em aberto às quais os adultos não me sabiam responder cabalmente, eu aprendi. Mais tarde, porém, aprendi que, como alguém dizia, é importante saber as normas para poder quebrá-las. E comecei a quebrar as normas, com conhecimento delas. Percebi que a nudez interessa a praticamente toda a gente. Que quando uma pessoa se apresenta nua à sua frente, é-lhes muito difícil não analisar o seu corpo, e sobretudo os seus órgãos genitais (a mim também... e não evito... olho e analiso e já está!... qual é o problema?... mas acredito que se a nudez fosse mais normal na nossa sociedade, também o interesse em olhar e analisar seria menor). Percebi que isso pode fazer as pessoas pensar no seu próprio corpo, ou no de outros, e isso pode desencadear sentimentos de ciúme, de inveja, de desejo... Isso pode fazer as pessoas pensar em sexo. Em casos que me parecem doentios, isso pode fazer as pessoas terem repulsa, como se sentissem que é errado termos órgãos genitais agarrados ao corpo, ou como se tivessem nojo desses órgãos, no seu próprio corpo ou em corpos alheios.

Aprendi e percebi. E porque não desejo morrer novo, de cada vez que tiro os calções em público, faço por avaliar o contexto: estou na praia ou numa reunião com o chefe? quantas pessoas estão à minha volta? de que meio cultural serão e como avaliarão a nudez?...

Neste domingo, depois de uma olhadela à volta, constatando que não havia crianças por perto e que para além de uma mulher, que estava sentada a olhar o mar de costas para mim, só havia um grupo de homens já com alguma idade, pensei que não iria chocar ninguém. Estava no "balneário", num círculo formado por três amigos. Tirei os calções, e enquanto espremia o fato de banho, achava um sítio para o guardar, procurava a toalha para me secar e depois as cuecas para vestir, algo que deve demorar um loooongo minuto, aproveitei para deixar os tintins secar. Não me virei para fora do círculo, não fiz o pino e não anunciei em voz alta a chegada do novo profeta. Mas de qualquer modo, assim que eu me estava a começar a secar com a toalha, comecei a ouvir bocas que, ao fim de uns segundos, me pareceram serem a propósito da minha nudez. Ainda não tinha olhado para investigar melhor e estava a pensar "deve ser um amigo de alguém, a gozar com a situação...". Levantei a cabeça, certamente com um ar estúpido, ao mesmo tempo intrigado e pronto para entrar na brincadeira, e reparei que as bocas vinham de um homem que estava deitado numa toalha, entre amigos que estavam de pé, a uns dez metros de distância.

Na praia da Memória, Matosinhos, em 2013.
Foto de Rui Franco, que me cortou o pé.
Esta é mesmo a gozar a situação!... Então e agora! :)
(deves julgar-te muito lindo, deves!)


Para quem gosta de apreciar os genitais dos outros, um loooongo minuto é imenso tempo! Dá tempo para atentar, por entre as pernas próximas dos próprios amigos e por entre as pernas distantes dos amigos alheios, ao modo exibicionista que tem alguém que está a secar os tintins entre a mudança de vestuário molhado para vestuário seco. E o meu ar certamente idiota perante tais bocas deve ter parecido a esse homem uma verdadeira afronta, porque imediatamente a seguir ele estava a oferecer-me porrada, à boa maneira nortenha. Por entre as coisas que ele foi dizendo, que eu não fixei, lembro-me de ter referido qualquer coisa acerca de crianças e senhoras...

Assim que eu percebi que as bocas eram mesmo a sério, liguei o meu modo "evitar conflitos": desviei o olhar, coisa que qualquer etólogo compreenderá bem, ignorei e continuei a fazer o que estava a fazer que era, de qualquer modo, vestir-me. O homem continuou com as suas bocas, até que eu já estava com ar apresentável e ele finalmente acalmou-se.

Quando, passados uns cinco minutos, arranquei em direcção às ruas de Matosinhos, tentei olhar nos olhos o meu agressor, para lhe dizer simplesmente "está tudo bem... talvez para a próxima não seja necessário dedicar-me tanta violência verbal e ameaçar-me de violência física", mas ele refugiou-se no seio do seu grupo, certamente sem saber bem que atitude assumir agora que eu era, afinal, um ser igual a ele.

2 - O respeito...

O que é o respeito?... Há pouco tempo fiz um exercício para tentar definir para mim mesmo o que é o respeito, se o respeito é uma coisa boa ou má em si mesma ou em que circunstâncias pode ser considerado uma coisa boa ou má... Eu saí do exercício mais confundido do que quando entrei. No fundo, percebi que não percebo bem o que é o respeito. No meu dicionário as definições alternativas para respeito são as seguintes: acto ou efeito de respeitar (o que é quase uma tautologia digna de um bom dicionário, porque afinal os dicionários são tautologias), consideração, deferência, acatamento, veneração, homenagem, culto, apreço, submissão, temor, relação, reverência, importância, aspecto, consideração, ponto de vista. E creio que dá para perceber, logo à partida, que este não é um assunto fácil.

Para mim as palavras não têm valor em si. E se esta palavra é uma confusão, eu prefiro deitá-la fora e utilizar outra. Ou utilizar um conceito, mesmo que não possa ser sintetizado numa só palavra, que melhor exprima o que quero dizer.

O que está em causa no caso da nudez pública (porque creio que ninguém levantará sérias objecções à nudez privada) é fazermos algo que pode causar danos directos ou indirectos, imediatos ou desfasados no tempo, aos outros.

Facilmente entenderemos que este é um assunto polémico, onde as opiniões se dividem. E a conversa tenderá a seguir por aí...

Só que ao fazê-lo, ao centrar a conversa nas consequências da nudez pública, estamos a esquecer outros aspectos relativamente simples desta mesma questão. Por exemplo: se eu quiser andar nu na praia e não puder porque causo dano nos outros, isso causa-me dano a mim também. E qual é o dano maior? Quando alguém coloca a música muito alta num local público, isso pode incomodar os outros, e eu sou da opinião que o direito ao silêncio deve prevalecer. Mas tenho essa opinião porque por um lado é difícil evitar o som alto dos outros, e por outro há imensas oportunidades para ouvir som alto em público (demasiadas, segundo os meus padrões!). Quanto à nudez, basta não olhar, e o assunto ficará resolvido. E não há possibilidades alternativas para a nudez pública. Assim, não será também a reacção das pessoas uma violência sobre quem deseja andar nu?

Numa sociedade onde se apregoa aos quatro ventos o direito e o respeito (lá vamos nós!) à diferença, o que eu noto é que cada vez menos uma pessoa tem o direito de ser diferente. Há uma coisa que se define com uma clareza cada vez maior à medida que as décadas e os séculos avançam: um pensamento dominante. E esse pensamento dominante, que se imiscui no nosso pensamento sem darmos por isso desde bebés, é, como sempre foi, naturalmente avesso à diferença.

Finalmente, há a questão óbvia de resolver o assunto com porrada.

3 - O problema da nudez, finalmente...

As pessoas que se importunam com a nudez alheia sentem sempre uma necessidade de o justificar com o efeito nefasto que isso provoca em terceiros. Quando se lhes pergunta "mas qual é o teu problema?", elas sistematicamente não têm problema algum, os outros é que podem ter!

E quem são esses outros a quem a nudez pode causar dano? São sistematicamente apontados os entes mais coitadinhos da comunidade humana, os mais frágeis, os mais inocentes, os mais permeáveis às podridões do espírito, os mais puros: as crianças, sempre em primeiro lugar, e depois as mulheres. Os homens, esses nunca têm problema algum com a nudez, porque assim como assim já são podres de espírito por natureza, tarados sexuais por definição. Os velhos, esses, nunca são mencionados nestas conversas.

Numa pequena albufeira ao norte de Madrid, em 2006.
Todas as pessoas nesta foto, homens e mulheres
nos seus 20 anos, estão nus.


E que danos são esses que a nudez pode causar nessas pessoas castas? São os danos todos que associamos ao sexo e à carne: a inveja, o ciúme, o convite à facada, a pedofilia, o adultério, o incesto, a homossexualidade, e sabe Deus que outras coisas pérfidas e odiosas!... Tudo isso pode ser senão causado, pelo menos provocado pela simples visão da nudez alheia!

Isso é o que nos dizem uma vez após outra as pessoas que se insurgem quando vêm os pêlos púbicos doutro. Mas terá isso tudo alguma adesão à realidade?...

Dito de uma forma simples, para não me estender muito sobre isto, a resposta é: não. Não, a ideia de que a visão da nudez alheia pode provocar esse tipo de danos não tem qualquer fundamento. Pelo contrário, há imensas provas precisamente do contrário, isto é, que a visão ocasional ou sistemática da nudez alheia não causa nenhum desses danos (aliás, nem sequer muitos desses "danos" são efectivamente danos, e os que o são, são-no discutivelmente). E já apresentarei alguns exemplos.

Se, para já, admitirmos como verdadeiro o que acabei de afirmar, então seremos forçados a concluir que o problema que a nudez causa nas pessoas está precisamente na cabeça das pessoas. As pessoas objectam à nudez alheia porque não estão habituadas, porque têm medo, porque elas próprias têm algum desvio relativamente a uma atitude saudável perante o corpo humano e a sexualidade ou por outra razão qualquer, mas sempre por alguma coisa que está apenas e só dentro da sua cabeça.

E para quem, como eu, sabe que não tem um corpo fantástico, mas simplesmente gosta de uma vez por outra andar nu, e até prefere evitar confusões fazendo-o sozinho, ter de sentir o modo como os outros lhe colocam limitações à sua liberdade, baseados em problemas mentais sem adesão à realidade... bom... é um pouco frustrante...

Mas enfim... transige-se!

Que remédio!... Senão ainda acordamos mortos!

Vejamos então alguns fundamentos para a tese de que a visão da nudez alheia não causa danos nos outros, para lá do desconforto que pode causar olhar para algo de que não se gosta, como roupa feia, a menos que os outros tenham já à partida problemas com a sexualidade ou algo do género.

Em primeiro lugar, há que considerar que o homem é um bicho e nem sempre andou vestido. Aliás, a julgar pelo que é dito no programa da BBC que apresento em baixo, durante a maior parte da história da humanidade, a nossa espécie viveu e conviveu completamente pelada. E não consta que tenha ocorrido nada de muito grave, porque enquanto espécie, ela singrou.



Podem seguir os links para ver este programa da BBC desde o início. No programa também se avançam as teses de que a nudez pode pôr em causa a estabilidade dos casais e assim de toda a sociedade, de que é possível habituarmo-nos à nudez, de que ninguém nasce com modéstia sexual e de que podemos criar novas regras sociais, entre outras.

Em segundo lugar é necessário considerar que, conforme o programa anterior refere de passagem, as pessoas não nascem com qualquer conceito sobre a nudez dentro de si. Nem sobre roupas!... E enquanto os instintos sexuais surgem naturalmente, a seu tempo, as ideias sobre vestuário ou sobre nudez são integralmente adquiridas pelo meio social onde se vive.

Daí resulta que as pessoas que menos problemas têm com a nudez são precisamente as crianças. Era o que faltava uma criança ficar chocada por ter vindo ao mundo através da vagina da mãe, ou ficar relutante em chupar o mamilo de uma mama que se lhe apresente.

Em terceiro lugar, e em consequência do que foi dito, as nossas reacções à nudez são obrigatoriamente culturais. E a comprová-lo estão todas as culturas que ainda no momento presente consideram a nudez o estado normal das coisas. E não consta que sejam sociedades de tarados.

Em quarto lugar posso referir experiências como a da escola de Summerhill, uma escola muito diferente onde os alunos têm mais poder do que nas escolas comuns. Conheci este projecto há já muitos anos através do livro "Liberdade sem medo" que recomendo vivamente (aqui uma versão em inglês), do qual retiro o seguinte excerto:

"Nudity

Many couples, especially among the working class, never see each other’s bodies until one of them dresses the other’s corpse. A peasant woman I knew was a witness in a court case of exhibitionism. She was genuinely shocked. “Come, come, Jean:’ I chided her. “Why, you’ve had seven children.”

“Mr. Neill,” she said solemnly, “I never saw John’s...I never saw my man naked all my married life.”

Nakedness should never be discouraged. The baby should see its parents naked from the beginning. However, the child should be told when he is ready to understand that some people don’t like to see children naked and that, in the presence of such people, he should wear clothes.

There was the woman who complained because our daughter bathed in the sea au naturel. At the time, Zoe was one year old. This matter of bathing tersely sums up the whole anti-life attitude of society. We all know the irritation arising from trying to undress on the beach without exposing our so-called private parts. Parents of self-regulated, free children know the difficulty of explaining to a child of three or f
our why he must wear a bathing suit in a public place.

The very fact that the law does not permit exposure of the sex organs is bound to give children a warped attitude toward the human body. I have gone nude myself, or encouraged one of the women on the staff to do so, in order to satisfy the curiosity of a small child who had a sense of sin about nakedness. On the other hand, any attempt to force nudism on children is wrong. They live in a clothed civilization, and nudism remains something that the law does not permit.

Many years ago, when we came to Leiston, we had a duck pond. In the morning, I would take a dip. Some of the faculty and the older girls and boys used to join me. Then we got a batch of boys from private schools. When the girls took to wearing bathing suits, I asked one, a pretty Swede, why.

“It’s these new boys:’ she explained. “The old boys treated nudity as a natural thing. But these new ones leer and gape and --well, I don’t like it” Since then, the only communal nude bathing has been done during the evening trips to the sea.

One would think that being brought up free, the children in Summerhill would run about naked in summer. They don’t. Girls up to the age of nine will remain nude on a hot day, but small boys seldom do. This is puzzling when one takes into consideration the Freudian statement that boys are proud of having a penis while girls are ashamed of not having one.

Our small boys at Summerhill show no desire to exhibit themselves and the senior boys and girls hardly ever strip. During the summer, the boys and men wear only shorts without shirts. The girls wear bathing suits. There is no sense of privacy about taking baths, and only new pupils lock bathroom doors. Although some of the girls take sunbaths in the field, no boys ever think of spying on them.

I once saw our English teacher digging a ditch in the hockey field, assisted by a group of helpers of both sexes ranging in age from nine to fifteen. It was a hot day and he had stripped. Another time, one of the men on the staff played tennis in the nude. At the School Meeting he was told to put on his pants in case tradesmen and visitors should happen by. This illustrates Summerhill’s down-to-earth attitude toward nudity.

Pornography

All children are pornographic, sometimes openly, other times secretly. The least pornographic are those who have had no moral taboos about sex in their infancy and early childhood I am sure that later on our pupils from Summerhill will be less inclined toward pornography than children brought up under hush-hush method. As one boy said to me when he came back for a visit during his vacation from the university, “Summerhill spoils you in one way. You find chaps of your own age too dull. They talk about things I grew out of years ago”

“Sex stories?” I asked. “Yes, more or less. I like good sex stories myself, but the one they tell are crude and pointless. But it isn’t only sex. It’s other things, too - psychology, politics. Funny, I find myself tending to chum with fellows who are ten years older than I am.”

One new boy at Summerhill, who had not outlived the smutty phase of his prep school, tried to be pornographic. The others shut him up not because he was being pornographic but merely because he was sidetracking an interesting conversation.

Some years ago we had three girl pupils who had passed through the usual stage of talking out forbidden topics. Later, a new girl came to Summerhill and was assigned to a room with these three girls. One day, this new girl complained to me that the three other girls were dreadfully dull companions. “When I talk about sex things in the bedroom at night, they tell me to shut up. They say they are not interested.”

It was true. Naturally, they had an interest in sex but not in its hidden aspect. These girls had had their conscience about sex as a dirty subject destroyed. To a new girl, fresh from the sex talk of a girls’ school, they appeared to be highly moral. And they really were highly moral, for their morality was founded on knowledge--not on a false standard of good and bad.

Children who are freely brought up about sex matters have an open mind about so-called vulgarity. Some time back, I heard a vaudevillian in the London Palladium who sailed very near the wind in a breezy Elizabethan manner. It struck me then that he got laughs from his audience that he couldn’t have got from the Summerhill crowd. Women shrieked when he mentioned ladies’ undergarments, but Summerhill children would not consider such remarks at all funny.

Once, I wrote a play for the kindergarten children. It was quite a vulgar play about a woodcutter’s son who found a hundred-pound note and ecstatically showed it around to his family, including the cow. The dumb beast swallowed it, and all the family’s efforts to get the cow to drop the note proved futile. Then the boy conceived a brilliant idea. They would open a booth at a fair, and charge a shilling for two minutes of attendance. If the cow dropped the money during someone’s attendance, that person would win the
money.

The play would have brought down the house in a West End music hall. Our children, however, took it in their stride. Indeed, the actors (six to nine years old) saw nothing funny in it at all. One of them, a girl of eight, told me that I was silly not to use the proper word in the play; of course, she meant what other people would call an improper word.

The free child is not likely to suffer from voyeurism at Summerhill. Our pupils do not snigger or feel guilty when a film shows a toilet or mentions birth. Every now and then we have an epidemic of writing on toilet walls. To a child, the toilet is the most interesting room in any house. The toilet seems to inspire many writers and artists, which is natural when one considers that the bathroom is a place for creation.

It is a fallacy that women are more pure-minded than men. A man’s club or bar, however, is much more likely to be pornographic than a woman’s club. The vogue of the risque story is entirely due to its unmentionableness. In a society without sex repressions, the unmentionable would disappear. At Summerhill, nothing is unmentionable and no one is shockable. Being shocked implies having an obscene interest in what shocks you.

Those people who cry in horror, “What a crime to rob little children of their innocence!” are ostriches hiding their heads in the sand. Children are never innocent, though they are often ignorant. And the ostriches fly into hysterics over depriving the child of ignorance.

The most suppressed child is really not ignorant about much. His contact with other children gives him that dreadful “knowledge” that miserable little kids give to each other in dark corners. For those who have been at Summerhill since an early age, there are no dark corners. These children do have an interest in sex matters, but it is not an unhealthy interest. Such children have a really clean attitude toward life."

(Texto completo aqui)

É muito interessante o aspecto salientado pelo autor acerca do modo como as crianças, e eu acrescento todas as outras pessoas, ligam menos às coisas quando estão habituadas a elas...

Mas para quem achar que isto é apenas um caso isolado, um exemplo sem paralelo, um ensaio sem fundamento, eu apresento então um estudo científico com um pouco mais de rigor. Chama-se "Early childhood exposure to parental nudity and scenes of parental sexuality ("primal scenes"): an 18-year longitudinal study of outcome." e está disponível aqui. O estudo aponta precisamente que não há efeitos significativos da exposição das crianças à nudez dos pais ou à sua sexualidade.

E enfim... para quem se interessar por isto, até o artigo da wikipedia sobre a nudez é um bom ponto de partida!... A mim dá-me vontade de dizer: escuta, Zé ninguém!...

sábado, 18 de abril de 2015

Foram-me ao cego!...

E pelos vistos está tudo bem!...

Terceira em Abril...

Fotos aqui.

O conversor...

Quem conversa a dor
é como um conversor
que não conserva a dor.


quinta-feira, 2 de abril de 2015

Os momentos altos dos meus dias...

Às vezes vêm-me das pontas dos dedos...


quarta-feira, 1 de abril de 2015

O leite liberalizado...


Este artigo vem na sequência do anúncio do fim do sistema de quotas leiteiras na União Europeia. É especialmente escrito para quem julga que os partidos são todos iguais, que socialismo ou liberalismo são apenas palavras e que nada dessas análises sócio-político-económico-coisas tem a ver com a nossa vida do dia-a-dia.

A sobreprodução ocasional

Ao contrário do que alguém menos informado possa supor, muitas crises económicas não são de subprodução, mas sim de sobreprodução. Isso mesmo: produzem-se bens e serviços em quantidade superior àquilo que as pessoas e as empresas são capazes ou estão dispostas a adquirir. Também é assim nos tempos actuais, em que tanto se fala de crise.

Na agricultura e na pecuária essas crises de sobreprodução são conhecidas desde tempos anteriores à Maria Cachucha. Basta que num determinado ano haja um conjugação de factores nesse sentido: as pessoas têm pouco dinheiro no bolso, os agricultores plantaram todos a mesma coisa há uns meses atrás, as condições climatéricas foram favoráveis... E logo o mercado fica inundado, por exemplo, de tomates.


E qual é o problema da sobreprodução? Bom, o problema é que, por uma vez, a "lei" da oferta funciona mesmo, e os preços dos produtos excedentários tendem a descer imenso. Imagine que produziu tomates e que os vai vender ao mercado. Imagine que fez as contas e chegou à conclusão que gastou 1000 moedas para produzir 1000 tomates. Imagine que tenta vender os tomates a 2 moedas cada um e que não consegue vender nenhum. Provavelmente baixará o preço para 1,5 moedas por tomate. Imagine que então só consegue vender 100 tomates. Neste momento você gastou 1000 moedas e só conseguiu reaver 150, portanto ainda tem um grande prejuízo. Imagine que em desespero, e para tentar pelo menos ficar com as contas equilibradas, você baixa o preço para 1 moeda por tomate. Mas, mesmo assim, e porque há muita gente a fazer o mesmo e há tomates por todo o lado, você só consegue vender mais 500 tomates. Neste momento você gastou 1000 moedas e só conseguiu reaver 650, e ainda tem 600 tomates para vender. Então você pensa: eu tenho mesmo que conseguir as 1000 moedas, pelo menos, para poder pagar os empréstimos que fiz quando plantei os tomateiros... Assim, você decide começar a vender os tomates abaixo do seu custo, a 0,5 moedas por tomate. Bom... o mecanismo continua até que você já está praticamente a dar os seus tomates ao preço da chuva e mesmo assim não consegue reaver as 1000 moedas que investiu no início.

Tudo isto poderia ser evitado facilmente se o mercado não funcionasse de forma tão desregulada. Há muitas formas de o conseguir. A forma mais fácil é simplesmente destruir parte da produção. No exemplo dos tomates, se metade dos tomates produzidos fossem imediatamente destruídos, o preço não baixaria tanto e a crise poderia ser evitada.

Mas o problema de executar semelhantes medidas é que elas têm de ser planeadas em conjunto por todos os produtores. É aí que se demonstra que um mercado regulado funciona melhor que um mercado desregulado, e que a procura do bem colectivo produz um resultado globalmente melhor do que a procura do bem individual por cada agente económico.

Ou seja: se for necessário destruir metade da produção de tomates, quem é que será o primeiro produtor a destruir metade da sua produção?... Imagine-se nessa situação. Será que você estaria disposto a destruir metade da sua produção?... Você e outros produtores como você estariam dispostos a fazê-lo, talvez... mas muitos outros não. E no final você, com a sua atitude bem intencionada, constataria que o preço do tomate não iria baixar tanto, mas você ficaria muitíssimo prejudicado, pagando do seu bolso o aumento do rendimento dos outros produtores!

Para que medidas deste tipo funcionem é necessário que haja algum tipo de concertação dos interesses de todos os produtores num mesmo mercado. As cooperativas de produtores podem fazer esse trabalho de concertação. Também os governos dos diversos países.

Mas quando os mercados se tornam cada vez mais integrados, rumo à globalização total, as estruturas de concertação também têm de se tornar globais. Imagine, para demonstrar isto mesmo, que no mercado dos tomates existe uma cooperativa de todos os produtores de tomate excepto um, que tem a mania que não está para pertencer a cooperativas. Se num ano de sobreprodução a cooperativa decidir destruir metade dos tomates, para impedir que os preços do tomate baixem muito, o produtor isolado, que não destruiu metade da sua produção, fica em vantagem perante todos os outros!... Torna-se então necessário que não só as estruturas de concertação se tornem globais, como que a participação dos produtores nessas estruturas seja obrigatória.

A PAC - Política Agrícola Comum

A PAC é das primeiras e das mais importantes políticas da União Europeia. Foi implementada através do Tratado de Roma (assinado em 1957 pela Bélgica, Luxemburgo, Holanda, Alemanha Ocidental, França e Itália) que instituiu a CEE - Comunidade Económica Europeia, que precedeu a Comunidade Europeia e a União Europeia.

No rescaldo da segunda guerra mundial, com a noção plena da importância da autosuficiência alimentar, e após um período de subprodução, o objectivo primordial da PAC foi o de garantir essa autosuficiência alimentar. Para esse efeito foram implementadas políticas de aumento da produtividade agrícola e pecuária e políticas de apoio ao rendimento dos respectivos produtores.

O que se seguiu foi uma história de "sobre-sucesso"! O aumento da produtividade foi de tal ordem, que cedo se passou de uma situação de sobprodução para uma situação de sobreprodução. Os mecanismos da PAC que existiam para garantir o rendimento dos produtores começaram a ser levados ao limite. No caso do leite, por exemplo, a CEE adquiria leite e derivados (sobretudo derivados menos perecíveis como leite em pó, leite condensado ou manteiga) para impedir a queda dos preços nos mercados. Isto equivale a retirar artificalmente do mercado a produção excedentária, o mesmo que destruir tomates no exemplo anterior. Só que a quantidade adquirida destes produtos era tão elevada que a CEE estava a gastar rios de dinheiro e além disso não conseguia dar destino aos produtos adquiridos (uma das coisas que foi feita foi enviar os excedentes para outros países, em forma de "ajuda humanitária", o que na verdade só contribuiu para aniquilar os produtores desses mesmos países).

Foi então que PAC foi alterada e foi introduzido o sistema de quotas: a sobreprodução seria evitada se a quantidade máxima produzida em cada período estivesse fixada logo à partida.

A sobreprodução sistemática

O mundo está em constante evolução. Muitas coisas mantêm-se, mas outras alteram-se. Uma das coisas que se tem alterado muito ao longo das últimas décadas é a produtividade técnica das actividades económicas. Os avanços no conhecimento e na aplicação desse conhecimento conseguiram e continuam a conseguir, efectivamente, aumentos espantosos de produtividade. O que se passou nas últimas décadas na Europa com os produtos agrícolas e pecuários foi um exemplo desse aumento da produtividade técnica.

(imagem retirada daqui)


(A produtividade técnica é uma produtividade real, no sentido que compara a quantidade de factores produtivos utilizados com a quantidade de produtos gerados. Distingue-se da produtividade económica, que compara o dinheiro gasto em factores produtivos com o dinheiro conseguido na venda dos produtos.)

No caso das actividades primárias na União Europeia, a PAC foi a medida adoptada que permitiu estancar o problema da sobreprodução sistemática gerada pelos aumentos da produtividade nesse sector.

Mas não existe nenhuma política semelhante para as restantes actividades produtivas! Porquê?...

O liberalismo económico

A resposta à última questão reside na ideologia do liberalismo económico que molda o pensamento dominante em Portugal e em muitos outros países no momento actual.

Segundo o liberalismo económico, o óptimo social atinge-se através da prossecução dos óptimos individuais. Basicamente é o "cada um por si", o "fé em Deus" e o "vale tudo menos tirar olhos". Segundo os apologistas desta ideologia, qualquer intervenção do Estado na economia, seja no sentido de criar impostos, de criar estruturas de concertação, de subsidiar, de impôr códigos de conduta, de limitar a concentração económica ou a circulação de capitais, de redistribuir o rendimento para atenuar as desigualdades, de criar empresas estatais para assegurar bens e serviços fundamentais ou de em algum modo afectar a propriedade privada e a livre iniciativa dos indivíduos, é uma intervenção que introduz mais custos sociais do que benefícios e, portanto, deve ser evitada.

Os partidos de direita são os defensores por excelência do liberalismo económico. Em Portugal, PSD e CDS são os partidos de direita com maior expressão. De cada vez que um português vota num destes partidos está, com consciência disso ou não, a apoiar a implementação de políticas económicas liberais.

PSD e CDS fazem parte de um partido político europeu chamado "Partido Popular Europeu". É este partido político que, em resultado das eleições europeias, tem tido a maioria dos deputados no parlamento europeu nos últimos anos. É este partido que implementa as políticas liberais ao nível da União Europeia.

Liberalismo económico é um conceito que em geral não é bem visto por quase todas as pessoas que têm pelo menos uma vaga noção do que seja. Isto acontece porque o conceito se associa a um "salve-se quem puder" ou à "lei do mais forte". Note-se que estas associações são, em geral, correctas! E precisamente por causa disso, as pessoas que consciente ou inconscientemente defendem o liberalismo económico tendem a adoptar outros nomes para designar essas ideias. Por exemplo, os defensores da "economia de mercado" em geral são defensores do liberalismo económico. Ao nível dos partidos as designações tornam-se bem mais sofisticadas, no sentido de captar o maior número de eleitores possível. É assim, por exemplo, que PSD quer dizer "Partido Social Democrata" e CDS quer dizer "Centro Democrático e Social". Destas designações ficamos a saber que os partidos supostamente defendem a democracia e têm em conta aspectos sociais... É muito vago, não é?... No entanto, além de ser vago, nem sequer é verdade: por exemplo, ambos os partidos defendem o capitalismo, e o capitalismo é contrário à democracia.

Mas um exemplo extremo deste tipo de designações inócuas, para não dizer enganadoras, com o objectivo único de captar eleitores, é precisamente o de "Partido Popular Europeu". Qualquer coisa entre o "partido do povo" e o "partido populista"... é algo que não diz nada de nada acerca do que se está efectivamente a defender. Note-se que essa é também uma designação que o CDS adoptou para si própria.

Mas voltemos à questão que ficou em aberto na última secção: porque é que a União Europeia só tem políticas que combatem sobreproduções na agricultura e na pecuária?

Agora que percebemos que a União Europeia é comandada por defensores do liberalismo económico, já podemos compreender que a questão a colocar deve ser precisamente a inversa: porque é que a União Europeia mantém a PAC? Isto porque já sabemos que o liberalismo económico defende que os mercados não devem sofrer qualquer tipo de intervenção de qualquer tipo de autoridade.

A PAC é uma política excepcional. Os liberais sabem bem que o funcionamento livre dos mercados gera crises de sobreprodução (muitas vezes seguidas de crises de sobprodução), gera crises de desemprego, gera concentrações económicas fabulosas, e gera uma data de outros efeitos socialmente indesejáveis. Os liberais defendem ainda assim este tipo de economia porque eles estão do lado dos fortes. E de cada vez que existe uma deslocalização de uma empresa, ou uma inundação com importações baratas que arrasa a economia local, ou uma falência ou algo do género, isso significa que há um lado mais forte que está a benificiar com isso tudo. E é esse lado mais forte que os liberais protegem.

Daí, por exemplo, todo o discurso liberal da meritocracia - que devemos premiar o mérito, isto é, devemos premiar os melhores, promover a excelência e por aí fora - que quase todas as pessoas aceitam de bom grado, sem se aperceberem que numa corrida, dê por onde der, só pode haver um vencedor, e que provavelmente esse vencedor não seremos nós!

A PAC e o liberalismo económico

A PAC é excepcional e existe apenas porque os liberais, por mais que liberais que fossem, eram também um pouco nacionalistas, e tinham também um pouco de medo de não ter o que comer ao virar da esquina. Afinal, os sistemas liberais só podem ser mantidos com Estados fortes, Estados protectores dos interesses liberais dos mais fortes, e toda essa máquina precisa de ser alimentada, literalmente.

No entanto, uma das coisas que tem mudado no mundo é a facilidade de circulação das pessoas, dos bens e do dinheiro. E isso tem tornado os liberais um pouco menos nacionalistas e um pouco menos medrosos, no sentido de que eles sentem, crescentemente, que não necessitam de depender das condições de um local em concreto da superfície do planeta: se o problema vem de acolá, passa-se a ter relações com o acoli; se as coisas correrem mal aqui, facilmente nos mudamos para ali.

Se houver crise nos tomates, faz-se cozinha inovadora com as mangas do Panamá.

E é assim que surgem as pressões para desmantelar os mecanismos da PAC que permitiram até agora manter uma comunidade de agricultores bem sustentada na União Europeia. O anúncio do fim das quotas na produção de leite é apenas um passo nesse sentido.

O impacto do fim das quotas na produção de leite

O fim das quotas na produção de leite significa que a produção do leite se irá passar a reger pelos mesmos mecanismos que existem no mercado dos computadores ou de outro qualquer bem transaccionável. Os produtores poderão dar azo à sua produtividade e aumentar a produção seu bel-prazer. Inevitavelmente os preços do leite no mercado europeu tenderão a baixar bastante. E isso irá aumentar a competição entre os produtores. Alguns produtores tentarão diferenciar-se, criando nos consumidores a ideia de que o seu leite é melhor que o da concorrência (o que muitas vezes poderá ser apenas uma ilusão), para assim conseguirem vender a um preço ligeiramente superior. Mas a grande maioria irá simplesmente acompanhar a descida de preços geral. Muitos produtores irão então descobrir que a produção de leite "já não compensa" e irão abandonar a actividade. O abandono da actividade de muitos produtores será bem-vinda pelos produtores que restarem.

Ou seja, no final acontece aquilo que os liberais defendem: a concorrência irá baixar os preços e puxar pela produtividade e pela competitividade das empresas, o que será benéfico para os consumidores, e será benéfico para os produtores, no sentido de que os melhores receberão o seu prémio. É a cartilha completa!



Cantava o José Mário Branco, na sua música "do que um homem é capaz":

"...
vão poluindo o percurso
com as sobras do discurso
que lhes serviu para abrir caminho

à custa das nossas utopias
usurpam regalias
para consumir sozinho

com políticas concretas
impõem essas metas
que nos entram casa dentro

como a trilateral
com a treta liberal
e as virtudes do centro

no lugar da consciência
a lei da concorrência
pisando tudo pelo caminho

p'ra castrar a juventude
mascaram de virtude
o querer vencer sozinho
..."

O que será pisado pelo caminho serão os produtores mais pequenos e naturalmente menos competitivos, que irão ser forçados a abandonar a actividade. Serão pisados os interesses dos animais, que passarão a ser olhados integralmente como máquinas de leite e viverão em ambientes como o que ilustro no início deste artigo. Serão pisados os interesses dos produtores de outros países, que verão os seus mercados inundados com os excedentes da produção europeia. Será pisada a diversidade genética, sendo eleita apenas a espécie mais produtiva, e passando-se o mesmo relativamente à alimentação das vacas. Será pisada a natureza, no sentido mais profundo, e ainda mais os interesses económicos dos mais pequenos, ao ser fomentada a utilização de produtos transgénicos. Serão pisados os interesses dos consumidores que ficarão cada vez mais sujeitos a serem enganados relativamente à verdadeira composição e proveniência do que estarão a consumir.

Mas tudo valerá a pena, dizem-nos, porque o leite será mais barato. Mesmo que já nem seja leite e mesmo que já não tenhamos dinheiro para o comprar.

A posição do CDS nos Açores como exemplo paradigmático

Diz uma notícia do jornal i, com a data de ontem, que "o CDS-PP/Açores anunciou esta terça-feira que vai agendar um debate de urgência sobre o fim das quotas leiteiras na Assembleia Legislativa da região, em Abril, para exigir ao Governo Regional que apresente uma estratégia para o sector."

(a posição do PSD é semelhante)

Isto parece uma anedota... mas não nos devemos rir tanto de aspectos que têm consequências tão sérias.

Parece uma anedota, porque o CDS é um partido liberal, mesmo que diga o contrário (se alguém tiver dúvidas em relação a isto faça o favor de investigar o conteúdo de todas as propostas defendidas pelo CDS no parlamento, por exemplo), e portanto o CDS não advoga a intervenção do Estado na economia. A "estratégia para o sector" que o CDS verdadeiramente defende é a ausência de estratégia, deixando os mercados funcionar livremente.

Por isso mesmo, quando uma medida deste tipo ameaça pôr em causa o modo de vida de uma proporção significativa do arquipélago dos Açores, o CDS fica dividido. Se lermos mais atentamente a tal notícia do jornal i, notaremos como o CDS defende "medidas" do governo regional, mas não defende os subsídios, defendendo em vez disso o aumento da competitividade das empresas e a redução dos custos de produção. Mas o aumento da competitividade das empresas e a redução dos custos de produção de leite é algo que compete exclusivamente às empresas, segundo a perspectiva do CDS, e que a concorrência tratará naturalmente de espicaçar. As explorações industriais de vacas e as rações trangénicas seguirão o seu caminho!...

É assim que o CDS, ao mesmo tempo que vê as suas próprias políticas a serem implementadas a nível da União Europeia, sente necessidade de dizer qualquer coisa, para parecer que está do lado dos agricultores, mesmo que na verdade diga apenas mais do mesmo.

Esta relação entre o CDS e a agricultura é uma coisa que se compreende melhor quando se percebe, por exemplo, a grande diferença que há entre a CNA - Confederação Nacional da Agricultura e a CAP - Confederação dos Agricultores de Portugal, e quando se coloca a questão numa perspectiva histórica, a começar de lá de trás, do tempo do feudalismo. É que na agricultura, como em tudo o resto, os interesses não são todos iguais: os interesses de quem tem mais são sempre muito distintos dos interesses de quem tem menos.

E é triste ver como agricultores e produtores pecuários de menor capacidade económica acabam convencidos com discursos à la Paulinho das Feiras, e acabam a dar o seu apoio a partidos políticos que depois, efectivamente, contribuem para a sua aniquilação económica. São os tiros nos pés desta gente...

terça-feira, 31 de março de 2015

Teaching...


Livro de Neil Postman e de Charles Weingartner que recomendo vivamente. Publicado pela primeira vez em 1969, mantém-se infelizmente muitíssimo actual e premente. Mais informação sobre o livro pode ser encontrada por exemplo aqui.

As ideias do Neil Postman, em geral, e este livro em concreto ajudam-me a sentir-me menos só. São ideias simples, que se tornam complexas apenas quando confrontadas com o pensamento dominante que está inculcado na cabeça de todos nós. Tornam-se complexas apenas porque colidem com as nossas ideias feitas a um nível muito profundo.

A nossa ideia feita acerca do ensino, por exemplo, é a de que existe um sentido universal para as coisas, existe informação cuja pertinência é independente de tudo o resto, e os alunos vão à escola para que os professores lhes transmitam essa informação e esse sentido, para que os alunos fiquem mais preparados para o mundo. "Mais preparados para o mundo" implica cada vez mais, à medida que o capitalismo aperta, o possuir as "competências" para poder vingar no "mercado de trabalho". Ou seja, ganhar muito dinheiro.

A subversão de que nos falam os autores deste livro é tão somente o questionar dessas ideias feitas. De todas as ideias feitas. Sempre que questionamos ideias feitas, estamos a subverter, estamos a virar as coisas do avesso, estamos a revolver, a revolucionar. O enfoque da subversão na actividade do ensino tem a ver com a crença dos autores de que a escola é uma instituição fundamental para as sociedades. Eu também acredito nisso. E muitas pessoas também acreditam nisso. O importante, porém, é compreender que não podemos ser ingénuos ao ponto de acreditar, como muitos, que o problema do mundo é a "falta de educação" das pessoas. A ingenuidade vem da crença, porventura inconsciente, de que "educação" é uma coisa universal, e é sempre boa, seja ela o que for.

O que os autores nos dizem, no entanto, é que para que a escola cumpra a sua função primordial, ela tem de ser subvertida. Por um lado, a subversão tem de existir face ao que era, e infelizmente ainda é, a realidade das escolas. Mas por outro lado é o próprio método subversivo que tem de ser fomentado nos alunos. Fomentado e não criado, porque todas as pessoas têm à partida um método subversivo que faz parte das suas funções inatas. E o que as escolas da época, e infelizmente ainda as actuais, melhor fazem é precisamente matar esse espírito subversivo...

O fomento do método subversivo nas pessoas concretiza-se na construção de um "crap detector", um detector de tretas, à la Hemingway, do qual aliás já aqui falei no passado.

Os autores abordam com alguma ênfase a ideia de que "the medium is the message", isto é, de que o conteúdo do que se transmite está intimamente ligado à forma como se transmite, e que esta última altera o modo como o conteúdo é percepcionado pelo receptor. Por exemplo, quando numa sala de aula se transmitem conhecimentos assumindo uma autoridade que não deve ser questionada, a mensagem que está verdadeiramente a ser transmitida é precisamente a de que existem autoridades de conhecimento que não devem ser questionadas. Noutro exemplo, as palavras que utilizamos para formular uma ideia, elas próprias servem para formatar e conter essa ideia. O mesmo é dizer que as palavras que utilizamos condicionam o nosso pensamento. Por isso mesmo os autores também dedicam um capítulo deste livro ao linguajar ("languaging"), dizendo-nos, por exemplo, que aquilo que dizemos que uma coisa é, ela não é, no sentido em que a verdade objectiva nunca é perfeitamente captada pelas nossas ideias, mas também aquilo que dizemos que uma coisa é, ela é mesmo, no sentido de que a verdade subjectiva acerca da realidade que nos envolve se molda às palavras que utilizamos para a definir. Assim, quando dizemos a um aluno que ele é inteligente, ele passa a percepcionar-se a si próprio como inteligente e isso pode efectiva e objectivamente torná-lo mais inteligente (embora não necessariamente). Assim também, e agora noutro contexto, quando dizemos que as instituições bancárias são fundamentais para o funcionamento da economia, elas passam mesmo a ser fundamentais, na nossa percepção, mesmo que nem sequer saibamos bem o que é ou como funciona uma "instituição bancária" ou uma "economia".

Mas os três capítulos que para mim assumem a maior importância neste livro são: "pursuing relevance", "what's worth knowing?" e "meaning making".

No fundo, esses três capítulos abordam a questão da consequência, do propósito, do sabermos o que andamos aqui a fazer. E essas são, a meu ver, as questões fundamentais de toda a nossa existência, que subjazem a tudo aquilo que fazemos ao longo das nossas vidas e que, portanto, devem mesmo ser levantadas ao virar de cada esquina, e mesmo no meio de cada recta, para nos assegurarmos de que vamos no bom caminho.

Desde há muitos anos que tenho esta imagem da humanidade como a tripulação de uma nave espacial, o planeta Terra, a deambular pelo espaço... A humanidade esforça-se muito por fazer com que a nave funcione bem. É assim que as pessoas se empenham nas suas tarefas do dia-a-dia e é daí que acabam por extrair o sentido das suas vidas. No entanto, ninguém sabe para onde a nave vai, e aparentemente ninguém se preocupa muito com isso!...

Na analogia dos autores deste livro, a humanidade age como alguém que conduz um automóvel olhando apenas através dos espelhos retrovisores. Ou seja, a humanidade não sabe para onde vai, apenas altera o seu comportamento consoante aquilo que são as suas interpretações do passado. Não obstante, a humanidade, entusiasmada por aquilo que considera ser o "progresso", carrega cada vez mais no acelerador... Os autores, com o que me parece ser alguma sensatez, dizem que não devemos esperar nada de bom se continuarmos a agir assim.

Também eu, em diversos momentos no passado, chamei a atenção para esta nossa ideia feita do "don't stand there, do something", ou seja, de que agir é o melhor que podemos fazer, mesmo que não tenhamos pensado muito no assunto e não saibamos muito bem o que é que efectivamente estamos a fazer. Somos uma sociedade de acção e acreditamos que para a frente é que é o caminho e que muita agitação (de preferência mental) é o que nos vai resolver os problemas. É assim, por exemplo, que acreditamos que a solução dos problemas económicos se atinge sempre com mais crescimento económico...

No entanto, é precisamente esta ideia feita que acaba por perpetuar e agravar uma série de problemas. O problema fundamental será precisamente o do nosso bem-estar, colectivo e individual, e da sua consequência no meio que nos envolve e no futuro bem-estar de outros. Procurar a felicidade de uma forma frenética, sem parar para pensar bem no que se está a fazer, pode ter consequências desastrosas...

É também assim que todos colocámos os nossos filhos nas escolas, para que aprendam, mas nunca nos perguntámos seriamente: o que é que é importante aprender?... Porquê?... Para quê?...

O importante a aprender será precisamente um método para aprender. Ou seja, é mais importante aprender a encontrar respostas às questões que nós próprios levantamos do que aprender uma colecção de dados que para nós não tem significado. Mas mais importante do que isso é saber formular as questões certas!

Por exemplo: eu vejo muitas pessoas à minha volta preocupadas com a questão de saber como hão-de conseguir ganhar mais dinheiro. Mas será essa a questão mais pertinente para essas pessoas?... Terão essas pessoas esquecido outras questões mais pertinentes?... Terão essas pessoas atrofiado a sua capacidade de questionar?...

Os autores dão-nos uma lista de perguntas que eles consideram ser relevantes (a tradução é minha):


  • o que é que te preocupa mais?
  • quais são as causas das tuas preocupações?
  • pode alguma das tuas preocupações ser eliminada? como?
  • qual das tuas preocupações abordarias primeiro? como podes decidir isso?
  • há outras pessoas com os mesmos problemas? como podes saber isso? como podes descobrir?
  • se tivesses uma ideia importante que quererias dar a conhecer a toda a gente do mundo, como farias para o conseguir?
  • o que é que te preocupa mais nos adultos? porquê?
  • de que forma queres ser semelhante ou diferente dos adultos que conheces quando cresceres?
  • achas que existe algo pelo qual valha a pena morrer? o quê?
  • como é que começaste a acreditar nisso?
  • o que é que achas que faz com que valha a pena viver?
  • como é que começaste a acreditar nisso?
  • actualmente, o que é que gostarias mais de ser, ou de ser capaz de fazer? porquê? o que é que precisarias de saber para atingires isso? o que é que terias de fazer para atingir esse conhecimento?
  • como é que podes distinguir os "tipos bons" dos "tipos maus"?
  • como é que o "bom" pode ser distinguido do "mau"?
  • que tipo de pessoa é que gostarias mais de ser? como é que podes conseguir vir a ser esse tipo de pessoa?
  • actualmente, o que é que gostarias mais de estar a fazer? e daqui a cinco anos? e daqui a dez anos? porquê? o que é que terias de fazer para concretizar essas expectativas? do que é que terias de desistir para conseguires fazer algumas ou todas essas coisas?
  • quando ouves ou lês ou observas algo, como é que sabes o que significa?
  • de onde vem o significado?
  • o que é que significa "significado"?
  • como é que podes saber o que uma coisa "é"?
  • de onde vêm as palavras?
  • de onde vêm os símbolos?
  • porque é que os símbolos mudam?
  • de onde vem o conhecimento?
  • quais é que achas que são as ideias mais importantes da humanidade? de onde é que elas surgiram? porquê? como? e agora o que faremos com elas?
  • o que é uma "boa ideia"?
  • como é que podes saber se uma ideia boa ou viva se torna numa ideia má ou morta?
  • que ideias da humanidade seria melhor esquecer? como é que decides?
  • o que é o "progresso"?
  • o que é a "mudança"?
  • quais são as causas mais evidentes da mudança? quais são as causas menos evidentes? que condições são necessárias para que haja mudança?
  • que tipos de mudança é que estão a acontecer neste preciso momento? quais são importantes? como é que elas são semelhantes ou diferentes de outras mudanças que já ocorreram?
  • quais são as relações entre novas ideias e mudança?
  • de onde vêm as ideias novas? como? e depois?
  • se quiseres parar uma mudança que está a ocorrer agora mesmo, escolhe uma, como é que farias? que consequências deverias considerar?
  • das mudanças importantes que agora estão a decorrer na nossa sociedade, quais deveriam ser fomentadas e quais deveriam ser restringidas? porquê? como?
  • quais são as mudanças mais importantes que ocorreram nos últimos dez anos? vinte anos? cinquenta anos? no último ano? nos últimos seis meses? no último mês? qual será a mudança mais importante no próximo mês? no próximo ano? na próxima década? como é que podes dizer? e daí?
  • o que é que mudarias se pudesses? como é que o conseguirias? das mudanças que irão ocorrer, quais é que impedirias se conseguisses? porquê? como? e daí?
  • quem é que tu pensas que tem as coisas mais importantes para dizer hoje em dia? a quem? como? porquê?
  • quais são as ideias mais estúpidas e perigosas que são populares hoje em dia? porque é que pensas isso? de onde vieram essas ideias?
  • quais são as condições necessárias para manter a vida? plantas? animais? humanos?
  • quais dessas condições são necessárias para todas as formas de vida?
  • quais para as plantas? quais para os animais? quais para os humanos?
  • quais são as maiores ameaças para todas as formas de vida? para plantas? para animais? para humanos?
  • quais são as estratégias que os seres vivos utilizam para sobreviver? quais são únicas das plantas? quais são únicas dos animais? quais são únicas dos homens?
  • que tipos de estratégia de sobrevivência humana são (1) semelhantes às estratégias das plantas ou dos animais e (2) diferentes das estratégias das plantas ou dos animais?
  • que estratégias de sobrevivência a linguagem humana permite desenvolver que os animais não consigam?
  • como é que as estratégias de sobrevivência humana seriam diferentes se ele não tivesse linguagem?
  • que outros tipos de linguagem os humanos possuem para além dos que consistem em palavras?
  • que funções é que estas linguagem têm? como e porque é que se criaram? podes inventar uma linguagem nova? como é que começarias?
  • o que é que aconteceria, que diferença faria, o que é que a humanidade não poderia fazer se não tivesse linguagens numéricas (matemáticas)?
  • quantos sistemas simbólicos a humanidade possui? como é que se chegou aí? e daí?
  • quais são alguns exemplos de símbolos bons? e maus?
  • que bons símbolos poderíamos usar mas que ainda não temos?
  • que maus símbolos temos e que viveríamos melhor sem eles?
  • o que é que vale a pena saber? como é que decides? quais são algumas maneiras de conseguir saber aquilo que vale a pena saber?
Vale a pena pensar, digo eu, no modo como as nossas escolas actuais dão ou não resposta a questões deste tipo. Vale a pena nós próprios pensarmos em como nós próprios pensamos ou não em questões deste tipo. Vale a pena nós próprios pararmos para reflectirmos e tentarmos dar resposta a questões deste tipo.

Vale a pena sabermos para que é que queremos o dinheiro, antes de nos matarmos para o conseguir. Vale a pena saber para que é que vamos ler livros, antes de lermos tudo o que nos aparecer à frente. Vale a pena saber o que é que andamos a fazer na vida...

Mas, como é que poderemos saber o que andamos aqui a fazer, e como é que poderemos decidir o que fazer?...

Para isso precisamos das nossas percepções e dos significados que lhes atribuímos. Baseados nos trabalhos de outros autores, os deste livro afirmam então:
  1. As nossas percepções não vêm das coisas à nossa volta, vêm de dentro de nós. Isso não significa que a realidade não tenha uma existência objectiva, mas que nós só lhe podemos chegar através do nosso sistema nervoso.
  2. As nossas percepções são uma função das nossas experiências passadas, dos nossos pressupostos e dos nossos objectivos. Ou seja, em geral nós apercebemo-nos das coisas como queremos e precisamos de as perceber.
  3. Em geral só ficamos disponíveis para mudar as nossas percepções quando somos frustrados no intento de fazer algo baseado nelas. Se as nossas percepções nos permitem atingir os nossos objectivos, não as vamos mudar, por mais que nos digam que elas estão "erradas" (para nós não estão).
  4. As percepções são únicas a cada um de nós. A comunicação com outras pessoas só se torna possível quando somos capazes de partilhar objectivos, pressupostos e experiências, isto é, quando somos capazes de "ver" o ponto de vista dos outros.
  5. As nossas percepções dependem dos nossos sistemas de classificação e categorização, os quais dependem da nossa linguagem. Nós vemos com a nossa linguagem.
  6. O significado de uma percepção é o modo como ela nos leva a agir.
Enfim, um livro que recomendo vivamente, e que está disponível online, por exemplo aqui.

"Remember: in order for a perception to change one must be frustrated in one's actions or change one's purpose. Remember too, that no one can force anyone else to change his perception."

quinta-feira, 19 de março de 2015

O submarino irrevogável...




terça-feira, 17 de março de 2015

A direita e as reformas estruturais - o paradoxo fundamental do liberalismo económico...


O liberalismo económico, qualquer que seja a sua modalidade, é um modo de interpretar e de fazer funcionar a economia com o mínimo de intervenção do Estado ou outras instituições colectivas.

Mas, o que é isso de "economia"? Bom, economia é o conjunto de pessoas e respectivas actividades que se destinam à satisfação das necessidades das pessoas. Se pensarem no assunto, compreenderão que economia é praticamente tudo o que as pessoas fazem, mesmo enquanto estão a dormir! Por isso mesmo, tudo o que afecta a economia, afecta a vida das pessoas e afecta tudo o resto que se passa na sociedade. E por isso mesmo Marx dizia que a economia era a infraestrutura social, isto é, aquilo que subjaz e que molda tudo o resto, incluindo as ideias das pessoas. A mim não me restam dúvidas que uma pessoa que nasce e cresce num ambiente abastado tem tendência a ter ideias económicas, políticas... até morais, diferentes de uma pessoa que nasce e cresce num ambiente depauperado.

E o que é isso de "Estado ou outras instituições colectivas"? Bom, na verdade isto não está bem escrito. Porque as empresas são instituições colectivas, e o liberalismo é todo acerca da promoção das empresas. As instituições colectivas a que nos referimos nesta definição de liberalismo são as instituições que são democráticas, isto é, cujo poder é exercido directa ou indirectamente pela maioria das pessoas, e em que cada pessoa tem o mesmo poder que qualquer outra. Uma cooperativa em que cada cooperante tem um voto de igual valor a todos os outros, é uma instituição colectiva deste tipo, ao contrário de uma empresa, onde só os accionistas têm poder, e têm-no de forma desigual, de acordo com o dinheiro que investiram na empresa. O Estado será a instituição colectiva de uma nação inteira e, portanto, do ponto de vista do liberalismo, o alvo preferencial a abater.

A ideia que os defensores do liberalismo tentam transmitir às pessoas é que o abandono das questões sociais à livre iniciativa de cada um, sem a intervenção dessas tais instituições colectivas (a que agora já sabemos que podemos chamar de democráticas), é a melhor forma da sociedade atingir o seu bem-estar máximo. Quanto mais o Estado intervier na economia, isto é, na vida de cada um, mais problemas irão surgir e mais dificilmente maximizaremos o bem-estar de todos.

Baseados nessa premissa, os liberalistas defendem a desregulamentação da economia.

É possível que as pessoas não se sintam muito atraídas pela ideia de uma economia "desregulada"... Isso pode fazê-los pensar em qualquer coisa como "a lei da selva" ou assim... Portanto os liberalistas não afirmam as coisas deste modo. Em vez disso falam-nos em flexibilização. Já não falam de desregulamentação, mas sim de flexibilização, de desburocratização, de incentivos à iniciativa de cada um... enfim, uma data de eufemismos que as pessoas costumam digerir muito melhor e que muitas delas até acabam por ficar convencidas que é mesmo daquilo que gostam.

E para implementarem a sua flexibilização, os liberalistas defendem "reformas estruturais".

E o qual é o conteúdo destas "reformas estruturais"? Bom, é tudo aquilo que conduza à desregulamentação da economia, isto é, tudo o que conduza à supremacia da inciativa individual sobre as decisões colectivas. Assim, as reformas estruturais dos liberalistas (ou liberais... não quero guerras de palavras) incluem, por exemplo:
  • privatização de todas as empresas e instituições detidas pelo Estado. Em Portugal estas reformas têm andado bastante bem. Desde o período "revolucionário" que se seguiu ao 25 de Abril, no qual se procedeu à nacionalização de uma série de instituições, as reformas têm conseguido reprivatizar tudo e mais alguma coisa: transportes, comunicações, energia, saúde, educação, etc.
  • limitação do poder (e se possível extinção... mas isso ainda não conseguiram chegar lá) das estruturas colectivas de representação dos trabalhadores, isto é, dos sindicatos
  • no mesmo sentido, alteração da legislação que regulamenta o trabalho (actualmente o código do trabalho, a lei geral do trabalho em funções públicas e normas acessórias) de modo a isolar os agentes económicos, isto é, as pessoas, no contexto do mercado de trabalho. Ou seja, tudo o que houver para negociar em questões de trabalho é cada vez mais deixado à negociação entre o empregador e o empregado, isolados e sem terem de obedecer a outras regras. Tudo fica entregue à liberdade de cada pessoa... é a imagem que tentam deixar passar. Mas como é que se exerce a liberdade individual quando não há regras e a diferença de poder original é abissal?
  • desmantelamento de instrumentos de política económica de modo que os Estados deixem de ser capazes de intervir nas respectivas economias e tudo passe a depender da soma das vontades individuais condicionadas pelo respectivo poder económico. Incluem-se aqui as integrações em organismos supra-nacionais como a União Europeia, a abertura das fronteiras económicas (e com isso a aniquilação da política alfandegária), a liberalização dos fluxos de capitais, a adesão a moedas únicas (e com isso a aniquilação da política cambial), a adopção de regras de emissão monetária independente da vontade política (como é o caso com o Banco Central Europeu, e com isso a aniquilação da política monetária), o deslize para e a aceitação de sistemas de agiotagem como o que engloba as dívidas públicas soberanas (e com isso a aniquilação da política orçamental), etc.
  • descredibilização dos órgãos máximos do Estado, fazendo as pessoas acreditar que os políticos são todos iguais, que não há alternativas, que os governos não têm poder nenhum sobre nada porque tudo depende da conjuntura económica internacional, da vontade dos EUA, do preço do petróleo, das decisões da União Europeia, etc.
  • afastamento dos centros de decisão das pessoas, concentrando e transferindo o poder das instituições colectivas, como o Estado, para instituições supra-nacionais que a maioria das pessoas não faz ideia do que sejam.
  • etc.
O paradoxo do liberalismo económico é precisamente que todas estas "reformas estruturais" têm de ser implementadas, à força, contra a vontade das populações, para que consigamos atingir finalmente o tão desejado (por alguns!) liberalismo económico!

Os liberais e as pessoas de direita fazem-nos acreditar que o liberalismo é um sistema "natural", um sistema sem imposições, onde as regras que vigoram são apenas as regras que qualquer sociedade, abandonada a si própria, e pela iniciativa de cada pessoa, acabaria por desenvolver. E que esse é o melhor modo de gerir uma economia.

No entanto, isso é redondamente falso! Todas as sociedades humanas, quando abandonadas a si próprias, desenvolvem regras de convivência em sociedade. E em todas essas sociedades, essas regras de convivência em sociedade incluem regras que limitam o poder dos mais poderosos, que incluem elementos de justiça, que são integradoras, que incluem estruturas colectivas democráticas, etc.

Pelo contrário, os sistemas económicos liberais que nos apregoam como sendo naturais são apenas e só o produto das tais "reformas estruturais" que políticos com mão de ferro, como a senhora Thatcher (uma besta de ferro, isso sim, que infelizmente as pessoas continuam a achar admirável) e todos os políticos de direita deste mundo "ocidentalizado", têm implementado, com grandes sacrifícios sociais, desde os anos 70 do século passado. Aqui em Portugal, os responsáveis pela implementação de tal pacote são os que sempre estiveram no governo desde o 25 de Abril: PSD e PS.

(E depois ainda nos querem fazer acreditar que o PS é um partido de esquerda?... Enfim, se perceberam o que disse acerca da descredibilização do sistema político como uma das facetas destas "reformas estruturais", então talvez entendam porque lhes é tão importante manter um partido como o PS a fazer de conta que é "socialista")

Bom... para já continuamos simplesmente com mais do mesmo... porque hoje mesmo, os "media" anunciam que o FMI quer melhores gestores nas empresas portuguesas!...

E como é que pretendem chegar lá, senhores excelsos arautos do liberalismo económico?... Com mais reformas estruturais?... Não seria bom, por uma vez, serem coerentes?... Se defendem o liberalismo, então deixem o liberalismo funcionar!

(Tive de interromper a escrita deste artigo para ir ao hospital. O meu pai teve consulta de pneumologia oncológica de manhã e à tarde terá sessão de hemodiálise. As duas coisas são em pavilhões separados. O meu pai não tem saúde para se deslocar pelos seus meios de um pavilhão para o outro. E, num momento em que hospitais privados equipados com o melhor que há em termos de material crescem que nem cogumelos por todo o lado, este hospital público acaba de anunciar que já não faz o transporte de doentes entre pavilhões!... Obrigado pelas vossas reformas estruturais, filhos da puta da direita económica liberal portuguesa, europeia e mundial!...)

Porque eu também defendo reformas estruturais, sim senhor. Só que ao menos sou coerente, e não defendo liberalismo nenhum! Quando se ama, não se deixa as coisas ao deus-dará! Ou acham que os filhos tornam-se melhores pessoas se abandonadas a si próprias?... As reformas estruturais que eu defendo seriam para criar melhores gestores, sim, mas sobretudo para criar melhores pessoas, que não precisassem de ninguém para as gerir!

segunda-feira, 9 de março de 2015

Tanto mar...

Uma música linda, do Chico Buarque, composta em 1975 para celebrar a revolução (diz que foi!) do 25 de Abril de 1974.



A letra da música foi censurada no Brasil (até 1978), que vivia à época uma ditadura militar. O próprio Chico a falar do assunto, em 1978:


Conforme ele diz, em 1978 "a revolução portuguesa já não é..." Deixou de ser uma revolução, para ser um conjunto de reformazinhas e a preparação de um longo caminho para voltar a pôr tudo como dantes (que, aliás, foi atingido com muito sucesso, conforme podemos verificar hoje em dia, com tudo o que era do Estado privatizado, a lei do mais forte, perdão, do mercado em força, hospitais privados que nem cogumelos, e por aí). Daí a mudança, para a segunda versão deste último vídeo.

Manda novamente algum cheirinho de alecrim!...
:)

Em termos musicais, quero salientar aqui as palmas finais desta segunda versão da música. Se tentarem acompanhar, irão reparar que há algumas mudanças a meio que são difíceis de acompanhar para quem não é experiente em ritmos (como é o meu caso). O tempo é claramente ternário. A questão é que no início das palmas temos duas batidas nos dois primeiros tempos do compasso e depois uma pausa, mas depois passa a uma pausa seguida de duas batidas nos dois últimos tempos do compasso. Representando com O palmas e com _ uma pausa, o que acontece na música é isto:

OO_
OO_
OO_
OO_

OO_
OO_
OO_
O_O

_OO
_OO
_OO
_OO

_OO
_OO
_OO
_O_

OO_
OO_
OO_
OO_

OO_
OO_
OO_
O_O

_OO
_OO
_OO
_OO

_OO
_OO
_OO
_O_

OO_
OO_
...

Tentem ouvir a música a olhar para as bolinhas e tracinhos e acompanhar com palmas nos momentos certos. Podem reparar que a mudança acontece a cada oitavo compasso. Se sentirem isto dentro de vós, ou se souberem contar até 8, e se praticarem um bocadito, poderão acompanhar as palmas sem a ajuda das bolinhas. E é uma sensação porreira acertar com elas nos sítios certos, de cor! :)


De resto, em relação a esta questão de mar, mar, mar e mar... há mar e mar, e há também isto:



Mar

mar...
cheira a mar
mar...
quero o mar
e se as costas me doem
é porque daqui não vejo peixe no mar
daqui não vejo o mar
tanto mar
mar...

sinto o vento a vir
e no mar crescem ondas ...grandes ondas
sinto o vento a vir
o vento a vir do mar

no outro dia,
do mar já não vem nada
é que aqui não se passa nada

e “mar”
já não me diz nada.

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:) muito bom!...

(mais de TV Rural aqui)