terça-feira, 17 de março de 2015

A direita e as reformas estruturais - o paradoxo fundamental do liberalismo económico...


O liberalismo económico, qualquer que seja a sua modalidade, é um modo de interpretar e de fazer funcionar a economia com o mínimo de intervenção do Estado ou outras instituições colectivas.

Mas, o que é isso de "economia"? Bom, economia é o conjunto de pessoas e respectivas actividades que se destinam à satisfação das necessidades das pessoas. Se pensarem no assunto, compreenderão que economia é praticamente tudo o que as pessoas fazem, mesmo enquanto estão a dormir! Por isso mesmo, tudo o que afecta a economia, afecta a vida das pessoas e afecta tudo o resto que se passa na sociedade. E por isso mesmo Marx dizia que a economia era a infraestrutura social, isto é, aquilo que subjaz e que molda tudo o resto, incluindo as ideias das pessoas. A mim não me restam dúvidas que uma pessoa que nasce e cresce num ambiente abastado tem tendência a ter ideias económicas, políticas... até morais, diferentes de uma pessoa que nasce e cresce num ambiente depauperado.

E o que é isso de "Estado ou outras instituições colectivas"? Bom, na verdade isto não está bem escrito. Porque as empresas são instituições colectivas, e o liberalismo é todo acerca da promoção das empresas. As instituições colectivas a que nos referimos nesta definição de liberalismo são as instituições que são democráticas, isto é, cujo poder é exercido directa ou indirectamente pela maioria das pessoas, e em que cada pessoa tem o mesmo poder que qualquer outra. Uma cooperativa em que cada cooperante tem um voto de igual valor a todos os outros, é uma instituição colectiva deste tipo, ao contrário de uma empresa, onde só os accionistas têm poder, e têm-no de forma desigual, de acordo com o dinheiro que investiram na empresa. O Estado será a instituição colectiva de uma nação inteira e, portanto, do ponto de vista do liberalismo, o alvo preferencial a abater.

A ideia que os defensores do liberalismo tentam transmitir às pessoas é que o abandono das questões sociais à livre iniciativa de cada um, sem a intervenção dessas tais instituições colectivas (a que agora já sabemos que podemos chamar de democráticas), é a melhor forma da sociedade atingir o seu bem-estar máximo. Quanto mais o Estado intervier na economia, isto é, na vida de cada um, mais problemas irão surgir e mais dificilmente maximizaremos o bem-estar de todos.

Baseados nessa premissa, os liberalistas defendem a desregulamentação da economia.

É possível que as pessoas não se sintam muito atraídas pela ideia de uma economia "desregulada"... Isso pode fazê-los pensar em qualquer coisa como "a lei da selva" ou assim... Portanto os liberalistas não afirmam as coisas deste modo. Em vez disso falam-nos em flexibilização. Já não falam de desregulamentação, mas sim de flexibilização, de desburocratização, de incentivos à iniciativa de cada um... enfim, uma data de eufemismos que as pessoas costumam digerir muito melhor e que muitas delas até acabam por ficar convencidas que é mesmo daquilo que gostam.

E para implementarem a sua flexibilização, os liberalistas defendem "reformas estruturais".

E o qual é o conteúdo destas "reformas estruturais"? Bom, é tudo aquilo que conduza à desregulamentação da economia, isto é, tudo o que conduza à supremacia da inciativa individual sobre as decisões colectivas. Assim, as reformas estruturais dos liberalistas (ou liberais... não quero guerras de palavras) incluem, por exemplo:
  • privatização de todas as empresas e instituições detidas pelo Estado. Em Portugal estas reformas têm andado bastante bem. Desde o período "revolucionário" que se seguiu ao 25 de Abril, no qual se procedeu à nacionalização de uma série de instituições, as reformas têm conseguido reprivatizar tudo e mais alguma coisa: transportes, comunicações, energia, saúde, educação, etc.
  • limitação do poder (e se possível extinção... mas isso ainda não conseguiram chegar lá) das estruturas colectivas de representação dos trabalhadores, isto é, dos sindicatos
  • no mesmo sentido, alteração da legislação que regulamenta o trabalho (actualmente o código do trabalho, a lei geral do trabalho em funções públicas e normas acessórias) de modo a isolar os agentes económicos, isto é, as pessoas, no contexto do mercado de trabalho. Ou seja, tudo o que houver para negociar em questões de trabalho é cada vez mais deixado à negociação entre o empregador e o empregado, isolados e sem terem de obedecer a outras regras. Tudo fica entregue à liberdade de cada pessoa... é a imagem que tentam deixar passar. Mas como é que se exerce a liberdade individual quando não há regras e a diferença de poder original é abissal?
  • desmantelamento de instrumentos de política económica de modo que os Estados deixem de ser capazes de intervir nas respectivas economias e tudo passe a depender da soma das vontades individuais condicionadas pelo respectivo poder económico. Incluem-se aqui as integrações em organismos supra-nacionais como a União Europeia, a abertura das fronteiras económicas (e com isso a aniquilação da política alfandegária), a liberalização dos fluxos de capitais, a adesão a moedas únicas (e com isso a aniquilação da política cambial), a adopção de regras de emissão monetária independente da vontade política (como é o caso com o Banco Central Europeu, e com isso a aniquilação da política monetária), o deslize para e a aceitação de sistemas de agiotagem como o que engloba as dívidas públicas soberanas (e com isso a aniquilação da política orçamental), etc.
  • descredibilização dos órgãos máximos do Estado, fazendo as pessoas acreditar que os políticos são todos iguais, que não há alternativas, que os governos não têm poder nenhum sobre nada porque tudo depende da conjuntura económica internacional, da vontade dos EUA, do preço do petróleo, das decisões da União Europeia, etc.
  • afastamento dos centros de decisão das pessoas, concentrando e transferindo o poder das instituições colectivas, como o Estado, para instituições supra-nacionais que a maioria das pessoas não faz ideia do que sejam.
  • etc.
O paradoxo do liberalismo económico é precisamente que todas estas "reformas estruturais" têm de ser implementadas, à força, contra a vontade das populações, para que consigamos atingir finalmente o tão desejado (por alguns!) liberalismo económico!

Os liberais e as pessoas de direita fazem-nos acreditar que o liberalismo é um sistema "natural", um sistema sem imposições, onde as regras que vigoram são apenas as regras que qualquer sociedade, abandonada a si própria, e pela iniciativa de cada pessoa, acabaria por desenvolver. E que esse é o melhor modo de gerir uma economia.

No entanto, isso é redondamente falso! Todas as sociedades humanas, quando abandonadas a si próprias, desenvolvem regras de convivência em sociedade. E em todas essas sociedades, essas regras de convivência em sociedade incluem regras que limitam o poder dos mais poderosos, que incluem elementos de justiça, que são integradoras, que incluem estruturas colectivas democráticas, etc.

Pelo contrário, os sistemas económicos liberais que nos apregoam como sendo naturais são apenas e só o produto das tais "reformas estruturais" que políticos com mão de ferro, como a senhora Thatcher (uma besta de ferro, isso sim, que infelizmente as pessoas continuam a achar admirável) e todos os políticos de direita deste mundo "ocidentalizado", têm implementado, com grandes sacrifícios sociais, desde os anos 70 do século passado. Aqui em Portugal, os responsáveis pela implementação de tal pacote são os que sempre estiveram no governo desde o 25 de Abril: PSD e PS.

(E depois ainda nos querem fazer acreditar que o PS é um partido de esquerda?... Enfim, se perceberam o que disse acerca da descredibilização do sistema político como uma das facetas destas "reformas estruturais", então talvez entendam porque lhes é tão importante manter um partido como o PS a fazer de conta que é "socialista")

Bom... para já continuamos simplesmente com mais do mesmo... porque hoje mesmo, os "media" anunciam que o FMI quer melhores gestores nas empresas portuguesas!...

E como é que pretendem chegar lá, senhores excelsos arautos do liberalismo económico?... Com mais reformas estruturais?... Não seria bom, por uma vez, serem coerentes?... Se defendem o liberalismo, então deixem o liberalismo funcionar!

(Tive de interromper a escrita deste artigo para ir ao hospital. O meu pai teve consulta de pneumologia oncológica de manhã e à tarde terá sessão de hemodiálise. As duas coisas são em pavilhões separados. O meu pai não tem saúde para se deslocar pelos seus meios de um pavilhão para o outro. E, num momento em que hospitais privados equipados com o melhor que há em termos de material crescem que nem cogumelos por todo o lado, este hospital público acaba de anunciar que já não faz o transporte de doentes entre pavilhões!... Obrigado pelas vossas reformas estruturais, filhos da puta da direita económica liberal portuguesa, europeia e mundial!...)

Porque eu também defendo reformas estruturais, sim senhor. Só que ao menos sou coerente, e não defendo liberalismo nenhum! Quando se ama, não se deixa as coisas ao deus-dará! Ou acham que os filhos tornam-se melhores pessoas se abandonadas a si próprias?... As reformas estruturais que eu defendo seriam para criar melhores gestores, sim, mas sobretudo para criar melhores pessoas, que não precisassem de ninguém para as gerir!

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