domingo, 12 de outubro de 2014

Para o meu filho, que ainda não nasceu...

Se soubesses como és querido, filho...

Aqui, por todo o lado, todos te querem, filho. Preocupam-se que não nasças, dizem que a natalidade está muito baixa. Por isso desejam bebés e querem-te a ti também, filho.

Alguns têm medo de não ter dinheiro quando já não puderem trabalhar, e contam contigo para trabalhares para eles. Ficarás então incumbido de trabalhar muito e bem para os outros. Quanto mais próximas as pessoas forem de ti, mais quererão que trabalhes muito e bem. Chamarão a isso sucesso. E para que possas ter muito sucesso, essas pessoas quererão que aprendas muitas coisas. Mas as coisas certas! Não quererão que aprendas a falar mirandês, que isso não serve para nada, mas inglês, que é a língua dos negócios. Não quererão que aprendas a questionar, não vás tu questionar o mundo e questioná-los a eles, mas antes quererão que decores, enumeres e nomeies todas as coisas, para assim poderes deixar de pensar nelas enquanto te tornas num campeão da trivialidade que lhes é tão querida. Não quererão que aprendas na rua, nem com os amigos, nem com os pais, muito menos na tua própria vivência, mas sim num instituto de renome que emita diplomas valorizados pelos mais poderosos do planeta.

Dir-te-ão que é tudo para o teu bem, filho. E para o teu bem tentarão fazer de ti o super-homem...

Por aqui, por todo o lado, todos te querem muito. Há quem se sinta mal num mundo com poucas crianças, sabes? Dizem que as crianças são alegria, porque já não a conseguem encontrar em si próprios ou à sua volta, no mundo dos adultos. Perderam a alegria e a esperança de a encontrar ou construir. E por isso dizem que as crianças são esperança. Mas não tenhas tu tantas esperanças, filho, porque não te irão deixar construir um mundo melhor. Enquanto fores criança, precisamente quando virem em ti a esperança com pernas, dir-te-ão que não, que não podes, porque não sabes, porque não atinges, ainda tens muito para aprender. Depois, quando já fores maior que a esperança deles, dar-te-ão todas as justificações para que nunca possas mudar nada, para que nunca corram o risco de perder o que já têm e para que nunca entendas que afinal o medo deles foi sempre muito maior que a esperança.

Ficas então a saber, meu filho, que te quererão muito enquanto bebé, mas que depois te quererão cada vez menos, e estarão prontos a deitar-te ao lixo quando fores velho. A menos que trabalhes muito e bem. Que tenhas muito sucesso. Mas não te enganes: trabalhar bem não significa fazer as coisas bem feitas. Significa ganhar muito dinheiro. Só isso. Depois, se tiveres muito sucesso, poderás então ajudar muita gente. Ajudar não significa motivar, alertar, cooperar... significa apenas dar dinheiro. Os teus próprios familiares, quando não tiverem forças para tomarem banho sozinhos, preferirão que tenhas sucesso e lhes compres um robot a que lhes dês o banho tu mesmo.

Mas como te querem, filho... Precisam de bebés para se entreterem, porque eles nunca foram capazes de se entreter por sua conta. Cedo lhes mataram a curiosidade e eles nada fizeram para a ressuscitar. Por isso irão deliciar-se com a tua curiosidade. Mas também a irão matar, filho... Para o teu próprio bem! Porque este mundo está cheio de perigos, dizem. Eles nunca os viveram, mas sabem bem que é assim, porque os vêem todos os dias na televisão. Assim, porque te querem muito, nunca te deixarão andar sozinho na rua, nem sequer acompanhado pelos teus amigos. Dar-te-ão instruções para nunca falares com estranhos de tal modo que todos à tua volta continuarão a ser estranhos pela vida fora. Todas as esquinas ficarão protegidas com peças de plástico e borracha, as facas os medicamentos os electrodomésticos o isqueiro ficarão trancados a sete chaves, e tu próprio andarás escudado em capacetes e cotoveleiras. Porque eles sabem que este mundo é mesmo muito mau, depositar-te-ão numa redoma, a ti e à esperança, e farão o possível e o impossível para que nunca tenhas de aprender a viver no mundo real e para que nunca chegues a saber ao que sabe o sangue.

Por minha conta, meu filho, serás muito amado. Como se fosse uma parte de mim. Porque o serás. Serás amado pelos teus genes e pelo orgulho que me darás ao espalhares pelo mundo o tanto que te quero ensinar. Serás tão amado quanto fores eu.

Só não penses que virás ao mundo para o fazeres teu, ou sequer para seres tu.