quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Caminho desactivado...


Caminho neste caminho desactivado…
De cada lado
solo pobre
eucaliptos queimados
mato
e muito lixo.
Postes de betão foleiro e antigo
que nada sustentam…

(Qual será o momento de inércia da sua secção
relativamente ao eixo paralelo ao…
Ai, ai… Que interessa isso?)

Ruído de automóveis por toda a parte
e prédios incompletos e já abandonados
no meu horizonte.
É este o meu pedaço de Portugal.
Tal e qual! Podem vir vê-lo.

Mas isto tem dono!...
Quem foi que fez isto assim?

O meu passo é lasso e o meu olhar lânguido e cansado.
Na mão, no bolso, a chave de casa
que não é minha.
E na cabeça, a fervilhar,
tudo o que me faz único.

A minha cabeça alberga
mais porquês do que todas as respostas que
alguma vez me poderão dar,
desde os momentos de inércia,
aos mais simples,
aqueles que embaraçam toda a gente:

- por que é que se diz não à guerra e se constroem fábricas de armamento?
- por que é que os pais não têm tempo para os filhos?
- por que é que há gente sem emprego?
- por que é que há chocolates “light”?
- por que é que se restringe a imigração?
- por que é que há imigração?
- por que é que ninguém quer saber das minhas perguntas?

Devia haver fábricas de tempo,
liberdade para partir ou ficar
e chocolates “heavy”!

E devia haver espaço para as minhas perguntas
e para as minhas respostas
e para mim.

Devia haver espaço para mim!

Este pedaço aqui ao lado, por exemplo.
Solo pobre, eucaliptos queimados, mato e lixo…
O que se faria disto?...

Far-se-ia o lugar de alguém!
Aquela rocha ali, abandonada,
passaria a estar coberta de memórias,
de risos e esfoladelas de miúdos,
do pelo das calças antigas dos velhotes.
Este pedaço aqui ao lado,
seria um sítio bom para deitar ao sol,
ou para cavar sulcos na terra
e pôr a água a correr por eles,
ou para dormir.
A terra ficaria mais preta,
e os amigos viriam no São João.

(Mas como poderia eu cavar a terra sem sachola?...)

E no entanto é isto!... A quem pertence isto?...

(As pessoas trabalham para poderem ter o que não produzem.
Nós, portugueses, somos especialistas nisso mesmo.)

No regresso encontro enfim os donos
deste pedaço de Portugal.
Os seus automóveis grandes e pesados
e as suas varandas
ostentam símbolos nacionais.
Esses são certamente pedaços de um pequeno Portugal
que eles muito prezam.
Mas, e o outro mesmo ali ao lado?...

Estou cansado.
Aquilo que me faz único,
as minhas ideias e o que sinto,
atiram permanentemente à cara de todos
tudo aquilo que ninguém quer saber.
Torno-me incómodo.
E não sou aceite.
Frustro-me e irrito-me com isso.
E todos os meus porquês se tornam mais agudos
como agulhas que se salientam
quando todo o meu eu se afunda
e me picam a pele por dentro.
E torno-me incómodo.
E inoportuno.
E indelicado.
E agressivo.
E bruto.

E noto, de repente, com imensa surpresa,
que o meu eu é diferente do que eu julgava!

E pergunto-me:
porquê?


Caminho sem saber porquê.
E penso:
tenho de ter calma.
Tenho de ser quem quero ser
e não quem sou agora.
Tenho de ser como o velho paciente,
benevolente para com a natureza humana,
benevolente para com este deus
e este mundo
e esta gente.
Tenho de ser… tenho de ser…

Eu sei… eu sei os pormenores de todos os tiros nos pés
que até com algum esforço todos insistem em dar.
Eu sei, porque vi, como as pessoas são más para elas próprias,
como as pessoas não vêem,
como as pessoas não querem ver.
Eu sei o quanto quero mostrar-lhes um outro rumo,
uma outra forma.
Como quero trabalhar ao seu lado para sermos todos mais felizes.

Mas não posso.

Os meus porquês,
como agulhas,
notam-se já na minha pele
e maltratam aqueles a quem a encosto,
aqueles de quem gosto
e a quem quero ajudar.

Não posso mostrar-lhes o que não querem ver.
Não posso discutir o que cá dentro penso.
Não posso afrontar esta realidade que é a deles,
que eles ajudam a construir
e onde se sentem bem.

Tenho de ser diferente.

Caminho com vontade de chegar a casa,
de sentar e escrever,
de mostrar ao mundo que compreendo,
de pedir desculpa aos que magoei.

E agora que o faço
já não sei…

AWF, Valongo, 18 de Junho de 2006

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Canta...


(Poema retirado daqui. Obrigado Maria)

Canta

Atreve-te a julgar. Julga os outros julgando-te a ti mesmo.
A natureza das coisas é a tua natureza. Respira-te, despe-te,
faz amor com as tuas convicções, não te limites a sorrir
quando não sabes mais o que dizer. Os teus dentes
estão lavados, as tuas mãos são amáveis, mas falta-te
decisão nos passos e firmeza nos gestos.
Procura-te. Tenta encontrar-te antes que te agarre a
voracidade do tempo.
Faz as coisas com paixão. Uma paixão irrequieta,
que não te dê descanso
e te faça doer a respiração. Aspira o ar, bebe-o com força, é
teu, nem um cêntimo pagarás por ele.
Quanto deves é à vida, o que deves é a ti mesmo. Canta.
Canta a água e a montanha e o pescoço do rio,
e o beijo que deste e o beijo que darás, canta
o trabalho doce da abelha e a paciência com que crescem
as árvores,
canta cada momento que partilhas com amigos, e cada amigo
como um astro que desponta no firmamento breve do teu corpo.
E canta o amor. E canta tudo o que tiveres razão para cantar.
E o que não souberes e o que não entenderes, canta.
Não fujas da alegria. A própria dor ajuda-te a medir
a felicidade. Carrega nos teus ombros os séculos passados e
os séculos vindouros,
muito do pó que sacodes já foi vida,
talvez beleza, orgulho, pedaços de prazer.
A estrela que contemplas talvez já não exista, quem sabe,
o que te ajudou a ser vida de quantas vidas precisou. Canta!
Se sentires medo, canta. Mas se em ti não couber a alegria,
não pares de cantar.
Canta. Canta. Canta. Canta. Canta. Constrói o teu amor,
vive o teu amor,
ama o teu amor. De tudo o que as pessoas querem, o que
mais querem é o amor.
Sem ele, nada nunca foi igual, nada é igual, nada será igual
alguma vez.
Canta. Enquanto esperas, canta.
Canta quando não quiseres esperar.
Canta se não encontrares mais esperança. E canta quando a
esperança te encontrar.
Canta porque te apetece cantar e porque gostas de cantar e
porque sentes que é preciso cantar.
E canta quando já não for preciso. Canta porque és livre.
E canta se te falta a liberdade.

Joaquim Pessoa, in "Vou-me embora de mim"