segunda-feira, 31 de dezembro de 2018

Land of confusion...

Ainda acerca do Natal... e não só... esta música já velhinha que andou na minha cabeça:



E aqui fica a letra:

I must've dreamed a thousand dreams
Been haunted by a million screams
But i can hear the marching feet
They're moving into the street.

Now did you read the news today?
They say the danger's gone away
But I can see the fire's still alight
There burning into the night.

There's too many men
Too many people
Making too many problems
And not much love to go round

Can't you see
This is a land of confusion.

This is the world we live in
And these are the hands we're given
Use them and let's start trying
To make it a place worth living in.

Ooh superman where are you now?
When everything's gone wrong somehow
The men of steel, the men of power
Are losing control by the hour.

This is the time
This is the place
So we look for the future
But there's not much love to go round

Tell me why, this is a land of confusion.

This is the world we live in
And these are the hands we're given
Use them and let's start trying
To make it a place worth living in.

I remember long ago -
Ooh when the sun was shining
Yes and the stars were bright
All through the night
And the sound of your laughter
As i held you tight
So long ago -

I won't be coming home tonight
My generation will put it right
We're not just making promises
That we know, we'll never keep.

Too many men
There's too many people
Making too many problems
And not much love to go round

Can't you see
This is a land of confusion.

Now this is the world we live in
And these are the hands we're given
Use them and let's start trying
To make it a place worth fighting for.

This is the world we live in
And these are the names we're given
Stand up and let's start showing
Just where our lives are going to.

E ainda outra versão:

domingo, 30 de dezembro de 2018

O equilíbrio...

Era uma vez uma família. Havia uma criança, um idoso e três adultos em idade activa, dos quais um trabalhava muito pouco, outro trabalhava alguma coisa e o terceiro trabalhava muito. O que trabalhava muito pouco era, curiosamente, o que mais gastava, mesmo em artigos de luxo, se é que nos podemos dar ao luxo de classificar alguma coisa como artigos de luxo, uma vez que estamos a falar das necessidades das pessoas, não é verdade?

Apesar disso, tudo corria razoavelmente bem, até que, sabe-se lá porquê, uma maioria de elementos decidiu contratar um gestor para gerir o orçamento familiar. Em meia dúzia de anos o gestor remodelou o apartamento, comprou um televisor xpto e uma data de outras coisas, e a família adorou. Só depois descobriram que o gestor tinha endividado a família junto de um banco onde trabalhava um amigo, para comprar coisas nas lojas de outros amigos.

Quando a família descobriu isso, despediu o gestor e contratou outro. O novo gestor prometeu que iria equilibrar as contas da família. Para isso, e uma vez que a família estava fortemente endividada, incentivou os que trabalhavam a trabalhar ainda mais, garantindo-lhes que era importantíssimo gerarem mais riqueza. O que trabalhava muito pouco continuou a trabalhar muito pouco. Curiosamente, o gestor continuou a permitir que ele consumisse artigos de luxo. Mais até do que no passado! Entretanto, para equilibrar as contas, o gestor passou a "racionalizar" recursos: os duches de água quente passaram a ser tomados em conjunto, foram vendidos todos os computadores e televisores excepto um de cada e criou-se um horário para uma justa utilização por todos (o que trabalhava muito pouco tinha o seu tablet...), também se venderam os automóveis e os trajectos passaram a ser desenhados por um programa de computador que optimiza percursos... Além disso, o gestor sentiu-se na necessidade de cortar os gastos na alimentação, passando a dieta a ser principalmente arroz e batata, na manutenção da casa, tapando-se os remendos com o que houver à mão, na electricidade, aquecendo-se todos no inverno à custa de calor humano e camisolas.

Finalmente, na mesma lógica de poupança de recursos, racionalização, aumento da eficiência, protecção ambiental e tudo mais, aliada à responsabilidade de quem cumpre os seus compromissos, conseguiu que a família se mudasse para um T0 de esferovite. Foi então que o gestor proclamou, orgulhoso, que tinha conseguido equilibrar o orçamento familiar! E toda a família aplaudiu!

Entretanto, o antigo gestor, o banqueiro e os fornecedores dos penduricalhos continuam a desfrutar dos rendimentos provenientes dos juros dos empréstimos que a família continua a pagar... mas a família está feliz, porque tem o orçamento equilibrado.

segunda-feira, 24 de dezembro de 2018

Mensagem de Natal 2018...





O que é uma mensagem de Natal?... Para que serve?...

Um desejo de feliz Natal, sem mais, que mensagem contém? Para que serve?... Do meu ponto de vista contém e serve para bem pouco. Uma mensagem como "sê feliz" dirigida a alguém não significa em si mesma praticamente nada. Até um inimigo nos pode enviar, com ou sem ironia, semelhante mensagem. E ela não nos diz nada acerca do modo como é suposto sermos felizes, ou da importância que isso tem ou não tem para o emissor da mensagem... Para nós, essa mensagem não nos serve, porque não nos orienta, não nos ensina, não nos acrescenta nada de novo que possa ser útil no nosso quotidiano.

Um "feliz Natal" maquinal, ditado pela agenda, tal como um "feliz aniversário", pode ser apenas uma resposta automática àquilo que esperam de nós... uma maneira fácil de nos libertarmos de alguma responsabilidade que não queremos assumir e de caminharmos para fora de cena com o nosso bom nome intacto.

A minha mensagem de Natal será bem diferente de um "feliz Natal". No entanto, também não estou certo que tenha grande utilidade. Para que possa sequer ter a intenção de proferir uma mensagem no Natal é necessário que possua um juízo crítico interior que separe aos meus olhos o que é preferível do que é preterível, é necessário que tenha uma vontade interior que o mundo e todos nós caminhemos mais de uma forma ou numa direcção do que noutra.

Uma mensagem de Natal será, portanto, numa versão mais branda, a manifestação dessa vontade. E, para que seja útil, será também minimamente instrumental, no sentido de que virá carregada de alguma coisa que possa servir a quem a lê. Mas... servir para quê?...

Tudo o mais que eu possa dizer para além de um vazio e inócuo "feliz Natal" será sempre uma ingerência na esfera privada dos outros que, advogam alguns, e cada vez mais, não me diz respeito. Bom... é falso que a esfera privada dos outros não me diga respeito. É falso que a esfera privada de cada um diga respeito apenas a si próprio e não diga respeito a todo o mundo. E isso é facilmente demonstrável. Mas para lá disso, a verdade é que alguma coisa que eu possa dizer acerca das qualidades da felicidade que se deseja no Natal, acerca do modo preferível de a alcançar, acerca do que nos impede de a alcançar, etc. , etc.... qualquer coisa que eu possa dizer acerca disso, será uma ingerência na vida dos outros.

Ninguém me perguntou ou pediu nada, e portanto mandam as regras da boa educação (quais?) que eu deseje um vazio "feliz Natal" a todos e prossiga com a minha vidinha.

Mas eu não professo essa escola da boa educação. A minha boa educação diz-me que nós vivemos em comunidade, quer queiramos ou sejamos capazes de o discernir ou não, e que os assuntos da comunidade devem ser abordados pela comunidade. A minha boa educação diz-me que todos nos devemos interessar pelo bem-estar de todos. E tal como uma boa mãe (ou pai) não pondera sequer que a educação do filho (ou filha) seja feita sem "ingerências na sua esfera privada", a minha boa educação impõe-me que ultrapasse a inocência e até às vezes a hipocrisia das mensagens de Natal para pelo menos deixar algo mais do que simples vazio... Talvez, como diziam outras pessoas, seja mesmo necessário desassossegar.

Há um disco que eu ouvia na minha infância, e que ainda hoje volta e meia ouço, com músicas de Natal. Nesse disco, chamado "os operários do Natal", a mensagem de Natal é uma ode ao trabalho que as pessoas têm para colocar de pé essa celebração, considerando esse trabalho como uma entrega, uma dádiva de si para com os outros. A mensagem de Natal é que a coisa mais valiosa é a amizade e o amor que as pessoas podem ter umas pelas outras. E que o Natal é o renascimento da esperança na construção de um mundo cheio de amor e amizade. O disco abre com o seguinte texto:

"Natal quer dizer nascimento, nascer.
É tradição chamar-se Natal ao dia 25 de Dezembro, porque nesse dia nasceu Jesus Cristo.
Para uns é o filho de Deus. Para outros é apenas um homem.
Mas de qualquer maneira, um homem bom.
Por isso, quando nasce um menino, é sempre Natal!
Quando tu nasceste também foi Natal, e foram os teus pais que o fizeram.
Tu és o fruto do amor do teu pai pela tua mãe.
Foi ela que durante meses e meses carregou contigo na barriga.
Depois, vieram as dores que teve para que tu nascesses.
Os teus pais foram os primeiros operários do teu Natal."

No refrão da primeira música canta-se:
"Hoje é Natal
e amanhã
vai ser Natal outra vez.
Porque afinal
quando é Natal
a gente nasce outra vez."

Esta é, portanto, uma mensagem que claramente apela ao renascimento. Quem festeja o solstício de Inverno, que ocorre todos os anos próximo da data do Natal, festeja no fundo a mesma coisa: o dia mais curto do ano, a partir do qual os dias passam a crescer, a partir do qual um novo ciclo de vida renasce, uma nova primavera, uma nova oportunidade. A igreja católica celebra o nascimento de Jesus Cristo, e isso é também uma celebração do renascimento da fé, da esperança num mundo mais cheio de amor.

A mensagem é, portanto, razoavelmente uníssona.

Mas... porque é que a mensagem é necessária?... Obviamente esta mensagem é necessária, tal como a vinda de Deus à Terra, porque de algum modo os seres humanos se deixaram emaranhar nos cabelos da vida e perderam o rumo, porque alguns de nós perderam a esperança, porque, efectivamente, o mundo está muito longe de ser dominado pela amizade.

Não sou católico. No entanto não deixo de ser capaz, quer naquilo que me chega da igreja católica, quer no resto, de distinguir o que considero ser bom ou mau. Talvez ao contrário de muitos católicos que, quer na sua própria religião, quer em todo o mundo, fazem questão de não distinguir nada. E, se assim for, fazem mal.

Portanto, vou socorrer-me das próprias palavras do Papa Francisco, na sua audiência geral de 19 de Dezembro de 2018 (https://www.youtube.com/watch?v=yfoBkrJLizQ&feature=youtu.be, a partir do minuto 15), e do Bispo de Angra João Lavrador, na sua mensagem de Natal e no programa radiofónico "Igreja Açores" transmitido pela Antena 1 Açores no dia 16 de Dezembro.

Diz-nos o Papa Francisco que o Natal é a humildade sobre a arrogância, a simplicidade sobre a abundância, o silêncio sobre o barulho. O Natal é preferir a voz silenciosa de Deus aos rumores do consumismo.

Numa meta-análise, e logo à partida, eu tenho de acrescentar que o Papa está a apontar o dedo, está a acusar, nomeadamente está a acusar-nos a todos, em geral, de arrogância, de abundância, de barulho, de consumismo. E, digo eu, faz ele muito bem. Os exemplos da humildade, da simplicidade e do silêncio sempre existiram... e nunca foram suficientes.

O Papa convida-nos a estar em silêncio diante do presépio.

De entre todas as coisas que se podem fazer no Natal, o Papa convida-nos a estar em silêncio diante do presépio.

Acrescenta:
Se o Natal for somente uma bela festa tradicional onde nós estamos no centro e não Ele, será uma ocasião perdida.

E, no entanto, no Natal faz-se geralmente o oposto daquilo que Jesus quer. E culpamos a nossa febre nas coisas que enchem os nosso dias de velocidade...

Francisco diz-nos que será Natal se dermos espaço ao silêncio, se nos entregarmos aos ideais de um mundo melhor, se estivermos próximos de quem está sozinho, se sairmos do nosso conforto para nos entregarmos com dedicação, se encontrarmos a luz mesmo na maior escuridão.

Alternativamente, não será Natal se procurarmos as luzes desse mundo, se nos enchermos de presentes, almoços e jantares, mas não ajudarmos pelo menos um pobre que se assemelhe a Deus, porque no Natal, Deus veio pobre.

A verdadeira surpresa do Natal não devia ser descobrir o objecto que está dentro de uma caixa, mas descobrir este outro caminho. E acrescenta o Papa que esta poderá parecer uma surpresa incómoda, mas é aquilo que agrada a Deus. Ou, do ponto de vista de um não crente, é aquilo que é necessário para podermos construir um mundo melhor.

O discurso do Bispo João Lavrador pode, se quisermos, ser apelidado de político e de radical. Novamente, eu acrescento que ainda bem!

Diz-nos o Bispo que a quadra natalícia apela naturalmente à nossa família, à nossa terra de origem, às nossas relações de amizade, mas que isso não é suficiente. Para além disso é necessária uma generosidade que integre todas as pessoas na nossa sociedade.

E eu gostava de realçar este ponto. Porque um apelo genérico ao amor é muito pouco. É perfeitamente normal, e expectável, que um pai (ou mãe) ame a sua filha (ou filho). Mas isso não é suficiente. Esse é, no meu próprio linguajar, um tipo de amor egoísta, quase um amor próprio, um amor por nós próprios, por aquilo que nos pertence ou nos é chegado. Isso é um amor fácil. E não é suficiente.

João Lavrador refere um sentido de esperança, que deve existir sempre, de que mesmo no seio da nossa sociedade mais carcomida, surjam rebentos de renovação, rebentos que um dia poderão frutificar num mundo melhor. Diz-nos que é necessário inclusivamente um sentido estético para que sejamos capazes de identificar esses rebentos de esperança.

E, conforme já antes referi, se é necessário referir a esperança, é porque existem situações condenáveis que devemos combater. João Lavrador refere de imediato a pobreza e pergunta: quem está a fugir à responsabilidade? E imediatamente avança duas respostas possíveis: a própria igreja e os governantes.

Pergunta: como é possível andarmos há dois séculos (desde a revolução francesa, suponho) a apregoar a fraternidade, como é possível a própria igreja andar há dois milénios a apregoar a fraternidade, e continuarmos com a vergonha da pobreza que temos hoje em dia?

João Lavrador não nos dá a resposta fácil, nomeadamente a que refere a ajuda imediata às necessidades mais básicas dos pobres. Antes começa por referir que é necessário um empenhamento de todos, e avança para aquilo que é essencial: é o próprio que está numa situação de pobreza que tem de se sentir capaz de cuidar de si. E se assim não é, é porque lhe faltam os meios, os recursos, a orientação, é porque o seu caminho está vedado, porque nós, através da nossa ganância, lhe fechámos o caminho.

Precisamos de comunidades atentas, orientadoras, que se preocupem verdadeiramente (e João Lavrador acentua este "verdadeiramente"). A responsabilidade das comunidades é em abrir caminhos, prover recursos, orientar, para que cada um seja capaz de alcançar uma vida melhor por si próprio.

Refere: "o assistencialismo às vezes faz com que as pessoas descansem". Se uma pessoa não tem horizontes, isto é, se não vislumbra qualquer possibilidade de ser autónomo, então naturalmente o rendimento mínimo ou um cabaz de produtos alimentares é tudo o que essa pessoa deseja.

João Lavrador fala na solidariedade, fala no acesso à habitação, no acesso à saúde. Também fala na educação, mas, e este é um ponto importante, não refere a formação dos jovens para o mercado de trabalho. Antes refere a formação de todos, novos e velhos, para a humanidade. A educação enquanto veículo capaz de nos transportar para um patamar mais alto de humanidade.

Também refere a justiça. Afirma que a nossa sociedade é implacável, uma sociedade que condena, mas que não dá às pessoas a possibilidade de se redimirem, de se reabilitarem, de se reintegrarem.

Eu acrescentaria que além disso é necessário permitir que as pessoas construam realidade diferentes, é necessário permitir que as pessoas mudem a realidade que temos, e não apenas que se integrem na realidade que outros construíram para elas. Mas em vez disso há muitas pessoas com visões maniqueístas da sociedade, identificando pessoas boas e pessoas más, e catalogando-as sem possibilidade de recurso da sua condenação sumária.

O progresso, termo supostamente utilizado por João Lavrador para se referir ao aumento da capacidade económica e tecnológica das sociedades, não é acompanhado por valores que salvaguardem os direitos das pessoas e dos povos. É no domínio económico de umas nações sobre as outras que vamos encontrar as fontes da guerra.

João Lavrador é radical, no sentido de que nos incita a procurar a raiz dos problemas. Afirma que não basta ficar à margem dos problemas a assistir e a encontrar bodes expiatórios. Se há indignação, é necessário descobrir a sua verdadeira causa e procurar saber como intervir aí, na raiz. A resposta não pode ser criar muros... É necessário indagar como é que estamos a ser solidários uns com os outros.

Insiste que não podemos excluir as pessoas, temos de as integrar, todas elas. E refere o caso da emigração, afirmando que é um direito humano. Que temos de encontrar modos de as pessoas poderem emigrar de forma condigna, mesmo que esse fenómeno nunca possa ser muito digno, uma vez que é a falta de possibilidades nas comunidades de origem que motiva a emigração.

Estes são desafios, diz João Lavrador, para todos nós. Porque nós é que dirigimos a política. Uma boa política é protagonizada por todos nós, todos nós somos intervenientes, pelo voto, pela reivindicação justa, pela participação activa e quotidiana.

Eu, que não sou católico, faço minhas estas palavras de João Lavrador e do Papa Francisco. Que bom será se o Natal puder ser uma oportunidade para olharmos para toda a sociedade à nossa volta, e para nós próprios, com outros olhos, com esperanças renovadas na possibilidade de construção de um mundo melhor. E se soubermos que isso não pode ser deixado aos outros, sejam eles quem forem, isso é da nossa responsabilidade.

Que bom será se no Natal pudermos sair mais à rua, se nos fecharmos menos no nosso lar, na nossa casa, na nossa família, na nossa comida, nas nossas prendas... e se em vez disso pudermos sair mais à rua, para o espaço público, onde os encontros com as outras pessoas são possíveis. Se pudermos olhar para além dos horizontes do nosso pequeno mundo e virmos um mundo mais vasto, e as relações que nele se estabelecem.

Talvez possamos entender, por exemplo, que os excessos de comida, de dispêndios de energia eléctrica, de papel e plástico de embrulhos, de prendas, de viagens de avião e de carro... isso tudo... se pudermos entender que isso tudo não é muito bom para a nossa casa comum. Se pudermos entender que a nossa felicidade não depende verdadeiramente disso, mas sim de tantas outras coisas difíceis de colocar numa caixa: o sermos solidários, o sermos justos, o amarmos e sermos amados.

Esta é a minha mensagem de Natal, para todos os dias em que houver vontade de renascer.

sexta-feira, 21 de dezembro de 2018

Ainda sobre as notícias falsas...

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Frustra-me isto que se passa agora sobre as notícias falsas. Em primeiro lugar, surpreende-me a ingenuidade daqueles a quem aparentemente nunca ocorreu que as notícias que lhes chegam possam ser falsas. De repente mostram-se chocados... como se isto fosse uma realidade de agora... como se notícias falsas não fossem uma tradição milenar. Surpreende-me a ingenuidade de quem lê notícias acreditando que pode acreditar, que não necessita de duvidar, de indagar, de investigar... porque delegou isso nalguma outra pessoa ou instituição que considera idónea, com base sabe-se lá em quê. E se me surpreende... é porque certamente eu próprio também fui ingénuo, acreditando que as pessoas tinham presente que tudo o que é noticiado deve ser triado pelo nosso juízo crítico bem alerta. Que estupidez minha acreditar nisso!... Pois se as pessoas acreditam no que lêem nos livros apenas porque está escrito nos livros!... 

Surpreende-me esta ingenuidade de se acreditar que as notícias ou são integralmente falsas ou são integralmente verdadeiras, como se a realidade não estivesse muitas das vezes algures pelo meio. Como na notícia de outro dia, que em primeira mão indicava 4 mortos, logo a seguir 3 e finalmente apenas 2 mortos... embora este seja apenas, e claramente, um caso anedótico. 

Surpreende-me aquilo que me parece ser uma crença na malevolência de quem produz notícias falsas, sem reparar que aqui, como ali nas outras notícias todas, a motivação é a mesma e chama-se dinheiro. 

Mas, em segundo lugar, e mais importante do que isto, entristece-me aquilo que me parece continuar a ser uma cegueira em relação ao modo como os canais mediáticos produzem e reproduzem modos de pensar (ou não pensar) e consequentemente modos de agir (ou não agir) e sentir (ou não sentir).

Parece-me bem que as pessoas se indignem e insurjam contra a produção deliberada de notícias falsas, independentemente das minhas surpresas todas que já mencionei. Mas o que deveras me frustra é perceber o modo como as pessoas aparentemente acreditam (conscientemente?) que tudo está bem, desde que não se produzam notícias deliberadamente falsas. 

Tudo estará bem, por exemplo, se metade (em peso) do jornal impresso for constituído por opiniões. Apesar de opiniões não serem factos nem notícias. Tudo estará bem se cada notícia for seguida de uma opinião ou até de um debate de opiniões. Tudo estará bem se a opinião for incorporada na própria notícia. Tudo estará bem se o público em geral for incorporando no seu pensamento (conscientemente?) a equivalência entre factos e opiniões... Dois mais dois é igual a quatro, afirmo. Isso é a tua opinião, alguém contesta. 

Tudo estará bem se se continuar a publicar mentiras por lapso, por negligência, por omissão de conteúdo relevante... desde que a seguir às garrafais parangonas se publiquem também minúsculos desmentidos. 

Tudo estará bem se todos os jornais, todas as rádios e todas as televisões forem beber as suas notícias às mesmas fontes. Tudo estará bem se as notícias forem todas transmitidas com claros enviesamentos para determinados pontos de vista sobre cada assunto. Tudo estará bem se uma série de assuntos relevantes para as vidas das pessoas continuarem a ser omitidos ou secundarizados pela notícia de que o clube de futebol de cima venceu ao clube de futebol de baixo. Tudo estará bem se a primeira metade do (tele)jornal é constituída por alinhamentos de notícias delineados de acordo com interesses que existem mas que não são expressos. Tudo estará bem se continuarmos a divulgar notícias verdadeiras dos casos mais sensacionais do homem que mordeu o cão. 

Quando um presidente de uma associação de empresários fala para os microfones e as câmaras, regozijando-se pela atribuição de verbas do Orçamento de Estado, explicando que isso terá um impacto muito bom na economia e na criação de postos de trabalho, o espectador é incitado a acreditar que isso é bom para todos e é bom para si também, ainda bem que o governo está a canalizar verbas para aquilo que verdadeiramente interessa, oxalá seja desta que o sobrinho João consegue um trabalho decente, com descontos para a segurança social... O espectador comum não é incitado a reflectir sobre a origem das verbas que compõem as receitas do Orçamento de Estado, não tem presente que essas mesmas empresas têm benefícios fiscais, enquanto os trabalhadores têm agravamentos fiscais em todo o tipo de impostos que não apenas no IRS, não é incitado a reflectir sobre a qualidade dos trabalhos que irão ser gerados, e muito menos sobre a apropriação do valor gerado por cada hora trabalhada nesses novos postos, não é de modo algum levado a entender que o que é bom para a economia não é necessariamente bom para todos, e que operações deste tipo resultam de conluios entre o poder político e o poder económico, e são efectivamente equivalentes a transferências de dinheiro de quem tem menos para quem tem mais. O tempo de antena foi, como sempre, para o senhor engravatado, nada é explicado, tudo segue ao sabor da corrente do pensamento dominante, e toda a gente acredita que isto é que é isenção e sentido de dever dos jornalistas, a bem do esclarecimento da população... 

Tudo estará bem se os jornalistas continuarem a ser, como sempre foram, meros trabalhadores, sujeitos à lógica concorrencial, dentro das instituições onde trabalham e fora delas, pressionados para a conquista de audiências. Tudo estará bem se as notícias continuarem a ser aquilo que são actualmente: um imenso espectáculo de diversões (acerca disso, uma sugestão de leitura: "how to watch tv news"). 

E as pessoas, aparentemente, continuarão a acreditar que é inócuo levarem com a notícia A ou a notícia B, desde que nenhuma delas seja uma "notícia falsa". 

Eu, muito ao contrário deste modo de pensar, sinto que esta vaga de "notícias falsas" pode já ter tido a grande vantagem de fazer com que algumas pessoas abram o olho... Mas sinceramente acho que já não sou tão ingénuo.

quarta-feira, 19 de dezembro de 2018

Que tempos são estes?...

Dois poemas para sentir muito e pensar muito, que me foram trazidos pela Antena2 nesta rubrica "o som que os versos fazem ao abrir":
https://www.rtp.pt/play/p3076/o-som-que-os-versos-fazem-ao-abrir



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Que tempos são estes - 1991

Há um lugar entre duas filas de árvores
onde a erva cresce monte acima
e a velha estrada revolucionária se quebra em sombras
perto de uma casa-abrigo abandonada pelos perseguidos
que desapareceram nessas sombras.

Fui até lá
apanhar cogumelos na borda do terror, mas não te enganes
isto não é um poema russo,
nem é um lugar qualquer, é aqui
o nosso país cada vez mais perto da sua verdade e do seu terror
as suas formas próprias de fazer pessoas desaparecer.

Não te direi onde é este lugar,
a malha escura dos bosques
abrigando uma linha de luz despercebida
encruzilhadas percorridas por fantasmas, o paraíso dos musgos;
já sei quem o vai querer vender, comprar, fazer desaparecer.

Não te digo onde fica, então
porque te digo eu seja o que for?
Porque tu ainda escutas,
porque em tempos como estes
ter-te aí a escutar, é necessário
falar sobre as árvores.


Adrienne Rich

(trad. Ana Luisa Amaral)


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Aos que virão a nascer - 1939


1

É verdade, vivo em tempo de trevas!
É insensata toda a palavra ingénua. Uma testa lisa
revela insensibilidade. Os que riem,
riem porque ainda não receberam
a terrível notícia.

Que tempos são estes, em que
uma conversa sobre árvores é quase um crime,
porque traz em si um silêncio sobre tanta monstruosidade?
Aquele ali, tranquilo a atravessar a rua,
não estará já disponível para os amigos
em apuros?

É verdade: ainda ganho o meu sustento.
Mas acreditem: é puro acaso. Nada
do que eu faço me dá o direito de comer bem.
Por acaso fui poupado (quando a sorte me faltar, estou perdido.)
Dizem-me: Come e bebe! Agradece por teres o que tens!
Mas como posso eu comer e beber quando
roubo ao faminto o que como e
o meu copo de água falta a quem morre de sede?
E apesar disso eu como e bebo.

Também eu gostava de ter sabedoria.
Nos velhos livros está escrito o que é ser sábio:
retirar-se das querelas do mundo e passar
este breve tempo sem medo.
E também viver sem violência,
pagar o mal com o bem,
não realizar os desejos, mas esquecê-los.
Ser sábio é isto.
E eu nada sei fazer!
É verdade, vivo em tempo de trevas!

2

Cheguei às cidades nos tempos da desordem
quando aí grassava a fome.
Vim viver com os homens nos tempos da revolta
e com eles me revoltei.
E assim passou o tempo
que na terra me foi dado.

Comi o meu pão entre as batalhas
deitei-me a dormir entre os assassinos,
dei-me ao amor sem cuidados
e olhei a natureza sem paciência.
E assim passou o tempo
que na terra me foi dado.

No meu tempo as ruas iam dar ao pântano.
A língua traiu-me ao carniceiro.
Pouco podia fazer. Mas os senhores do mundo
sem mim estavam mais seguros, esperava eu.
E assim passou o tempo
Que na terra me foi dado.

As forças eram poucas. A meta
estava muito longe,
claramente visível, mas nem por isso
ao meu alcance.
E assim passou o tempo
Que na terra me foi dado.

3

Vós, que surgireis do dilúvio
em que nós nos afundámos,
quando falardes das nossas fraquezas
lembrai-vos
também do tempo de trevas
a que escapastes.

Pois nós, mudando mais vezes de país que de sapatos, atravessámos
as guerras de classes, desesperados
ao ver só injustiça e não revolta.

E afinal sabemos:
também o ódio contra a baixeza
desfigura as feições.
Também a cólera contra a injustiça
torna a voz rouca. Ah, nós
que queríamos desbravar o terreno para a amabilidade,
não soubemos afinal ser amáveis.

Mas vós, quando chegar a hora
de o homem ajudar o homem,
lembrai-vos de nós com indulgência.

Bertolt Brecht

(trad. João Barreto)