segunda-feira, 24 de dezembro de 2018
Mensagem de Natal 2018...
O que é uma mensagem de Natal?... Para que serve?...
Um desejo de feliz Natal, sem mais, que mensagem contém? Para que serve?... Do meu ponto de vista contém e serve para bem pouco. Uma mensagem como "sê feliz" dirigida a alguém não significa em si mesma praticamente nada. Até um inimigo nos pode enviar, com ou sem ironia, semelhante mensagem. E ela não nos diz nada acerca do modo como é suposto sermos felizes, ou da importância que isso tem ou não tem para o emissor da mensagem... Para nós, essa mensagem não nos serve, porque não nos orienta, não nos ensina, não nos acrescenta nada de novo que possa ser útil no nosso quotidiano.
Um "feliz Natal" maquinal, ditado pela agenda, tal como um "feliz aniversário", pode ser apenas uma resposta automática àquilo que esperam de nós... uma maneira fácil de nos libertarmos de alguma responsabilidade que não queremos assumir e de caminharmos para fora de cena com o nosso bom nome intacto.
A minha mensagem de Natal será bem diferente de um "feliz Natal". No entanto, também não estou certo que tenha grande utilidade. Para que possa sequer ter a intenção de proferir uma mensagem no Natal é necessário que possua um juízo crítico interior que separe aos meus olhos o que é preferível do que é preterível, é necessário que tenha uma vontade interior que o mundo e todos nós caminhemos mais de uma forma ou numa direcção do que noutra.
Uma mensagem de Natal será, portanto, numa versão mais branda, a manifestação dessa vontade. E, para que seja útil, será também minimamente instrumental, no sentido de que virá carregada de alguma coisa que possa servir a quem a lê. Mas... servir para quê?...
Tudo o mais que eu possa dizer para além de um vazio e inócuo "feliz Natal" será sempre uma ingerência na esfera privada dos outros que, advogam alguns, e cada vez mais, não me diz respeito. Bom... é falso que a esfera privada dos outros não me diga respeito. É falso que a esfera privada de cada um diga respeito apenas a si próprio e não diga respeito a todo o mundo. E isso é facilmente demonstrável. Mas para lá disso, a verdade é que alguma coisa que eu possa dizer acerca das qualidades da felicidade que se deseja no Natal, acerca do modo preferível de a alcançar, acerca do que nos impede de a alcançar, etc. , etc.... qualquer coisa que eu possa dizer acerca disso, será uma ingerência na vida dos outros.
Ninguém me perguntou ou pediu nada, e portanto mandam as regras da boa educação (quais?) que eu deseje um vazio "feliz Natal" a todos e prossiga com a minha vidinha.
Mas eu não professo essa escola da boa educação. A minha boa educação diz-me que nós vivemos em comunidade, quer queiramos ou sejamos capazes de o discernir ou não, e que os assuntos da comunidade devem ser abordados pela comunidade. A minha boa educação diz-me que todos nos devemos interessar pelo bem-estar de todos. E tal como uma boa mãe (ou pai) não pondera sequer que a educação do filho (ou filha) seja feita sem "ingerências na sua esfera privada", a minha boa educação impõe-me que ultrapasse a inocência e até às vezes a hipocrisia das mensagens de Natal para pelo menos deixar algo mais do que simples vazio... Talvez, como diziam outras pessoas, seja mesmo necessário desassossegar.
Há um disco que eu ouvia na minha infância, e que ainda hoje volta e meia ouço, com músicas de Natal. Nesse disco, chamado "os operários do Natal", a mensagem de Natal é uma ode ao trabalho que as pessoas têm para colocar de pé essa celebração, considerando esse trabalho como uma entrega, uma dádiva de si para com os outros. A mensagem de Natal é que a coisa mais valiosa é a amizade e o amor que as pessoas podem ter umas pelas outras. E que o Natal é o renascimento da esperança na construção de um mundo cheio de amor e amizade. O disco abre com o seguinte texto:
"Natal quer dizer nascimento, nascer.
É tradição chamar-se Natal ao dia 25 de Dezembro, porque nesse dia nasceu Jesus Cristo.
Para uns é o filho de Deus. Para outros é apenas um homem.
Mas de qualquer maneira, um homem bom.
Por isso, quando nasce um menino, é sempre Natal!
Quando tu nasceste também foi Natal, e foram os teus pais que o fizeram.
Tu és o fruto do amor do teu pai pela tua mãe.
Foi ela que durante meses e meses carregou contigo na barriga.
Depois, vieram as dores que teve para que tu nascesses.
Os teus pais foram os primeiros operários do teu Natal."
No refrão da primeira música canta-se:
"Hoje é Natal
e amanhã
vai ser Natal outra vez.
Porque afinal
quando é Natal
a gente nasce outra vez."
Esta é, portanto, uma mensagem que claramente apela ao renascimento. Quem festeja o solstício de Inverno, que ocorre todos os anos próximo da data do Natal, festeja no fundo a mesma coisa: o dia mais curto do ano, a partir do qual os dias passam a crescer, a partir do qual um novo ciclo de vida renasce, uma nova primavera, uma nova oportunidade. A igreja católica celebra o nascimento de Jesus Cristo, e isso é também uma celebração do renascimento da fé, da esperança num mundo mais cheio de amor.
A mensagem é, portanto, razoavelmente uníssona.
Mas... porque é que a mensagem é necessária?... Obviamente esta mensagem é necessária, tal como a vinda de Deus à Terra, porque de algum modo os seres humanos se deixaram emaranhar nos cabelos da vida e perderam o rumo, porque alguns de nós perderam a esperança, porque, efectivamente, o mundo está muito longe de ser dominado pela amizade.
Não sou católico. No entanto não deixo de ser capaz, quer naquilo que me chega da igreja católica, quer no resto, de distinguir o que considero ser bom ou mau. Talvez ao contrário de muitos católicos que, quer na sua própria religião, quer em todo o mundo, fazem questão de não distinguir nada. E, se assim for, fazem mal.
Portanto, vou socorrer-me das próprias palavras do Papa Francisco, na sua audiência geral de 19 de Dezembro de 2018 (https://www.youtube.com/watch?v=yfoBkrJLizQ&feature=youtu.be, a partir do minuto 15), e do Bispo de Angra João Lavrador, na sua mensagem de Natal e no programa radiofónico "Igreja Açores" transmitido pela Antena 1 Açores no dia 16 de Dezembro.
Diz-nos o Papa Francisco que o Natal é a humildade sobre a arrogância, a simplicidade sobre a abundância, o silêncio sobre o barulho. O Natal é preferir a voz silenciosa de Deus aos rumores do consumismo.
Numa meta-análise, e logo à partida, eu tenho de acrescentar que o Papa está a apontar o dedo, está a acusar, nomeadamente está a acusar-nos a todos, em geral, de arrogância, de abundância, de barulho, de consumismo. E, digo eu, faz ele muito bem. Os exemplos da humildade, da simplicidade e do silêncio sempre existiram... e nunca foram suficientes.
O Papa convida-nos a estar em silêncio diante do presépio.
De entre todas as coisas que se podem fazer no Natal, o Papa convida-nos a estar em silêncio diante do presépio.
Acrescenta:
Se o Natal for somente uma bela festa tradicional onde nós estamos no centro e não Ele, será uma ocasião perdida.
E, no entanto, no Natal faz-se geralmente o oposto daquilo que Jesus quer. E culpamos a nossa febre nas coisas que enchem os nosso dias de velocidade...
Francisco diz-nos que será Natal se dermos espaço ao silêncio, se nos entregarmos aos ideais de um mundo melhor, se estivermos próximos de quem está sozinho, se sairmos do nosso conforto para nos entregarmos com dedicação, se encontrarmos a luz mesmo na maior escuridão.
Alternativamente, não será Natal se procurarmos as luzes desse mundo, se nos enchermos de presentes, almoços e jantares, mas não ajudarmos pelo menos um pobre que se assemelhe a Deus, porque no Natal, Deus veio pobre.
A verdadeira surpresa do Natal não devia ser descobrir o objecto que está dentro de uma caixa, mas descobrir este outro caminho. E acrescenta o Papa que esta poderá parecer uma surpresa incómoda, mas é aquilo que agrada a Deus. Ou, do ponto de vista de um não crente, é aquilo que é necessário para podermos construir um mundo melhor.
O discurso do Bispo João Lavrador pode, se quisermos, ser apelidado de político e de radical. Novamente, eu acrescento que ainda bem!
Diz-nos o Bispo que a quadra natalícia apela naturalmente à nossa família, à nossa terra de origem, às nossas relações de amizade, mas que isso não é suficiente. Para além disso é necessária uma generosidade que integre todas as pessoas na nossa sociedade.
E eu gostava de realçar este ponto. Porque um apelo genérico ao amor é muito pouco. É perfeitamente normal, e expectável, que um pai (ou mãe) ame a sua filha (ou filho). Mas isso não é suficiente. Esse é, no meu próprio linguajar, um tipo de amor egoísta, quase um amor próprio, um amor por nós próprios, por aquilo que nos pertence ou nos é chegado. Isso é um amor fácil. E não é suficiente.
João Lavrador refere um sentido de esperança, que deve existir sempre, de que mesmo no seio da nossa sociedade mais carcomida, surjam rebentos de renovação, rebentos que um dia poderão frutificar num mundo melhor. Diz-nos que é necessário inclusivamente um sentido estético para que sejamos capazes de identificar esses rebentos de esperança.
E, conforme já antes referi, se é necessário referir a esperança, é porque existem situações condenáveis que devemos combater. João Lavrador refere de imediato a pobreza e pergunta: quem está a fugir à responsabilidade? E imediatamente avança duas respostas possíveis: a própria igreja e os governantes.
Pergunta: como é possível andarmos há dois séculos (desde a revolução francesa, suponho) a apregoar a fraternidade, como é possível a própria igreja andar há dois milénios a apregoar a fraternidade, e continuarmos com a vergonha da pobreza que temos hoje em dia?
João Lavrador não nos dá a resposta fácil, nomeadamente a que refere a ajuda imediata às necessidades mais básicas dos pobres. Antes começa por referir que é necessário um empenhamento de todos, e avança para aquilo que é essencial: é o próprio que está numa situação de pobreza que tem de se sentir capaz de cuidar de si. E se assim não é, é porque lhe faltam os meios, os recursos, a orientação, é porque o seu caminho está vedado, porque nós, através da nossa ganância, lhe fechámos o caminho.
Precisamos de comunidades atentas, orientadoras, que se preocupem verdadeiramente (e João Lavrador acentua este "verdadeiramente"). A responsabilidade das comunidades é em abrir caminhos, prover recursos, orientar, para que cada um seja capaz de alcançar uma vida melhor por si próprio.
Refere: "o assistencialismo às vezes faz com que as pessoas descansem". Se uma pessoa não tem horizontes, isto é, se não vislumbra qualquer possibilidade de ser autónomo, então naturalmente o rendimento mínimo ou um cabaz de produtos alimentares é tudo o que essa pessoa deseja.
João Lavrador fala na solidariedade, fala no acesso à habitação, no acesso à saúde. Também fala na educação, mas, e este é um ponto importante, não refere a formação dos jovens para o mercado de trabalho. Antes refere a formação de todos, novos e velhos, para a humanidade. A educação enquanto veículo capaz de nos transportar para um patamar mais alto de humanidade.
Também refere a justiça. Afirma que a nossa sociedade é implacável, uma sociedade que condena, mas que não dá às pessoas a possibilidade de se redimirem, de se reabilitarem, de se reintegrarem.
Eu acrescentaria que além disso é necessário permitir que as pessoas construam realidade diferentes, é necessário permitir que as pessoas mudem a realidade que temos, e não apenas que se integrem na realidade que outros construíram para elas. Mas em vez disso há muitas pessoas com visões maniqueístas da sociedade, identificando pessoas boas e pessoas más, e catalogando-as sem possibilidade de recurso da sua condenação sumária.
O progresso, termo supostamente utilizado por João Lavrador para se referir ao aumento da capacidade económica e tecnológica das sociedades, não é acompanhado por valores que salvaguardem os direitos das pessoas e dos povos. É no domínio económico de umas nações sobre as outras que vamos encontrar as fontes da guerra.
João Lavrador é radical, no sentido de que nos incita a procurar a raiz dos problemas. Afirma que não basta ficar à margem dos problemas a assistir e a encontrar bodes expiatórios. Se há indignação, é necessário descobrir a sua verdadeira causa e procurar saber como intervir aí, na raiz. A resposta não pode ser criar muros... É necessário indagar como é que estamos a ser solidários uns com os outros.
Insiste que não podemos excluir as pessoas, temos de as integrar, todas elas. E refere o caso da emigração, afirmando que é um direito humano. Que temos de encontrar modos de as pessoas poderem emigrar de forma condigna, mesmo que esse fenómeno nunca possa ser muito digno, uma vez que é a falta de possibilidades nas comunidades de origem que motiva a emigração.
Estes são desafios, diz João Lavrador, para todos nós. Porque nós é que dirigimos a política. Uma boa política é protagonizada por todos nós, todos nós somos intervenientes, pelo voto, pela reivindicação justa, pela participação activa e quotidiana.
Eu, que não sou católico, faço minhas estas palavras de João Lavrador e do Papa Francisco. Que bom será se o Natal puder ser uma oportunidade para olharmos para toda a sociedade à nossa volta, e para nós próprios, com outros olhos, com esperanças renovadas na possibilidade de construção de um mundo melhor. E se soubermos que isso não pode ser deixado aos outros, sejam eles quem forem, isso é da nossa responsabilidade.
Que bom será se no Natal pudermos sair mais à rua, se nos fecharmos menos no nosso lar, na nossa casa, na nossa família, na nossa comida, nas nossas prendas... e se em vez disso pudermos sair mais à rua, para o espaço público, onde os encontros com as outras pessoas são possíveis. Se pudermos olhar para além dos horizontes do nosso pequeno mundo e virmos um mundo mais vasto, e as relações que nele se estabelecem.
Talvez possamos entender, por exemplo, que os excessos de comida, de dispêndios de energia eléctrica, de papel e plástico de embrulhos, de prendas, de viagens de avião e de carro... isso tudo... se pudermos entender que isso tudo não é muito bom para a nossa casa comum. Se pudermos entender que a nossa felicidade não depende verdadeiramente disso, mas sim de tantas outras coisas difíceis de colocar numa caixa: o sermos solidários, o sermos justos, o amarmos e sermos amados.
Esta é a minha mensagem de Natal, para todos os dias em que houver vontade de renascer.
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