sexta-feira, 21 de dezembro de 2018

Ainda sobre as notícias falsas...

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Frustra-me isto que se passa agora sobre as notícias falsas. Em primeiro lugar, surpreende-me a ingenuidade daqueles a quem aparentemente nunca ocorreu que as notícias que lhes chegam possam ser falsas. De repente mostram-se chocados... como se isto fosse uma realidade de agora... como se notícias falsas não fossem uma tradição milenar. Surpreende-me a ingenuidade de quem lê notícias acreditando que pode acreditar, que não necessita de duvidar, de indagar, de investigar... porque delegou isso nalguma outra pessoa ou instituição que considera idónea, com base sabe-se lá em quê. E se me surpreende... é porque certamente eu próprio também fui ingénuo, acreditando que as pessoas tinham presente que tudo o que é noticiado deve ser triado pelo nosso juízo crítico bem alerta. Que estupidez minha acreditar nisso!... Pois se as pessoas acreditam no que lêem nos livros apenas porque está escrito nos livros!... 

Surpreende-me esta ingenuidade de se acreditar que as notícias ou são integralmente falsas ou são integralmente verdadeiras, como se a realidade não estivesse muitas das vezes algures pelo meio. Como na notícia de outro dia, que em primeira mão indicava 4 mortos, logo a seguir 3 e finalmente apenas 2 mortos... embora este seja apenas, e claramente, um caso anedótico. 

Surpreende-me aquilo que me parece ser uma crença na malevolência de quem produz notícias falsas, sem reparar que aqui, como ali nas outras notícias todas, a motivação é a mesma e chama-se dinheiro. 

Mas, em segundo lugar, e mais importante do que isto, entristece-me aquilo que me parece continuar a ser uma cegueira em relação ao modo como os canais mediáticos produzem e reproduzem modos de pensar (ou não pensar) e consequentemente modos de agir (ou não agir) e sentir (ou não sentir).

Parece-me bem que as pessoas se indignem e insurjam contra a produção deliberada de notícias falsas, independentemente das minhas surpresas todas que já mencionei. Mas o que deveras me frustra é perceber o modo como as pessoas aparentemente acreditam (conscientemente?) que tudo está bem, desde que não se produzam notícias deliberadamente falsas. 

Tudo estará bem, por exemplo, se metade (em peso) do jornal impresso for constituído por opiniões. Apesar de opiniões não serem factos nem notícias. Tudo estará bem se cada notícia for seguida de uma opinião ou até de um debate de opiniões. Tudo estará bem se a opinião for incorporada na própria notícia. Tudo estará bem se o público em geral for incorporando no seu pensamento (conscientemente?) a equivalência entre factos e opiniões... Dois mais dois é igual a quatro, afirmo. Isso é a tua opinião, alguém contesta. 

Tudo estará bem se se continuar a publicar mentiras por lapso, por negligência, por omissão de conteúdo relevante... desde que a seguir às garrafais parangonas se publiquem também minúsculos desmentidos. 

Tudo estará bem se todos os jornais, todas as rádios e todas as televisões forem beber as suas notícias às mesmas fontes. Tudo estará bem se as notícias forem todas transmitidas com claros enviesamentos para determinados pontos de vista sobre cada assunto. Tudo estará bem se uma série de assuntos relevantes para as vidas das pessoas continuarem a ser omitidos ou secundarizados pela notícia de que o clube de futebol de cima venceu ao clube de futebol de baixo. Tudo estará bem se a primeira metade do (tele)jornal é constituída por alinhamentos de notícias delineados de acordo com interesses que existem mas que não são expressos. Tudo estará bem se continuarmos a divulgar notícias verdadeiras dos casos mais sensacionais do homem que mordeu o cão. 

Quando um presidente de uma associação de empresários fala para os microfones e as câmaras, regozijando-se pela atribuição de verbas do Orçamento de Estado, explicando que isso terá um impacto muito bom na economia e na criação de postos de trabalho, o espectador é incitado a acreditar que isso é bom para todos e é bom para si também, ainda bem que o governo está a canalizar verbas para aquilo que verdadeiramente interessa, oxalá seja desta que o sobrinho João consegue um trabalho decente, com descontos para a segurança social... O espectador comum não é incitado a reflectir sobre a origem das verbas que compõem as receitas do Orçamento de Estado, não tem presente que essas mesmas empresas têm benefícios fiscais, enquanto os trabalhadores têm agravamentos fiscais em todo o tipo de impostos que não apenas no IRS, não é incitado a reflectir sobre a qualidade dos trabalhos que irão ser gerados, e muito menos sobre a apropriação do valor gerado por cada hora trabalhada nesses novos postos, não é de modo algum levado a entender que o que é bom para a economia não é necessariamente bom para todos, e que operações deste tipo resultam de conluios entre o poder político e o poder económico, e são efectivamente equivalentes a transferências de dinheiro de quem tem menos para quem tem mais. O tempo de antena foi, como sempre, para o senhor engravatado, nada é explicado, tudo segue ao sabor da corrente do pensamento dominante, e toda a gente acredita que isto é que é isenção e sentido de dever dos jornalistas, a bem do esclarecimento da população... 

Tudo estará bem se os jornalistas continuarem a ser, como sempre foram, meros trabalhadores, sujeitos à lógica concorrencial, dentro das instituições onde trabalham e fora delas, pressionados para a conquista de audiências. Tudo estará bem se as notícias continuarem a ser aquilo que são actualmente: um imenso espectáculo de diversões (acerca disso, uma sugestão de leitura: "how to watch tv news"). 

E as pessoas, aparentemente, continuarão a acreditar que é inócuo levarem com a notícia A ou a notícia B, desde que nenhuma delas seja uma "notícia falsa". 

Eu, muito ao contrário deste modo de pensar, sinto que esta vaga de "notícias falsas" pode já ter tido a grande vantagem de fazer com que algumas pessoas abram o olho... Mas sinceramente acho que já não sou tão ingénuo.

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