quarta-feira, 19 de dezembro de 2018

Que tempos são estes?...

Dois poemas para sentir muito e pensar muito, que me foram trazidos pela Antena2 nesta rubrica "o som que os versos fazem ao abrir":
https://www.rtp.pt/play/p3076/o-som-que-os-versos-fazem-ao-abrir



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Que tempos são estes - 1991

Há um lugar entre duas filas de árvores
onde a erva cresce monte acima
e a velha estrada revolucionária se quebra em sombras
perto de uma casa-abrigo abandonada pelos perseguidos
que desapareceram nessas sombras.

Fui até lá
apanhar cogumelos na borda do terror, mas não te enganes
isto não é um poema russo,
nem é um lugar qualquer, é aqui
o nosso país cada vez mais perto da sua verdade e do seu terror
as suas formas próprias de fazer pessoas desaparecer.

Não te direi onde é este lugar,
a malha escura dos bosques
abrigando uma linha de luz despercebida
encruzilhadas percorridas por fantasmas, o paraíso dos musgos;
já sei quem o vai querer vender, comprar, fazer desaparecer.

Não te digo onde fica, então
porque te digo eu seja o que for?
Porque tu ainda escutas,
porque em tempos como estes
ter-te aí a escutar, é necessário
falar sobre as árvores.


Adrienne Rich

(trad. Ana Luisa Amaral)


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Aos que virão a nascer - 1939


1

É verdade, vivo em tempo de trevas!
É insensata toda a palavra ingénua. Uma testa lisa
revela insensibilidade. Os que riem,
riem porque ainda não receberam
a terrível notícia.

Que tempos são estes, em que
uma conversa sobre árvores é quase um crime,
porque traz em si um silêncio sobre tanta monstruosidade?
Aquele ali, tranquilo a atravessar a rua,
não estará já disponível para os amigos
em apuros?

É verdade: ainda ganho o meu sustento.
Mas acreditem: é puro acaso. Nada
do que eu faço me dá o direito de comer bem.
Por acaso fui poupado (quando a sorte me faltar, estou perdido.)
Dizem-me: Come e bebe! Agradece por teres o que tens!
Mas como posso eu comer e beber quando
roubo ao faminto o que como e
o meu copo de água falta a quem morre de sede?
E apesar disso eu como e bebo.

Também eu gostava de ter sabedoria.
Nos velhos livros está escrito o que é ser sábio:
retirar-se das querelas do mundo e passar
este breve tempo sem medo.
E também viver sem violência,
pagar o mal com o bem,
não realizar os desejos, mas esquecê-los.
Ser sábio é isto.
E eu nada sei fazer!
É verdade, vivo em tempo de trevas!

2

Cheguei às cidades nos tempos da desordem
quando aí grassava a fome.
Vim viver com os homens nos tempos da revolta
e com eles me revoltei.
E assim passou o tempo
que na terra me foi dado.

Comi o meu pão entre as batalhas
deitei-me a dormir entre os assassinos,
dei-me ao amor sem cuidados
e olhei a natureza sem paciência.
E assim passou o tempo
que na terra me foi dado.

No meu tempo as ruas iam dar ao pântano.
A língua traiu-me ao carniceiro.
Pouco podia fazer. Mas os senhores do mundo
sem mim estavam mais seguros, esperava eu.
E assim passou o tempo
Que na terra me foi dado.

As forças eram poucas. A meta
estava muito longe,
claramente visível, mas nem por isso
ao meu alcance.
E assim passou o tempo
Que na terra me foi dado.

3

Vós, que surgireis do dilúvio
em que nós nos afundámos,
quando falardes das nossas fraquezas
lembrai-vos
também do tempo de trevas
a que escapastes.

Pois nós, mudando mais vezes de país que de sapatos, atravessámos
as guerras de classes, desesperados
ao ver só injustiça e não revolta.

E afinal sabemos:
também o ódio contra a baixeza
desfigura as feições.
Também a cólera contra a injustiça
torna a voz rouca. Ah, nós
que queríamos desbravar o terreno para a amabilidade,
não soubemos afinal ser amáveis.

Mas vós, quando chegar a hora
de o homem ajudar o homem,
lembrai-vos de nós com indulgência.

Bertolt Brecht

(trad. João Barreto)

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