Este artigo vem na sequência do anúncio do fim do sistema de quotas leiteiras na União Europeia. É especialmente escrito para quem julga que os partidos são todos iguais, que socialismo ou liberalismo são apenas palavras e que nada dessas análises sócio-político-económico-coisas tem a ver com a nossa vida do dia-a-dia.
A sobreprodução ocasional
Ao contrário do que alguém menos informado possa supor, muitas crises económicas não são de subprodução, mas sim de sobreprodução. Isso mesmo: produzem-se bens e serviços em quantidade superior àquilo que as pessoas e as empresas são capazes ou estão dispostas a adquirir. Também é assim nos tempos actuais, em que tanto se fala de crise.
Na agricultura e na pecuária essas crises de sobreprodução são conhecidas desde tempos anteriores à Maria Cachucha. Basta que num determinado ano haja um conjugação de factores nesse sentido: as pessoas têm pouco dinheiro no bolso, os agricultores plantaram todos a mesma coisa há uns meses atrás, as condições climatéricas foram favoráveis... E logo o mercado fica inundado, por exemplo, de tomates.
E qual é o problema da sobreprodução? Bom, o problema é que, por uma vez, a "lei" da oferta funciona mesmo, e os preços dos produtos excedentários tendem a descer imenso. Imagine que produziu tomates e que os vai vender ao mercado. Imagine que fez as contas e chegou à conclusão que gastou 1000 moedas para produzir 1000 tomates. Imagine que tenta vender os tomates a 2 moedas cada um e que não consegue vender nenhum. Provavelmente baixará o preço para 1,5 moedas por tomate. Imagine que então só consegue vender 100 tomates. Neste momento você gastou 1000 moedas e só conseguiu reaver 150, portanto ainda tem um grande prejuízo. Imagine que em desespero, e para tentar pelo menos ficar com as contas equilibradas, você baixa o preço para 1 moeda por tomate. Mas, mesmo assim, e porque há muita gente a fazer o mesmo e há tomates por todo o lado, você só consegue vender mais 500 tomates. Neste momento você gastou 1000 moedas e só conseguiu reaver 650, e ainda tem 600 tomates para vender. Então você pensa: eu tenho mesmo que conseguir as 1000 moedas, pelo menos, para poder pagar os empréstimos que fiz quando plantei os tomateiros... Assim, você decide começar a vender os tomates abaixo do seu custo, a 0,5 moedas por tomate. Bom... o mecanismo continua até que você já está praticamente a dar os seus tomates ao preço da chuva e mesmo assim não consegue reaver as 1000 moedas que investiu no início.
Tudo isto poderia ser evitado facilmente se o mercado não funcionasse de forma tão desregulada. Há muitas formas de o conseguir. A forma mais fácil é simplesmente destruir parte da produção. No exemplo dos tomates, se metade dos tomates produzidos fossem imediatamente destruídos, o preço não baixaria tanto e a crise poderia ser evitada.
Mas o problema de executar semelhantes medidas é que elas têm de ser planeadas em conjunto por todos os produtores. É aí que se demonstra que um mercado regulado funciona melhor que um mercado desregulado, e que a procura do bem colectivo produz um resultado globalmente melhor do que a procura do bem individual por cada agente económico.
Ou seja: se for necessário destruir metade da produção de tomates, quem é que será o primeiro produtor a destruir metade da sua produção?... Imagine-se nessa situação. Será que você estaria disposto a destruir metade da sua produção?... Você e outros produtores como você estariam dispostos a fazê-lo, talvez... mas muitos outros não. E no final você, com a sua atitude bem intencionada, constataria que o preço do tomate não iria baixar tanto, mas você ficaria muitíssimo prejudicado, pagando do seu bolso o aumento do rendimento dos outros produtores!
Para que medidas deste tipo funcionem é necessário que haja algum tipo de concertação dos interesses de todos os produtores num mesmo mercado. As cooperativas de produtores podem fazer esse trabalho de concertação. Também os governos dos diversos países.
Mas quando os mercados se tornam cada vez mais integrados, rumo à globalização total, as estruturas de concertação também têm de se tornar globais. Imagine, para demonstrar isto mesmo, que no mercado dos tomates existe uma cooperativa de todos os produtores de tomate excepto um, que tem a mania que não está para pertencer a cooperativas. Se num ano de sobreprodução a cooperativa decidir destruir metade dos tomates, para impedir que os preços do tomate baixem muito, o produtor isolado, que não destruiu metade da sua produção, fica em vantagem perante todos os outros!... Torna-se então necessário que não só as estruturas de concertação se tornem globais, como que a participação dos produtores nessas estruturas seja obrigatória.
A PAC - Política Agrícola Comum
A PAC é das primeiras e das mais importantes políticas da União Europeia. Foi implementada através do Tratado de Roma (assinado em 1957 pela Bélgica, Luxemburgo, Holanda, Alemanha Ocidental, França e Itália) que instituiu a CEE - Comunidade Económica Europeia, que precedeu a Comunidade Europeia e a União Europeia.
No rescaldo da segunda guerra mundial, com a noção plena da importância da autosuficiência alimentar, e após um período de subprodução, o objectivo primordial da PAC foi o de garantir essa autosuficiência alimentar. Para esse efeito foram implementadas políticas de aumento da produtividade agrícola e pecuária e políticas de apoio ao rendimento dos respectivos produtores.
O que se seguiu foi uma história de "sobre-sucesso"! O aumento da produtividade foi de tal ordem, que cedo se passou de uma situação de sobprodução para uma situação de sobreprodução. Os mecanismos da PAC que existiam para garantir o rendimento dos produtores começaram a ser levados ao limite. No caso do leite, por exemplo, a CEE adquiria leite e derivados (sobretudo derivados menos perecíveis como leite em pó, leite condensado ou manteiga) para impedir a queda dos preços nos mercados. Isto equivale a retirar artificalmente do mercado a produção excedentária, o mesmo que destruir tomates no exemplo anterior. Só que a quantidade adquirida destes produtos era tão elevada que a CEE estava a gastar rios de dinheiro e além disso não conseguia dar destino aos produtos adquiridos (uma das coisas que foi feita foi enviar os excedentes para outros países, em forma de "ajuda humanitária", o que na verdade só contribuiu para aniquilar os produtores desses mesmos países).
Foi então que PAC foi alterada e foi introduzido o sistema de quotas: a sobreprodução seria evitada se a quantidade máxima produzida em cada período estivesse fixada logo à partida.
A sobreprodução sistemática
O mundo está em constante evolução. Muitas coisas mantêm-se, mas outras alteram-se. Uma das coisas que se tem alterado muito ao longo das últimas décadas é a produtividade técnica das actividades económicas. Os avanços no conhecimento e na aplicação desse conhecimento conseguiram e continuam a conseguir, efectivamente, aumentos espantosos de produtividade. O que se passou nas últimas décadas na Europa com os produtos agrícolas e pecuários foi um exemplo desse aumento da produtividade técnica.
(imagem retirada daqui)
(A produtividade técnica é uma produtividade real, no sentido que compara a quantidade de factores produtivos utilizados com a quantidade de produtos gerados. Distingue-se da produtividade económica, que compara o dinheiro gasto em factores produtivos com o dinheiro conseguido na venda dos produtos.)
No caso das actividades primárias na União Europeia, a PAC foi a medida adoptada que permitiu estancar o problema da sobreprodução sistemática gerada pelos aumentos da produtividade nesse sector.
Mas não existe nenhuma política semelhante para as restantes actividades produtivas! Porquê?...
O liberalismo económico
A resposta à última questão reside na ideologia do liberalismo económico que molda o pensamento dominante em Portugal e em muitos outros países no momento actual.
Segundo o liberalismo económico, o óptimo social atinge-se através da prossecução dos óptimos individuais. Basicamente é o "cada um por si", o "fé em Deus" e o "vale tudo menos tirar olhos". Segundo os apologistas desta ideologia, qualquer intervenção do Estado na economia, seja no sentido de criar impostos, de criar estruturas de concertação, de subsidiar, de impôr códigos de conduta, de limitar a concentração económica ou a circulação de capitais, de redistribuir o rendimento para atenuar as desigualdades, de criar empresas estatais para assegurar bens e serviços fundamentais ou de em algum modo afectar a propriedade privada e a livre iniciativa dos indivíduos, é uma intervenção que introduz mais custos sociais do que benefícios e, portanto, deve ser evitada.
Os partidos de direita são os defensores por excelência do liberalismo económico. Em Portugal, PSD e CDS são os partidos de direita com maior expressão. De cada vez que um português vota num destes partidos está, com consciência disso ou não, a apoiar a implementação de políticas económicas liberais.
PSD e CDS fazem parte de um partido político europeu chamado "Partido Popular Europeu". É este partido político que, em resultado das eleições europeias, tem tido a maioria dos deputados no parlamento europeu nos últimos anos. É este partido que implementa as políticas liberais ao nível da União Europeia.
Liberalismo económico é um conceito que em geral não é bem visto por quase todas as pessoas que têm pelo menos uma vaga noção do que seja. Isto acontece porque o conceito se associa a um "salve-se quem puder" ou à "lei do mais forte". Note-se que estas associações são, em geral, correctas! E precisamente por causa disso, as pessoas que consciente ou inconscientemente defendem o liberalismo económico tendem a adoptar outros nomes para designar essas ideias. Por exemplo, os defensores da "economia de mercado" em geral são defensores do liberalismo económico. Ao nível dos partidos as designações tornam-se bem mais sofisticadas, no sentido de captar o maior número de eleitores possível. É assim, por exemplo, que PSD quer dizer "Partido Social Democrata" e CDS quer dizer "Centro Democrático e Social". Destas designações ficamos a saber que os partidos supostamente defendem a democracia e têm em conta aspectos sociais... É muito vago, não é?... No entanto, além de ser vago, nem sequer é verdade: por exemplo, ambos os partidos defendem o capitalismo, e o capitalismo é contrário à democracia.
Mas um exemplo extremo deste tipo de designações inócuas, para não dizer enganadoras, com o objectivo único de captar eleitores, é precisamente o de "Partido Popular Europeu". Qualquer coisa entre o "partido do povo" e o "partido populista"... é algo que não diz nada de nada acerca do que se está efectivamente a defender. Note-se que essa é também uma designação que o CDS adoptou para si própria.
Mas voltemos à questão que ficou em aberto na última secção: porque é que a União Europeia só tem políticas que combatem sobreproduções na agricultura e na pecuária?
Agora que percebemos que a União Europeia é comandada por defensores do liberalismo económico, já podemos compreender que a questão a colocar deve ser precisamente a inversa: porque é que a União Europeia mantém a PAC? Isto porque já sabemos que o liberalismo económico defende que os mercados não devem sofrer qualquer tipo de intervenção de qualquer tipo de autoridade.
A PAC é uma política excepcional. Os liberais sabem bem que o funcionamento livre dos mercados gera crises de sobreprodução (muitas vezes seguidas de crises de sobprodução), gera crises de desemprego, gera concentrações económicas fabulosas, e gera uma data de outros efeitos socialmente indesejáveis. Os liberais defendem ainda assim este tipo de economia porque eles estão do lado dos fortes. E de cada vez que existe uma deslocalização de uma empresa, ou uma inundação com importações baratas que arrasa a economia local, ou uma falência ou algo do género, isso significa que há um lado mais forte que está a benificiar com isso tudo. E é esse lado mais forte que os liberais protegem.
Daí, por exemplo, todo o discurso liberal da meritocracia - que devemos premiar o mérito, isto é, devemos premiar os melhores, promover a excelência e por aí fora - que quase todas as pessoas aceitam de bom grado, sem se aperceberem que numa corrida, dê por onde der, só pode haver um vencedor, e que provavelmente esse vencedor não seremos nós!
A PAC e o liberalismo económico
A PAC é excepcional e existe apenas porque os liberais, por mais que liberais que fossem, eram também um pouco nacionalistas, e tinham também um pouco de medo de não ter o que comer ao virar da esquina. Afinal, os sistemas liberais só podem ser mantidos com Estados fortes, Estados protectores dos interesses liberais dos mais fortes, e toda essa máquina precisa de ser alimentada, literalmente.
No entanto, uma das coisas que tem mudado no mundo é a facilidade de circulação das pessoas, dos bens e do dinheiro. E isso tem tornado os liberais um pouco menos nacionalistas e um pouco menos medrosos, no sentido de que eles sentem, crescentemente, que não necessitam de depender das condições de um local em concreto da superfície do planeta: se o problema vem de acolá, passa-se a ter relações com o acoli; se as coisas correrem mal aqui, facilmente nos mudamos para ali.
Se houver crise nos tomates, faz-se cozinha inovadora com as mangas do Panamá.
E é assim que surgem as pressões para desmantelar os mecanismos da PAC que permitiram até agora manter uma comunidade de agricultores bem sustentada na União Europeia. O anúncio do fim das quotas na produção de leite é apenas um passo nesse sentido.
O impacto do fim das quotas na produção de leite
O fim das quotas na produção de leite significa que a produção do leite se irá passar a reger pelos mesmos mecanismos que existem no mercado dos computadores ou de outro qualquer bem transaccionável. Os produtores poderão dar azo à sua produtividade e aumentar a produção seu bel-prazer. Inevitavelmente os preços do leite no mercado europeu tenderão a baixar bastante. E isso irá aumentar a competição entre os produtores. Alguns produtores tentarão diferenciar-se, criando nos consumidores a ideia de que o seu leite é melhor que o da concorrência (o que muitas vezes poderá ser apenas uma ilusão), para assim conseguirem vender a um preço ligeiramente superior. Mas a grande maioria irá simplesmente acompanhar a descida de preços geral. Muitos produtores irão então descobrir que a produção de leite "já não compensa" e irão abandonar a actividade. O abandono da actividade de muitos produtores será bem-vinda pelos produtores que restarem.
Ou seja, no final acontece aquilo que os liberais defendem: a concorrência irá baixar os preços e puxar pela produtividade e pela competitividade das empresas, o que será benéfico para os consumidores, e será benéfico para os produtores, no sentido de que os melhores receberão o seu prémio. É a cartilha completa!
Cantava o José Mário Branco, na sua música "do que um homem é capaz":
"...
vão poluindo o percurso
com as sobras do discurso
que lhes serviu para abrir caminho
à custa das nossas utopias
usurpam regalias
para consumir sozinho
com políticas concretas
impõem essas metas
que nos entram casa dentro
como a trilateral
com a treta liberal
e as virtudes do centro
no lugar da consciência
a lei da concorrência
pisando tudo pelo caminho
p'ra castrar a juventude
mascaram de virtude
o querer vencer sozinho
..."
O que será pisado pelo caminho serão os produtores mais pequenos e naturalmente menos competitivos, que irão ser forçados a abandonar a actividade. Serão pisados os interesses dos animais, que passarão a ser olhados integralmente como máquinas de leite e viverão em ambientes como o que ilustro no início deste artigo. Serão pisados os interesses dos produtores de outros países, que verão os seus mercados inundados com os excedentes da produção europeia. Será pisada a diversidade genética, sendo eleita apenas a espécie mais produtiva, e passando-se o mesmo relativamente à alimentação das vacas. Será pisada a natureza, no sentido mais profundo, e ainda mais os interesses económicos dos mais pequenos, ao ser fomentada a utilização de produtos transgénicos. Serão pisados os interesses dos consumidores que ficarão cada vez mais sujeitos a serem enganados relativamente à verdadeira composição e proveniência do que estarão a consumir.
Mas tudo valerá a pena, dizem-nos, porque o leite será mais barato. Mesmo que já nem seja leite e mesmo que já não tenhamos dinheiro para o comprar.
A posição do CDS nos Açores como exemplo paradigmático
Diz uma notícia do jornal i, com a data de ontem, que "o CDS-PP/Açores anunciou esta terça-feira que vai agendar um debate de urgência sobre o fim das quotas leiteiras na Assembleia Legislativa da região, em Abril, para exigir ao Governo Regional que apresente uma estratégia para o sector."
(a posição do PSD é semelhante)
Isto parece uma anedota... mas não nos devemos rir tanto de aspectos que têm consequências tão sérias.
Parece uma anedota, porque o CDS é um partido liberal, mesmo que diga o contrário (se alguém tiver dúvidas em relação a isto faça o favor de investigar o conteúdo de todas as propostas defendidas pelo CDS no parlamento, por exemplo), e portanto o CDS não advoga a intervenção do Estado na economia. A "estratégia para o sector" que o CDS verdadeiramente defende é a ausência de estratégia, deixando os mercados funcionar livremente.
Por isso mesmo, quando uma medida deste tipo ameaça pôr em causa o modo de vida de uma proporção significativa do arquipélago dos Açores, o CDS fica dividido. Se lermos mais atentamente a tal notícia do jornal i, notaremos como o CDS defende "medidas" do governo regional, mas não defende os subsídios, defendendo em vez disso o aumento da competitividade das empresas e a redução dos custos de produção. Mas o aumento da competitividade das empresas e a redução dos custos de produção de leite é algo que compete exclusivamente às empresas, segundo a perspectiva do CDS, e que a concorrência tratará naturalmente de espicaçar. As explorações industriais de vacas e as rações trangénicas seguirão o seu caminho!...
É assim que o CDS, ao mesmo tempo que vê as suas próprias políticas a serem implementadas a nível da União Europeia, sente necessidade de dizer qualquer coisa, para parecer que está do lado dos agricultores, mesmo que na verdade diga apenas mais do mesmo.
Esta relação entre o CDS e a agricultura é uma coisa que se compreende melhor quando se percebe, por exemplo, a grande diferença que há entre a CNA - Confederação Nacional da Agricultura e a CAP - Confederação dos Agricultores de Portugal, e quando se coloca a questão numa perspectiva histórica, a começar de lá de trás, do tempo do feudalismo. É que na agricultura, como em tudo o resto, os interesses não são todos iguais: os interesses de quem tem mais são sempre muito distintos dos interesses de quem tem menos.
E é triste ver como agricultores e produtores pecuários de menor capacidade económica acabam convencidos com discursos à la Paulinho das Feiras, e acabam a dar o seu apoio a partidos políticos que depois, efectivamente, contribuem para a sua aniquilação económica. São os tiros nos pés desta gente...
Sem comentários:
Enviar um comentário