quarta-feira, 28 de agosto de 2019

O perigo de andar devagar...



(Mais sobre este triste caso aqui: http://vadebike.org/2011/02/tentativa-de-assassinar-ciclistas-em-porto-alegre/. Desde então ainda estou a aguardar por um atropelamento semelhante de automóveis por uma bicicleta.)

O último artigo que aqui publiquei, intitulado "poluição sofisticada", e contendo uma imagem de trotinetes estacionadas num passeio, pode deixar a impressão, no leitor incauto, de que sou contra as trotinetes eléctricas. Talvez este artigo possa esclarecer um pouco mais... Entretanto, espero que, apesar da impressão, a ideia principal desse artigo tenha passado: não é só por os veículos serem eléctricos que são "bons para o ambiente". Tal como as eólicas não são "ecológicas" e a economia verde não é geralmente solução para nada.

Este artigo é motivado por uma conversa entre amigos ocorrida recentemente, e por uma notícia que acabei de ouvir na rádio, na qual alguém do automóvel clube de portugal (neste caso as minúsculas são mesmo para diminuir três conceitos que me parecem demasiado empolados...) exigia o uso de capacetes pelos utilizadores de trotinetes eléctricas e bicicletas.

Porquê?...

Porventura responderão: para aumentar a segurança...

De quem?... O tipo do acp agora defende a segurança dos outros que não são automobilistas, é isso?...

Porque é que o tipo do acp não defende o uso de capacete nas touradas aqui na Terceira?... Ou o uso de contraceptivo nos actos sexuais?... Ou o uso de caixinhas para organizar os comprimidos dos velhotes?...

Por um lado, não acredito no pai natal (mais duas minúsculas), e portanto não acredito que o tipo do acp esteja assim tão preocupado com a cabeça dos outros. Por outro lado, parece-me simplesmente que o tipo do acp trata tudo o que se passa nas estradas como algo da sua laia. As estradas e os passeios e todas as zonas envolventes são o reino dos automobilistas, e o tipo do acp é o seu rei. Compete ao rei pronunciar-se sobre o que se passa no seu reino.

Pois a mim não me compete pronunciar-me sobre este assunto, mas prefiro fazê-lo, senão ele ameaça atacar-me as tripas, e isso sim, é algo que me compete... As minhas tripas competem-me. Portanto, toca a fazer das tripas coração para novamente mexer nesta imundice e deixar, talvez, no final, as coisas um pouquito mais claras.

As estradas não existem por causa dos automóveis. Os automóveis são coisas que existem há pouco mais de cem anos. As estradas são um nadita mais velhas. Mesmo que as estradas de hoje sejam moldadas aos automóveis... mas já lá iremos.

Durante todo o tempo em que existiam estradas sem automóveis, não foi necessário um código de estrada. Nem mesmo nas situações mais engarrafantes. E creio que é fácil ficar surpreendido com o quão recentes são normas como "a circulação deve ser feita pelo lado X em todo o país". E a razão para isso também devia ser evidente...

Cada lei é, em certa ou em toda a medida, uma ingerência na liberdade individual. As leis são as evidências da subjugação dos súbditos do reino a uma autoridade supostamente colectiva... uma outra espécie de ditadura... seja ela da maioria ou de quem for.

E, sendo assim, não é boa ideia regular tudo e mais alguma coisa à nossa volta. Pensemos no conjunto de coisas perigosas que fazemos na nossa vivência quotidiana. Quantas das coisas que fazemos incluem um risco? Comer com faca e garfo? Cortar os legumes com faca afiada? Cozinhar no fogão? Ter aparelhos eléctricos? Tomar medicamentos? Comer fruta? Sair à rua? Nadar no mar? Ter uma conta de facebook?...

Queremos mesmo ter leis a regular isto tudo, a vida toda, de forma a proibir o sofrimento?... Já se sabe que a melhor... e talvez única... forma de não sofrer é simplesmente não viver. Devemos proibir a vida?

O corolário do que expus é que devemos ser parcimoniosos na legislação.

Muitos condutores e passageiros reagiram contra a legislação que obriga ao uso do cinto de segurança nos automóveis. Muitos (e certamente todos conhecemos alguém assim) continuam a não cumprir a legislação, ou quando são condutores, ou quando são passageiros, ou quando vão atrás no banco ou enfiados na mala. E porquê?... Porque as pessoas querem ser livres, inclusivamente livres de fazer asneiras.

Quem é que, no processo de aprendizagem de condução de um veículo automóvel, teve um acidente? Certamente alguns... mas provavelmente uma minoria. Quem é que, no processo de aprendizagem de condução de uma bicicleta, teve um acidente? Eu arrisco a dizer que ninguém aprendeu a andar de bicicleta sem cair. E daí?... Acidentes de automóvel e acidentes de bicicleta são um pouco diferentes... ou não?

Depois de se aprender a andar de bicicleta, e consoante o espírito endiabrado de cada um, poderemos ser tentados a andar sem mãos, sem pés, sem dentes... E, pergunto: devemos possuir legislação para proibir a condução de bicicletas sem mãos?...

Talvez a nossa cabeça pré-formatada (e inconscientemente formatada) queira responder algo como: devemos proibir a condução de bicicletas sem mãos quando a condução for feita na "via pública". É assim... todos temos uma tendência, que julgamos natural, para sermos opinadores ao estilo do rei do reino das estradas, guru-mor do clube dos automobilistas.

Diz a mesma notícia que acabei de ouvir na rádio que durante o ano de sei lá quê houve qualquer coisa como trezentos e tal acidentes com trotinetes, dos quais resultaram sei lá quantos feridos ligeiros.

Sim... E?...

Depois houve-se alguém a dizer que um dos problemas é a condução sob o efeito do álcool. Pois... pois é... Aliás, o efeito do álcool manifesta-se de muitas formas... Não devíamos proibir o álcool por completo?

Quantos acidentes houve no mesmo ano de pessoas a descer escadas?... Se calhar algumas morreram em consequência da queda!... Se calhar descer escadas é mais perigoso que andar de trotinete!... Se calhar devíamos proibir as escadas!!...

Portanto... facto: conduzir trotinete no meio do tráfego sob o efeito do álcool dá direito a correr um risco elevado de partir a cabeça.

Outros factos:

  • as ditas "vias públicas" são em geral divididas exclusivamente em passeios e estradas (ou outro nome para isso)
  • os passeios não existiam antes da era do automóvel
  • compete aos passeios recolher tudo aquilo que possa estar na via pública a atrapalhar o trânsito: peões (já não se chamam pessoas), baldes do lixo, árvores, tabuletas, semáforos, etc.
Só não se metem os tractores nos passeios, porque claramente os passeios que temos são demasiado estreitos... que lá atrapalharem o trânsito eles atrapalham!...

E, já agora, o rei dos automobilistas não vem para a rádio exigir que as bicicletas, trotinetes, skates e tudo o mais andem na estrada e não nos passeios, como aliás está estipulado no "código", porque é evidente que isso iria atrapalhar o trânsito automóvel.

O passeio é assim uma espécie de concessão que os automobilistas fazem, reconhecendo que seria pouco prático construir passadiços aéreos desde a porta de entrada das casas das pessoas até à padaria.

Entretanto, noutras áreas, os automobilistas adiantaram já terreno e anteciparam-se à potencial construção de casas ou padarias: reservaram essas áreas só para eles e puseram lá umas tabuletas assim:

Resultado de imagem para sinal trânsito autoestrada

Isso sim, é o reino dos automobilistas!... Ah, e como eles desejariam poder espalhar tabuletas destas pelas cidades inteiras!!...

Não, não estou a viajar na maionese. Quantos são os casos que conhecem de autoestradas construídas no meio de cidades, por entre prédios e outros espaços, e sobre os escombros das casas que tiveram de ser demolidas para a sua passagem?

Enfim... tenho de me conter, senão corro o risco de não acabar nunca este artigo.

O que pretendo dizer é que todo o sistema que temos montado, em termos físicos nos espaços públicos, em termos legais, em termos mentais dentro das nossas cabeças, é um sistema construído sob a premissa tácita de que os automóveis é que mandam, as estradas são para os automóveis, os espaços públicos são para as estradas.

Nesse sistema, e APENAS nesse sistema, existem riscos elevados de integridade para quem se passeia de bicicleta, de trotinete, ou simplesmente a pé.

Mas, claro está, à la zés velhos ninguéns dos restelos, de cada vez que surge uma nova forma de nos deslocarmos mais eficientemente, mais silenciosa, mais humana, e mais segura... essa nova forma tem dificuldade em encaixar-se no sistema pré-montado de passeios e estradas, e acaba, no processo, por atrapalhar alguém. E, como sempre, compete ao rei da chafarica ripostar, atrapalhando de volta: "só podem andar de trotinete se usarem capacete"!

Sim... gramava que um bando, uma resma, uma multidão de condutores de trotinete, de capacete na cabeça, sem álcool nas veias, e cumprindo todas as regras, enchesse as ruas e estradas das nossas cidades. O atrapalhanço seria garantido.

O que se faria então?... O que sugeriria então o rei da chafarica?... Mais capacetes?... Uma nova legislação?... Mais umas proibições?...

Ou será que finalmente começariam a perceber que o espaço é das pessoas, que as pessoas não são automóveis, que há outras formas de nos movermos para além dos automóveis, que as cidades devem ser diferentes, que toda a via pública deve ser passeio apenas?

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