A tarde a encaminhar-se para o final. Aquela hora terrível do domingo de quem na segunda regressa ao trabalho... Aquela hora em que percebemos que afinal o sol de domingo não dura para sempre: já está baixo, não tarda nada está junto ao horizonte, e as coisas escurecem, e o frio vem, e é preciso comer e preparar as coisas para o dia seguinte, e deitar cedo para ganhar forças. O fim-de-semana é para ganhar a coragem.
Podia estar a sentir isso... isso tudo e tudo o mais que a síndroma de domingo faz sentir, sentimento que infelizmente conheço muito bem, tanto quanto amo a liberdade, desde que me puseram na escola... Mas não. Era bem distinto o que estava a sentir. Em primeiro lugar o que sentia, aquilo que se sobrepunha, era bem mais físico. Sentia o corpo a pedir choco. Queria um doce, queria calor, queria deitar-me a apreciar a paisagem... queria ler e ao mesmo tempo não queria ler, queria não pensar muito, queria olhar para longe, contemplar somente.
Deitei-me no topo de uma colina relvada. Deitei-me na relva, à sombra. Mudei-me para o sol. Vesti o casaco. O vento ajudou-me a decidir sobre a leitura. E conclui que era calor que queria. Levantei-me e fui em busca doutro lugar. Encontrei um banco de madeira virado para o rio. A ponte Vasco da Gama mesmo em frente... um mamarracho de betão, mas que, não ouvindo o barulho dos carros que lá passam, e esquecendo tudo o resto, faz de escala no enorme estuário, ajuda a realçar a profundidade do que a vista alcança.
O banco estava exposto ao vento, que vinha do lado de trás. E então deitei-me para me abrigar um pouco. Ali fiquei, a apreciar o que sentia numa tarde de domingo a caminho do seu fim. Não sentia pavor de perder a liberdade... Sentia a boa sensação de aos poucos as coisas começarem a ficar direitas por dentro e por fora... sentia uma outra liberdade a caminho, algo bem maior, que transformava a cárcere de segunda numa chatice que se descarta sem lhe dar grande importância. Está bem, está bem... estás aí, sim... já trato de ti... Como quem diz: seja lá o que for... a mim pouco me importa!
Ouvia as pessoas quando se aproximavam e se punham a jeito. Não ouvia nada de jeito na verdade, até porque sou duro de ouvido... Mas então chegou um miúdo que aparentava ainda estar na escola primária, numa bicicleta um pouco grande para o seu tamanho, e a sua mãe, a lutar pela juventude dentro das suas vestes de senhora, ou a lutar pela altivez, dentro da sua idade ainda jovem. Pararam os dois quase à minha frente. A mãe saiu do caminho e desceu um pouco a ladeira de terra relvada até chegar perto de umas ervas altas que não me dei ao trabalho de identificar. Fiquei a vê-la da cintura para cima, enquanto o miúdo a via por inteiro. Depois baixou-se e deixei de a ver.
Quando se levantou trazia algumas daquelas ervas na mão, algumas delas aparentemente floridas, com flores que também não me dei ao trabalho de ver (o cérebro a meio gás e a vista pouco focada). O miúdo perguntou-lhe então:
- Ó mãe, o que estás a fazer?
A mãe, contemplando o arranjo atrapalhado na sua mão e começando a subir a ladeira de volta ao caminho:
- Vão ficar bonitas na casa de banho.
- Mas estás a matar a natureza, mãe!...
- Não faz mal – disse ela, ao lado dele, a passarem mesmo à minha frente – depois crescem mais.