sábado, 26 de novembro de 2016

Misantropia...



Num dos livros que agora estou a ler, há esta passagem:

"Viajar, para mim, é uma forma risonha de estar só. Viajar - de barco, de avião, até de monótono comboio - tem de ser uma atenção, uma concentração apenas dividida entre o meu possível tempo de vida e o percurso efectivo. Por isso temo e odeio o rosto inesperado, o «olá» de quem nada me diz, a mão estranha esticada contra o meu sonho, a palmada no ombro da minha inocência, forçosamente resignada, o ímpeto ridículo, hipócrita e expansivo desse alguém em que não pensava há tantos anos e que, como um boneco enfadonho ou uma pirraça do demónio, irrompe na viagem e me rouba o prazer de ver a espuma na esteira do barco, a nuvem sob a asa do avião, a velocidade traumatizada da árvore além da janela do comboio."

Só leio meia página por dia, e ainda nem a meio vou, mas posso desde já recomendar: "o medo" de José Martins Garcia.

Misantropia, antropofobia, essa maçada de ter de aturar a humanidade, toda junta ou aos bocadinhos...

E, no entanto, acredito que ninguém gosta verdadeiramente de estar só. Todos querem poder partilhar o que têm dentro. O misantropo talvez tenha perdido a paciência...

Todos somos diferentes. Quanto mais formos nós próprios, quanto mais originais e criativos formos, mais diferentes seremos. A vivência em sociedade é, mesmo que discutivelmente, necessária e desejável.

Como o alemão barbudo dizia, a economia é a infraestrutura na qual assentam todas as superestruturas sociais. A economia molda o homem. Mais do que o homem molda a economia, mesmo que a economia seja simplesmente um produto da humanidade.

A diversificação das mentes humanas acompanha a diversificação das actividades económicas. No tempo em que, por necessidade ou outro motivo, todos eram pastores, agricultores, pescadores, e outros ôres, no tempo em que todos viviam na mesma casa, o entendimento seria porventura mais fácil do que no tempo em que os pais não entendem os cursos, supostamente superiores, que os filhos estão a "tirar".

A tendência será para um crescimento do potencial de desentendimento... Neste contexto, tornam-se cada vez mais importantes as estratégias de empatia...

Se todos somos cada vez mais diferentes, é cada vez mais necessário desenvolver capacidades que nos ajudem a ultrapassar essa diferença no necessário convívio com os outros humanos.

A tolerância é uma coisa horrível, como dizia o Rui Pereira. É horrível porque o conceito nasce de uma relação de ódio, ou pelo menos de desgosto, porque cheira a desigualdade, porque a sua concretização não implica qualquer tentativa de compreensão, de aproximação, de empatia.

Infelizmente, talvez se torne cada vez mais necessária. Como dizia o Zizek, não podemos fazer depender a paz no mundo da compreensão entre os povos e entre as pessoas. Há demasiadas pessoas. Há demasiados povos. As diferenças são demasiado complexas. E todos temos tempo e paciência de menos! Se assim fosse, estaríamos em guerra permanente!... O que se calhar é o caso... O que é necessário é poder garantir a paz, mesmo que não exista qualquer compreensão!

A tolerância será a estratégia mínima para conviver com a diferença. Idealmente quereríamos muito mais. Idealmente quereríamos compreensão mútua. E compreensão, bem o sabemos, não implica aceitação, não implica concordância, não implica reprodução. Apenas compreensão.

E compreensão é uma ferramenta contra a solidão.

Houvesse mais paciência e existiria menos misantropia.

O que nos tira a paciência então?...

O facto de sermos tão diferentes uns dos outros?... Talvez... Isso implica um esforço acrescido de adaptação mental ao José, à Maria, ao Belchior, ao Camelo...

A isso não é alheia a economia em que vivemos. Sempre a infraestrutura!... Ela é cada vez mais incompreensível. E a alienação é crescente. Alienação, de alienar, do latim alienus, que pertence a outro, que por sua vez deriva de alius, que não quer dizer alho, mas quer dizer outro. Alienação é transmissão ao outro. E na análise do alemão barbudo, alienação é o deixar aos outros a compreensão do mundo em que vivemos, é o entregar aos outros a condução da nossa vida, é o transmitir aos outros o sentido da própria existência.

Quando as pessoas passam oito ou mais horas de cada dia a fazer algo que não entendem bem, para fins que não consideram muito necessários, utilizando ferramentas que lhes saem completamente do controlo, para poderem receber um pouco de dinheiro que, em boa verdade, não fazem ideia de onde vem ou para onde vai, é disso mesmo que estamos a falar: de alienação.

Uma economia que fizesse mais sentido aos olhos de cada um permitir-nos-ia ganhar algum controlo sobre as nossas vidas e permitia que nos compreendêssemos melhor uns aos outros. Infelizmente, o próprio progresso tecnológico é aqui parte da equação. Porque é difícil conciliar o progresso tecnológico com uma diminuição da alienação. No entanto, creio que a solução para isso passa pelo questionamento do próprio progresso tecnológico. Talvez descubramos que a alienação nos conduziu a uma situação em que nem sequer somos capazes de explicar bem a necessidade do progresso tecnológico!

Mas o que nos tira a paciência para lidarmos com as diferenças que encontramos nos outros não resulta apenas dessas mesmas diferenças.

Resultará a falta de paciência também da nossa falta de tempo?... Talvez. E nesse caso eu volto a perguntar: quem nos obriga a gastar oito ou mais horas de cada dia a fazer algo que nem sempre percebemos bem para o que serve?

Resultará da nossa ânsia de encontrarmos a felicidade de modos rebuscadíssimos e que nos consomem imensa energia?... Talvez. E nesse caso eu pergunto: o que nos impede de sermos felizes de um modo simples?

De que mais resultará a nossa falta de paciência para aturarmos o nosso "semelhante"?...

Semelhante?...

O vídeo que partilho no início desta mensagem fala-nos, a certa altura, do dilema entre a sinceridade e a adequação ao ambiente em que nos inserimos.

Nunca encontraram alguém que, no início duma conversa com desconhecidos, começa logo por dizer "quem dera que o Benfica ganhe" e "aquele camelo do Passos Coelho"?... Isso é que é sinceridade!... E ao mesmo tempo talvez um pouco de desrespeito pela opinião alheia...

Já tive amigos a acusarem-me de falta de sinceridade. Aqui na Terceira diriam que eu era falso. E com toda a razão!

O meu problema pessoal com essa acusação não é a sua veracidade ou falta dela. O meu problema é que demonstra uma total insensibilidade face à dificílima situação em que se encontram as pessoas que são verdadeiramente diferentes.

Em muitos contextos históricos a exposição da diferença era equivalente a uma sentença imediata de morte. Hoje será talvez apenas uma sentença de ostracismo...

A minha conduta sincera seria então a de admitir perante todos que:
  • o futebol profissional é uma forma de umas pessoas ganharem dinheiro à custa de outras, que envolve doses de violência verdadeiramente brutais, e que se alimenta de um tribalismo primitivo do seu público;
  • o conteúdo dos canais de televisão resulta apenas doutra forma de umas pessoas ganharem dinheiro à custa de outras, mesmo o conteúdo dos noticiários (ou sobretudo), que envolve doses de violência ainda maiores, e que se alimenta do voyeurismo, do sentimentalismo bacôco, das nossas emoções mais límbicas;
  • quase todas as profissões à nossa volta são apenas formas de umas pessoas ganharem dinheiro à custa de outras, e que todas as pessoas que não se revoltam contra isso estão, voluntária ou involuntariamente, a ser coniventes com essa situação;
  • o modo como as pessoas estão constantemente a tentar afirmar-se através do seu currículo profissional, através do seu penteado e da sua roupa, através do seu automóvel e das férias que tiveram num lugar exótico, através da sua página de facebook e das fotos que lá colocam, são apenas demonstrações de carências afectivas, narcisismos ou arrogâncias patológicas;
  • as músicas que eles ouvem são uma merda.
A minha conduta sincera incluiria isso e muito mais, desde a decoração do interior das casas das pessoas, passando pelas próprias casas das pessoas, até à moeda única e à colocação de satélites em órbita... Até à necessidade de fundir todo o cobre gasto em estúpidas estátuas representativas de seres sanguinários que ao longo da história fizeram questão de afirmar diferenças precisamente onde elas eram menos relevantes!

O que resultaria de tamanha sinceridade?...

Enfim...

Eu tenho piedade, porque às vezes a malta não tem mesmo a mínima ideia do que faz!...

segunda-feira, 7 de novembro de 2016

Não entrego a alma...