Esses chantagistas desses trabalhadores!... Ameaçam não trabalhar se não lhes derem o que eles querem!... Onde é que já se viu?...
Mas quem é que os enfermeiros julgam que são?
Os professores devem achar que são mais do que os outros!
Os juízes são uns privilegiados!
Funcionários públicos? É só mama!
Os pilotos? Em greve? A que propósito?
Os médicos deviam era tratar as pessoas como nos seus consultórios particulares!
Acho muito bem que impeçam a greve dos enfermeiros!
Mas que poder é esse que os motoristas têm de parar um país?
Os maquinistas em greve? E as pessoas é que se lixam, né?
Os mestres da Soflusa também?
Esses sindicalistas que ganhem juízo!
Os estivadores não gostam? Então que vão para outro lado!
Também eu tive de penar muito!
Esses sindicatos novos não respeitam os acordos pré estabelecidos!
Os polícias não deviam ter direito à greve!
...
É assim, não é?...
Quem
se lixa é o mexilhão, claro! O mexilhão dos médicos, dos enfermeiros,
dos polícias, dos pilotos, dos maquinistas, dos camionistas, dos juízes, dos funcionários públicos, dos técnicos de diagnóstico, dos mestres, dos inspectores da PJ, dos trabalhadores dos CTT, dos estivadores, dos artistas, dos estudantes, dos trabalhadores dos registos... E ainda mais o
mexilhão que com maior ou menor dor de cotovelo não tem possibilidade ou
tomates para ter um sindicato, o mexilhão que se cansou de ser um
funcionário com condições de merda e teve a coragem de mudar e
transformou-se num recibo verde, o mexilhão como eu, cujas greves não
afectam ninguém, não são notícia de jornal, e logo são as únicas que
recolhem a graça do pensamento dominante, o mexilhão que nem trabalho
tem, o mexilhão que nem pensar sabe, ou não quer, e não conhece as
regras do próprio mundo onde vive, o mexilhão que acredita que só há
mexilhão abaixo de si, e acima só privilegiados, o mexilhão que queria
ser ainda mais privilegiado que esses privilegiados, para lhes poder
pagar em vingança a sua inveja e a sua mesquinhez, os Zés ninguéns desta
vida que perpetuam um oceano de mexilhões onde devia estar uma
humanidade.
O povo português devia estar todo em greve! Greve de ser português! Greve de ser povo! Greve de ser o que é e greve de simplesmente não ser!
Chantagem é agora o acto de exigir condições dignas para trabalhar.
Chantagem passará portanto a ser, igualmente, a exigência de trabalho antes do pagamento.
Que deus fez uma merda tão grande assim?...
Se ao menos fossem eles todos em greve!... Ou eu a fazer greve deles, ou duma sociedade deles!...
Mas não posso. Eles sofreram. E agora a sua solidariedade para comigo é proporcional ao meu próprio sofrimento.
Tal
como para com os enfermeiros, os juízes, os médicos, os professores, os
polícias, os pilotos, os maquinistas, os camionistas, os funcionários
públicos e quem mais vier.
Haja sofrimento então.
Seja feita a sua vontade.