(a história de quem sabe onde quer ir)
Estou fechado num espaço predominantemente metálico. Há imensas pessoas que também aqui estão presas. Posso sair, se quiser, mas isso tem um custo, o custo de ter de deambular neste universo muito próprio durante bastante tempo e de ter de aguardar em filas até poder dar mais um passo rumo ao portal. No portal despimo-nos, tiram-nos tudo, e passamos, nós e as nossas coisas, através de máquinas que nos bombardeiam com radiação à procura de algum indício de que iremos atentar contra a sua ordem das coisas.
Não quero sofrer esse custo. Prefiro ficar. Mas ficar também não é fácil. A roupa não se adequa. Para além da que não coube na mala e que vai pendurada onde puder ser, há a que trazemos no corpo, própria para os cinco graus que fazem lá fora, mas não para os vinte e cinco que fazem cá dentro. Deambula-se neste universo muito próprio. Cruzamo-nos com imensas pessoas, de todas as cores, de todas as línguas, idades, religiões... ficamos com a sensação de que está cá todo o mundo e perdemos a consciência que há um outro universo de gente distinta lá fora.
Entre estas pessoas todas há algumas muito bonitas. Muito aprumadas, muito prezadas, as formas bem definidas e a roupa a permitir que se note. Roupa limpa, geométrica, cabelos sedosos. Algumas em passada acelerada até à próxima escada rolante. Outras paradas, de pescoço dobrado e olhar para baixo, para coisas de plástico.
Ninguém quer saber de nós. Os olhares não se cruzam. Não há sorrisos. Uns têm ar aborrecido, outros têm ar pasmado... mas ninguém quer saber de nós. Somos demasiados, não faria sentido cumprimentar cada pessoa que encontramos nestes corredores. Não chegaríamos a lado nenhum... e todos nós estamos neste universo precisamente porque sabemos que queremos muito chegar a algum lado. Por isso não perdemos tempo a falar com ninguém. Como ontem ao fim da tarde o senhor que descansava junto à Ponte Mocho me perguntou, mesmo sem eu o conhecer de lado algum, se tinha subido ao miradouro de Ledesma para ver as pontes e o rio, a uns três quilómetros de distância dali, do sítio onde conversávamos.
Neste universo os estímulos são por demais. Só não te pousam a mão no corpo como quem o quer agarrar, e deslizar sobre ele, para o sentir e o fazer sentir. Mas vontade não lhes falta! Obrigam-te a ziguezaguear por jardins de odores intensíssimos e que não se cheiram no universo de lá de fora. O teu olhar salta de um ecrã brilhante e em constante movimento para aterrar numa montra onde tudo é ouro... Fujo para ecrãs dignos de Wall Street, esplanadas troantes dignas de estádios, reclamos das mais belas luzes produzidas em fábricas do outro lado do mundo.
Ontem Monleras estava lindíssima. Silêncio... e pousado nele o piar do chapim real. O pequenito rei distingue-se das outras aves por uma manchita amarela e uma pinta azul. Não brilham, nem piscam. A paisagem compunha-se das mais subtis variações de castanho, verde e cinza, sob um céu azul e branco. Uma vastidão... e nela, os pequenitos frutos do pilriteiro, por serem vermelhos, são imediatamente identificados. Tal como o pio do chapim naquele silêncio.
Aqui os estímulos entram-te pelos sentidos e instalam-se no cérebro e no corpo todo, sem dares por isso.
Tento descansar o olhar. Procuro a linha do horizonte. Mas não a encontro. Este universo metálico só tem interior. Não se vê o chão. Não se vê o céu. Já nem sabemos se afinal eles se tocam...
Deambulo. Sinto-me mal. Sinto-me estúpido. Desligado. Irreal... E, de repente, noto que já ando mais apressado. Tenho ânsia de horizonte! Afinal é lá que dizem que está a utopia!
Finalmente encontro! Um horizonte de asfalto e blocos de apartamentos encontra um céu gasto para lá das caudas dos aviões que me ficam à frente do nariz, logo depois de espessos vidros, barreiras entre universos, apenas furados aqui e ali por uma espécie de túneis do espaço-tempo, por onde entram e saem as pessoas que sabem onde querem ir.
Não era nada disto que eu queria... Agrava-se a sensação de clausura e privação. Desisto de procurar um universo mais aprazível aqui dentro e penso em criar o meu próprio universo. Procuro uma mesa. Munido de objectivo, agarro nas tralhas e arrasto-as pelos mais longos corredores. Sinto-me descobridor em caravela, solto as velas, e vou para um lado qualquer, à procura, à procura, à procura... e pum! Mais uma vidraça. Não encontro a mesa. Caravela em inversão de marcha. Se não dá para um lado, dá para outro! E vou, e vou, e vou... e pum! Mais um túnel no espaço-tempo para um universo onde, mesmo que quisesse ir, os respectivos guardiões não me permitiriam.
Agora sinto que já procurei as chaves em todo o lado, até dentro do frigorífico... Já nem me lembro que existe paz... Aquela vastidão... julgamo-nos senhores do espaço e de repente reparamos lá em cima, muito por cima de nós, pairando na maior precisão e no menor esforço, os majestosos grifos. As vacas olham para nós com o mesmo espanto com que nós olhamos os grifos. Quando ganham confiança regressam ao pasto, e nós seguimos o nosso caminho. Olhamos para cima e os grifos já não estão lá. Como é possível?... Sem um som, sem mexer uma asa, a vastidão dos céus até onde os nossos olhos alcançam... e já não estão lá!
Aqui não há mesas.
Mentira! Há mesas no estádio!... Mas tenho de comprar bilhete. Opto... porque afinal "é livre quem vive conforme as suas opções", mesmo que as possibilidades de escolha tenham sido definidas à partida por outros e não incluam nada daquilo que verdadeiramente queríamos... mas que entretanto as luzes brilhantes já nos fizeram esquecer... opto por uma baguete com umas fatias de qualquer coisa lá para dentro. Tem um nome qualquer que já esqueci, mas digno de um príncipe, e o preço está a condizer. Mesmo que um príncipe nunca comesse uma baguete que, para poder ser mordida, implicasse abrir a boca como um crocodilo, mostrando a mais bela dentadura, salpicada de magníficos pedacitos intersticiais que sobraram da mastigação anterior.
O bilhete dá-me acesso a uma mesa no estádio. Retiro da mala os pincéis para o meu universo alternativo: auscultadores bluetooth, app de mp3 no telemóvel inteligente, computador portátil, modem 4G. Dobro o pescoço, viro o olhar para baixo, para o plástico e, mesmo sem querer, entro de cabeça neste mesmo universo de onde tento fugir.
PS – E ainda há quem se vanglorie de fazer parte disto!...
sábado, 16 de novembro de 2019
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