sexta-feira, 27 de dezembro de 2019

Os pais no Natal...



No Natal os pais fazem questão de transmitir aos seus filhos a ideia do Pai Natal. É uma ideia rebuscada. O Pai Natal é um personagem que vive na imaginação colectiva de milhões de pais, mas que estes têm dificuldade em situar de modo concreto. Falta uma bíblia que unifique, ou um sistema de certificação ISO9000 que standardize para todos a história do Pai Natal.

De facto, apesar dos pais acarinharem muito esta ideia, eles não são capazes de dizer, senão para eles próprios pelo menos de forma coerente no seu colectivo, de onde é que ele vem, onde mora, quem são os seus pais, que idade tem, o que é que representa, como é que actua... As poucas características unificadoras nesta história são algo como: é um ser que só existe no Natal, já que durante o resto do ano ninguém se lembra da sua existência, é velho, é homem, tem barba branca, não é magro, vem de um local qualquer frio e mais perto do Árctico e distribui presentes. É basicamente isto. E é melhor não entrar em detalhes sobre a sua função de distribuição de presentes, a única função partilhada neste imaginário colectivo, porque senão a coisa descamba: quantos presentes distribui, se é só para as crianças ou para toda a gente, onde é que vai buscar os presentes, onde é que os entrega... tudo temas de discórdia.

Apesar da ideia do Pai Natal ser assim uma coisa de contornos gelatinosos, muitos pais esforçam-se imenso para garantir que os seus filhos acreditem nessa ideia. Fazem então coisas que não repetem em mais ocasião alguma durante o ano: brincam com os filhos ao faz de conta, vestem roupas propositadamente idiotas, entram em casa pela janela, contam histórias...

No final, ficam fascinados com o modo como os seus filhos acreditam no Pai Natal. Ficam deliciados! Descrevem às visitas as provas que possuem dessa crença dos seus filhos, cheios de orgulho!...

E isto é tudo um pouco espantoso, quando se repara bem. Na verdade, os filhos nunca têm problema em acreditar em histórias fantásticas. Pegam num pau e de repente já é uma espada, pegam numa bola de ténis e é uma cabeça, em pedrinhas e são pães, num livro aos quadradinhos e são os animais que falam, vêm um filme e ficam logo a acreditar nalgum personagem exótico que existe sabe-se lá onde.
Ainda menos difícil é fazer os filhos acreditar em qualquer coisa que os pais lhes digam. Se os pais lhes falarem da existência do João Pestana, que vem atirar areia aos olhos das crianças quando começa a ser tarde, e elas começam então a esfregar os olhos e a bocejar, as crianças acreditam. Se lhes contarem que há por aí um Homem do Saco que pega nas meninas e meninos que andam perdidos na rua, longe dos pais, e os levam consigo dentro do saco para sei lá onde, elas acreditam.

Muito para além disso, se os pais disserem aos filhos que o mundo é plano, que Deus (qualquer que seja) existe, que o melhor clube do mundo é o Barcelona, que o melhor na vida é estar calado e continuar a trabalhar, que a felicidade é casar e ter casa e carro e filhos e um bom emprego e um bom nome, os filhos vão acreditar em tudo, sem pestanejar. Porque os filhos são assim, ingénuos, vêm ao mundo pouco apetrechados para os jogos manhosos dos adultos... E nesse sentido até é bom que os adultos os iniciem nessas andanças, se não queremos que as crianças sejam ingénuas a vida toda e continuem a acreditar em coisas que os prejudicam a vida toda.

Portanto, qual é o espanto de as crianças acreditarem no Pai Natal?... E qual é a beleza disso?... É belo que as crianças acreditem no Homem do Saco quando os adultos lhes garantem que esse personagem existe?... Então porque é que acreditar no Pai Natal é belo?... Será pelas ideias lindas que acompanham essa crença?... Quais?... Que as crianças bem comportadas recebem mais presentes que as mal comportadas?... A sério?...

Todo o fenómeno pode ser entendido se percebermos que as crianças são, em boa verdade os pais.

Fui a esse manancial de informação mal amanhada que é a Internet à procura de exemplos de textos que atribuam importância à crença no Pai Natal. Desafio-vos a fazerem o mesmo e a relerem esses textos na perspectiva de que os pais é que são as crianças. Tudo ficará mais claro, prometo!

Esbarrei logo num texto que se intitula “7 razões pelas quais acreditar no Pai Natal beneficia os seus filhos”. Vejamos então quais são essas sete razões:

  1. Boas Memórias. Acreditar no Pai Natal cria boas memórias e permite depois reviver essas boas memórias. Bom... isto é uma treta! Muitas crianças apanham um susto de morte quando vêem pela primeira vez um grande personagem barbudo e barrigudo a fazer de Pai Natal. Quem tem as boas memórias guardadas são os pais. E são eles que gostam de as reviver. E, de resto, se as boas memórias do Natal são a presença da figura do Pai Natal, isso diz alguma coisa acerca da riqueza do Natal desses pais.
  2. Imaginações mais fortes. Pois... para os pais. Os pais, coitadinhos, é que atrofiaram a máquina da imaginação, e tentam atabalhoadamente exercitá-la no Natal, inventando histórias para tentar conciliar as extremidades inconciliáveis dessa narrativa. Os filhos, por seu turno, nunca tiveram dificuldade em imaginar. Os pais é que, infelizmente (e digo isto com sentimento), nunca foram capazes de acompanhar os filhos nas suas viagens surreais.
  3. Tradição. E lá vamos nós para a treta da conversa acerca da importância das tradições... Vamos tentar sintetizar: existem ritos, actividades com regras definidas que se repetem de forma previsível no tempo e numa qualquer comunidade. Esses ritos dão às pessoas uma sensação de pertença, de sentido, blá blá blá. O que quem fala destas coisas parece esquecer sistematicamente é que ritos há muitos e para todos os gostos, que é quase impossível viver sem os ter, e que eles não são necessariamente bons ou maus em si mesmos. Dependendo no nosso juízo, alguns podem ser bons e outros maus. E, mais do que isso, um ritual que é extinto é quase sempre substituído por outro qualquer. As crianças são livros abertos. Ainda não foram iniciadas em quaisquer ritos. E portanto irão receber dos pais e da comunidade aquilo que os pais e a comunidade lhes quiserem dar. E é assim que irão criar a sua ideia própria acerca das “tradições”, que se não forem umas, serão outras. No momento em que são crianças, o Pai Natal não é para eles tradição alguma. O Pai Natal só é uma tradição para os pais.
  4. Motivação para bom comportamento. Se a motivação das crianças para se comportarem bem é poderem receber prémios no final, mal andamos em termos de formação de valores. Porque, para quem ainda não se apercebeu do efeito dos prémios, o valor que eles transmitem é de que vale tudo, desde que se consiga o prémio, e que aquilo que se faz no entretanto não tem valor em si mesmo, só o prémio tem valor em si mesmo. Neste ponto não se trata de os pais serem as crianças, trata-se de os pais serem educadores medíocres, muitas vezes exaustos de energia, de recursos e de fundamentos.
  5. Desenvolvimento de uma postura crítica. Diz-se que as crianças vão tender a testar a história, para tentar descobrir a verdade... Bom, isso em parte não é verdade, e em parte é irrelevante. As perguntas surgem naturalmente na cabeça das crianças quando partes da história parecem não encaixar com o conhecimento que elas têm da realidade. Se elas começam a imaginar o Pai Natal a voar num trenó e depois reparam que os trenós não voam... então formulam uma questão. Se os amigos da escola lhe dizem que o Pai Natal não existe, então formulam uma dúvida. Mas se não existir motivo para duvidarem, continuarão a acreditar tranquilamente durante a vida toda. Tal como os adultos acreditam que o dinheiro é o produto do seu trabalho (mesmo que neste caso os adultos tenham algumas razões para duvidar... mas os adultos são muito bons a ignorar razões). Por outro lado, é irrelevante o desenvolvimento do pensamento crítico das crianças a tentar descobrir a verdade acerca do Pai Natal, porque isso é apenas um episódio e as crianças desenvolvem efectivamente o seu pensamento crítico numa série infindável de episódios novos todos os dias. Novamente, parece-me que o que está em causa para os pais aqui é serem eles próprios a jogar o jogo do gato e do rato, o jogo de conseguir responder às dúvidas das crianças mantendo a sua crença durante o máximo tempo possível! Quase como se existisse um troféu para os pais que conseguem manter o segredo (ou a mentira) até os filhos serem adultos!
  6. Fortalecimento (ou lá como se traduz “empowerment”) das crianças. Diz-se que as crianças que entretanto percebem a treta acerca do Pai Natal passam a fazer parte da equipa dos pais, com a responsabilidade de manter o mito nos que ainda acreditam. É claro que os pais é que ficam felizes de colherem os frutos de anos e anos de tanto esforço: finalmente conseguiram criar um ser igual a eles, que irá engrossar a sua equipa!
  7. Enfatizar a alegria de dar. Bom, isto é simplesmente uma mentira e uma estupidez. Aquilo que é dado no Natal é-o independentemente da crença ou não no Pai Natal. Não conheço família alguma onde as coisas que são dadas no Natal mudem no momento em que as crianças deixam de acreditar no Pai Natal. A estupidez deste ponto é que o Pai Natal, ao centrar em si mesmo a glória da dádiva, retira essa glória a todas as pessoas que efectivamente a merecem!

Há que desculpar os pais pela sua falta de destreza a brincar com os filhos e a criar um imaginário colectivo de um mundo melhor... para não referir a sua inabilidade em lutar por isso... Mas este último ponto é aquele onde encontro mais dificuldade em desculpar a sua atitude. De facto, a magia do Natal, se existir, está no querermos bem uns aos outros, no acreditarmos na paz, está na dádiva não apenas material, mas do nosso tempo, do nosso calor, da nossa atenção (mesmo que depois haja o resto do ano...).

Tenho uma entrada no meu blogue dedicada ao disco de vinil “Os operários do Natal”. Todas as suas músicas nos contam, preto no branco, como as pessoas à nossa volta se dedicam e entregam o seu amor uns aos outros. Essa é a beleza do Natal!... E os pais, em vez de assumirem e transmitirem isso mesmo aos seus filhos, como a coisa mais bela de que somos capazes, preferem fazer de conta que não foram eles, afinal eles são os sacanas do costume, e foi tudo obra desse personagem enigmático chamado Pai Natal.

A terminar, gostaria de deixar esta questão: porque é que as crianças, depois de descobrirem que foram enganadas durante tantos anos, adoptam os mesmos comportamentos que os pais e fazem o mesmo aos seus filhos?... Soa-vos a alguma coisa?...

Resultado de imagem para praxe académica pai natal"

terça-feira, 24 de dezembro de 2019

Merry Christmas, you suckers...


(Paddy Roberts - 1962)


(tradução em baixo)

Merry Christmas, you suckers, you miserable men.
That old festive season is with you again.
You'll be spending your money on cartloads of junk
And from here 'till New Year you'll be drunk as a skunk.

Merry Christmas, you suckers. It's perfectly clear
That you fall for it all a bit sooner each year.
If it goes on like this, you will find pretty soon
You're singing "White Christmas" as early as June.

The Christmas card racket
would cost you a packet.
Now there’s Ecards,an annual blight
The seasonal tweet
makes cards obsolete
And saves loads of cash if you’re tight.

You'll be taking the kids 'round the multiple stores
To be frightened to death by some old Santa Claus.
Then it's parties with spirits and "vino" and beer.
Merry Christmas, you suckers, and a Happy New Year!

Merry Christmas, you suckers, you bleary-eyed lot.
You'll never get rid of that headache you've got.
But I hope you'll feel splendid. you certainly should,
With your stomachs distended with turkey and "pud."

Merry Christmas, you suckers. Jump into your cars,
Roar off to your neighbors to "sink a few jars."
Though your vision is double, just keep smiling through.
There are others in trouble a lot worse than you.

Beyond any question,
Acute indigestion
Will plague you and make you unwell.
You won't take the warning.
You'll wake up each morning
Undoubtedly feeling like hell.

But, stick to it, suckers. Go swallow a pill,
For this is the season of peace and good will
While we patiently wait for that nuclear blast.
Merry Christmas, you suckers. It may be your last.



(tentativa de tradução às três pancadas)

Feliz Natal, seus idiotas, seus miseráveis.
Esta velha época festiva está novamente convosco.
Ireis gastar o vosso dinheiro em carradas de tralha
e daqui ao ano novo estareis podres de bêbedos.

Feliz Natal, seus idiotas. É perfeitamente claro
que vocês caem nessa um pouco mais cedo a cada ano
Se continuarem assim, irão descobrir em breve
que estarão a cantar "White Chirstmas" em Junho.

A negociata dos cartões de Natal
custa-te uma fortuna
Cada época parece maior
Os postais são tão giros
mas não têm nada a ver
com o assunto em questão.

Irão levar os miúdos às lojas
para se assustarem de morte por um qualquer Pai Natal
Depois há festas com vinho e licores e cervejas
Feliz Natal, seus idiotas, e um feliz ano novo!

Feliz Nata, seus idiotas, que não enxergam a ponta dum chavelho
nunca se livrarão dessa dor de cabeça
mas espero que se sintam estupendos. Sem dúvida que deveriam
com os vossos estômagos distendidos com perú e bolo rei.

Feliz Natal, seus idiotas. Saltem para os vossos carros
Acelerem até aos vossos vizinhos para afundar mais uns copos
Apesar de já verem a dobrar, continuem a sorrir
há outros em muito pior estado que vós.

Sem dúvida
indigestão aguda
irá afligir-vos e fazer-vos sentir mal
Não ouvireis o conselho
Acordareis todas as manhãs
inquestionavelmente no inferno

Mas aguentem-se, idiotas. Engulam um comprimido,
Pois esta é a época da paz e da boa vontade
Enquanto esperamos pela explosão nuclear
Feliz Natal, seus idiotas. Poderá ser o vosso último.


------------------------------------------

Complemento:

A minha loucura...

Porque metade de mim é o que grito.
Mas a outra metade é silêncio.

Poema "metade" de Oswaldo Montenegro:


domingo, 22 de dezembro de 2019

Lareiras e salamandras...

Resultado de imagem para salamandra lareira"

Chegou o Inverno. Esperamos frio, embora hoje em dia já não se saiba bem o que esperar... Com o frio procuramos soluções para nos aquecermos. E entre elas estão as soluções que passam pela queima de madeira, geralmente lareiras e salamandras, mais ou menos sofisticadas.

Há quem acredite que o aquecimento através da queima de madeira é melhor do que outros métodos de aquecimento, num sentido lato, porque é natural. Mas não é. E neste artigo eu pretendo desmistificar um pouco este assunto.

Sem entrar em grandes detalhes sobre o processo de combustão, podemos imaginar que ele é um processo que requer um combustível, neste caso a madeira, um comburente, neste caso o oxigénio do ar, e que produz gases, cinzas e calor.

A combustão liberta energia, através de calor, de duas formas: condução/convecção e radiação. A condução e convecção aquece os gases libertados e o ar envolvente e forma uma corrente de ar que será ascendente, se não for forçada. Essa corrente de ar é necessária para que a combustão se mantenha, pois é desse modo que o comburente/oxigénio é renovado. Se tentarmos impedir a corrente de ar gerada pela combustão, a chama diminui e pode mesmo apagar-se.

A radiação emite calor como uma lâmpada emite luz, ou seja, em todas as direcções, através do ar, e à distância. Quando estamos num ambiente frio, de frente para a madeira a arder, sentimos o calor na parte da frente e o frio na parte de trás. Mas basta-nos colocar uma mão à frente da cara e deixaremos de sentir o calor na cara, do mesmo modo que a mão tapa a luz que nos ofusca.

Resultado de imagem para fireplace efficiency"

A corrente de ar gerada na combustão renova, conforme vimos, o oxigénio necessário à sua manutenção. Mas o que é que acontece aos gases quentes aí gerados? Ora, toda a gente sabe que os gases quentes saem pela chaminé para o exterior da casa.

Aquilo de que poucos se lembram é que todos os gases quentes que saem pela chaminé têm de ser substituídos por outros quaisquer gases no interior da casa. A saída dos gases pela chaminé cria uma baixa pressão no interior da casa. Consequentemente, a casa funciona como um aspirador do ar do exterior. E assim, o ar frio do exterior vai entrar por todas as frinchas disponíveis nas portas, janelas e outros orifícios. Esse ar frio vai contribuir para arrefecer a casa.

Por outro lado, o ar que alimenta a combustão na lareira ou salamandra não é ar frio que acabou de chegar do exterior. Antes é ar quente, que está no ambiente contíguo à lareira ou salamandra. Portanto, não só os gases quentes da combustão fazem com que o ar frio do exterior penetre na habitação, mas também contribuem para que o ar quente seja expelido, juntamente com os gases da combustão, através da chaminé.

O efeito líquido da energia libertada pela lareira e das correntes de ar geradas pode até ser negativo, resultando que a lareira contribua mais para arrefecer a casa do que para a aquecer!... Mas quem está nessas circunstâncias vai garantir que isso não é verdade, sobretudo porque quando a lareira está acesa, as pessoas se mantêm junto a ela. No entanto, as outras divisões da casa podem estar a ficar mais frias à custa disso!...

Sabendo disso, quem se preocupa com a eficiência energética (o que inclui uma proporção crescente de consumidores e consequentemente de produtores de lareiras e salamandras) tenta desenvolver métodos para aumentar a eficiência energética deste tipo de aquecedores.

Os recuperadores de calor, criados para esse fim, podem ser muito ou pouco sofisticados, mas basicamente fazem todos as mesmas duas coisas: limitam a corrente de ar que flui para a combustão e maximizam a transferência de calor dos gases da chaminé para o interior da habitação, antes de finalmente serem libertados no exterior.

A limitação da corrente de ar que sustenta a combustão é conseguida basicamente através da inserção da zona de chama num cubículo hermético com aberturas pequenas e reguláveis. O efeito evidente desta medida é que a combustão se torna mais lenta. Mas não só a combustão se torna mais lenta, como acaba por ocorrer num ambiente pobre em oxigénio, e isso tem consequências prejudiciais, conforme veremos mais adiante. Infelizmente, há ainda um terceiro efeito, que é a limitação da transferência de calor por radiação. De facto, a radiação emitida pela combustão é interceptada pelo material que constitui o cubículo onde a zona de chama foi inserida. Felizmente este efeito não é geralmente muito relevante, uma vez que os materiais utilizados na parte exposta da lareira ou salamandra são escolhidos de modo a permitir a passagem de grande parte da radiação ou a emissão de nova radiação.

Acerca da emissão de nova radiação, há um assunto que é muito relevante e muitas vezes é negligenciado pelos vendedores, instaladores e utilizadores de salamandras. As salamandras são, nada mais nada menos, do que lareiras com recuperadores de calor. A limitação da corrente de ar é conseguida fechando a chama no interior de um cubículo, muitas vezes de ferro fundido, e a transferência de calor dos gases de combustão para o interior da casa, antes de serem expelidos para o exterior, é conseguida através de longas chaminés expostas no interior da casa. Ora, o objectivo destes grandes tubos que constituem a chaminé é, para além de gerar uma boa "tiragem", mesmo esse: o de transmitir calor. Esse calor é transmitido por condução/convecção, mas também por radiação. Mas se a chaminé foi construída em aço inoxidável ou outro metal prateado, polido, espelhado... então a radiação emitida pela chaminé baixa para praticamente zero! Ou seja, as chaminés prateadas acabam por expelir os gases para o exterior sem deles ter extraído o máximo calor possível. Para evitar isso, há que substituir ou pintar a chaminé, de modo a fazer com que o seu aspecto exterior seja preto, tal como o material da própria salamandra.

A recuperação do calor dos gases de combustão, antes de serem expelidos para o exterior, pode assumir muitas formas: pode incluir permutadores de calor ar-ar com ventilação forçada, pode incluir permutadores de calor ar-água e um sistema que depois faz circular a água quente pela casa... Mas a eficiência energética destes sistemas pode medir-se sempre do mesmo modo, nomeadamente através da temperatura dos gases no momento em que são expelidos para o exterior, na extremidade da chaminé. Quanto menos quentes os gases saírem, mais do seu calor foi transferido para o interior da casa e mais eficiente será a salamandra ou lareira.

No entanto, e este ponto é importante, os gases têm de ser expelidos sempre quentes, caso contrário não haverá corrente de convecção a alimentar a chama, e eles têm de ser substituídos no interior da habitação por gases frios que vêm do exterior. A eficiência máxima, nestes casos, será conseguida se o ar frio que é sugado do exterior for conduzido directamente para a zona da chama através de uma conduta própria, ou seja, se a alimentação de ar para a lareira ou salamandra for feita directamente do exterior, através de um tubo próprio para esse efeito.

Em geral, portanto, a eficiência energética das lareiras e salamandras não é muito elevada.

Comparemos, se quisermos, com a eficiência energética de um aquecedor normal. A eficiência de transformação da energia consumida em calor que fica no interior da casa é de 100%.

Teremos, se quisermos ser honestos, de considerar a eficiência energética na produção e transporte da própria energia eléctrica. No entanto, na senda da honestidade, teremos também de considerar a eficiência energética na produção e transporte do material combustível (lenha ou derivados) utilizado na lareira ou salamandra.

Imaginemos que a produção de energia eléctrica é conseguida através da queima de carvão, em centrais termoeléctricas. Nesse caso, a eficiência energética da transformação do carvão na central é muito superior à eficiência energética da queima do carvão numa lareira. Basta pensarmos que as centrais termoeléctricas são enormes, estão quase sempre ligadas e são construídas empregando toda o conhecimento do estado da arte no que respeita a eficiência energética.

Mas grande parte da energia eléctrica que consumimos não é, felizmente, produzida em centrais termoeléctricas. E isso contribui para que esta energia possa ser um pouco mais limpa do que a que é produzida em centrais termoeléctricas.

O transporte da energia eléctrica implica perdas de eficiência, claro. Mas pensemos no que é necessário fazer até termos o combustível em nossas casas, à espera de ser queimado. O material precisa de ser recolhido (atráves de corte ou outro método), embalado e transportado. E tudo isso implica perdas de energia.

Ou seja, podemos entrar aqui em grandes discussões sobre o que é mais eficiente ou menos em termos energéticos, aquilo que tem mais impacto ou menos em termos de emissão de carbono para a atmosfera, ou medidas afins sobre a "amizade" ao "meio ambiente". As respostas nunca serão fáceis, se quisermos ser exaustivos. As barragens têm grandes impactos ambientais, as eólicas custam imenso a ser produzidas e instaladas, o corte da madeira exige energia só por si, etc...

Quem é fã de soluções mais naturais poderá ter em mente o caso "natural" em que o indígena vai de machadinha colher uns galhos ao mato que depois arde na sua lareira. No entanto, a produção de material combustível para lareiras é uma indústria em si mesma, muito distante desse conceito "natural" das coisas. Acreditar que essa indústria é boa para o ambiente é o mesmo que acreditar que a indústria da pasta de papel é boa para o ambiente, simplesmente porque à sua conta são plantadas enormes extensões de eucaliptos que, afinal, são árvores.

Temos que nos desenganar... em relação a isto e em relação a muitas coisas. Por exemplo, acerca do conceito de "floresta". Uma plantação de árvores, sejam elas quais forem, não é uma floresta. Ou não devia ser considerado uma floresta. Ou então, precisamos de outros termos para não nos confundirmos acerca das coisas. Todo o discurso oficial que podemos ouvir nos "media" nos fala de florestas quando se refere a plantações de pinheiros, eucaliptos ou outras árvores. Deixo ao vosso critério investigar as potenciais diferenças entre uma plantação e uma floresta não tocada pelo homem (se isso existir).

Portanto, provavelmente as lareiras e salamandras são energeticamente menos eficientes que um simples aquecedor.

------------------------------------

Segundo ponto: o trabalho que dão.

Creio que este ponto é consensual: as lareiras e salamandras dão muitíssimo mais trabalho a instalar e a manter do que um simples aquecedor eléctrico. Não se podem mover, obrigam-nos a operações de limpeza de cinzas e chaminés em posições não muito cómodas, implicam o transporte do material combustível até elas, quando estão ligadas implicam o nosso cuidado permanente... Enfim, são uma trabalheira!

------------------------------------

Terceiro ponto: os efeitos no ambiente.

A discussão sobre a eficiência energética já implica algum efeito sobre o meio ambiente. Nesse ponto também se abordou, embora superficialmente, a questão das plantações de árvores necessárias à produção de material combustível (alguma relação com os incêndios?...).

No entanto, os problemas ambientais gerados pelas lareiras e salamandras não se situam apenas a montante.

Os gases de combustão gerados pelas lareiras e salamandras são muitos e alguns são muito tóxicos!

Todas as combustões têm potencial para gerar gases tóxicos (aliás, tudo o que é demais é tóxico, mesmo o oxigénio). Mas as combustões das lareiras e salamandras são as piores, por dois motivos.

Em primeiro lugar, os combustíveis utilizados não são muito puros. Um hidrocarboneto, por exemplo uma molécula de butano (C4H10) ao arder completamente na presença de oxigénio gera moléculas de água (H2O) e de dióxido de carbono (CO2). No entanto, os materiais utilizados como combustível nas lareiras e salamandras não são tão puros como o gás butano que sai das garrafas. Em vez disso contém imensas impurezas, isto é, outras substâncias e elementos químicos. Assim, o resultado da sua combustão gera também óxidos de azoto e óxidos de enxofre, entre outros. Estes óxidos têm o potencial de causar sérios problemas de saúde nos humanos e demais animais, mas também de contribuir para a acidificação das chuvas.

Além disso, a combustão de materiais impuros gera também uma grande quantidade de partículas sólidas em suspensão e um conjunto potencial de outros poluentes, entre os quais dioxinas. Deixo um link sobre estes últimos:
https://en.wikipedia.org/wiki/Dioxins_and_dioxin-like_compounds

Em segundo lugar, a combustão nas lareiras e salamandras ocorre geralmente a temperaturas inferiores às temperaturas que ocorrem por exemplo numa caldeira de uma central termoeléctrica, e em ambientes menos ricos em oxigénio. A consequência inevitável disso é que a combustão é geralmente incompleta. E isso gera os seus próprios poluentes, entre os quais o monóxido de carbono.

De facto, o monóxido de carbono é um gás que pode ser queimado, na presença de oxigénio, para produzir dióxido de carbono. Mas se a temperatura for baixa e/ou não existir suficiente oxigénio, o monóxido de carbono não se transforma.

Repare-se que os recuperadores de calor têm por objectivo precisamente a queima mais lenta, a menor temperatura e com menos afluxo de ar!

É sobejamente conhecido o problema das intoxicações mortais com monóxido de carbono. A questão é que mesmo que a ventilação do espaço interior e o sistema de exaustão estejam a funcionar em pleno, o monóxido de carbono não desaparece: apenas é transportado para o exterior da habitação!

O resultado do que acabou de ser dito pode ser sentido na pele, e nos pulmões, por quem viaja numa noite fria para uma qualquer aldeia recôndita no fundo de um vale. O ar frio é mais denso e tende a descer. Durante a noite, na ausência do aquecimento solar que provoca correntes convectivas, o ar frio desce da montanha e acumula-se no fundo dos vales, podendo gerar-se inversões térmicas, isto é, situações em que o ar aquece com a altitude (ao contrário do que é mais normal). Um dos efeitos das inversões térmicas é o aprisionamento dos gases nessa câmara de ar frio.

Assim, nessas noites frias de inverno, as partículas sólidas e gases gerados nas lareiras das casas ficam aprisionados no fundo do vale, criando uma camada de névoa sobre a aldeia. Quem lá chega de carro ficará provavelmente feliz ao abrir a porta e sentir o cheiro à lareira... No entanto, em termos de saúde e ambientais, o odor agradável tem um revés tremendo.

Deixo apenas uma de muitas possíveis páginas na Internet a abordar este assunto:
https://www.nrcan.gc.ca/energy-efficiency/energy-efficiency-homes/combustion-gases-your-home-things-you-should-know-about-combustion-spillage/18639

-----------------------------

Quarto ponto: as bombas de calor.

Um aquecedor transforma a energia que lhe é fornecida (química, no caso da lareira, eléctrica no caso de um aquecedor eléctrico) em calor. A eficiência de um aquecedor é máxima (100%) quando o aquecedor transforma 1 unidade de energia em 1 unidade de calor que fica no interior da habitação.

Uma bomba de calor funciona de modo bastante distinto. As bombas de calor utilizam a energia não para aquecer, mas antes para transferir energia térmica de um lugar para outro. Se o conceito parece difícil de apreender, pensemos num frigorífico. O frigorífico arrefece o seu interior, transferindo o calor do lado de dentro para o lado de fora. Uma vez no lado de fora, o calor é dissipado na serpentina que se encontra geralmente na parte de trás do frigorífico. Assim, um frigorífico acaba por aquecer a sala onde se encontra. E se perguntarmos como é que aquece, a resposta é (em parte) que transfere calor do interior para o exterior. Talvez possa parecer estranho que o frigorífico vá buscar calor precisamente ao local que está mais frio, para o transferir para o local que está mais quente, mas é exactamente isso que ele faz.

Um ar condicionado faz exactamente o mesmo: no calor do Verão transfere a energia térmica do interior da casa (que está mais fria) para o exterior (que está mais quente).

No frio do Inverno é possível colocar estes mecanismos a recolher o calor no exterior da casa para o depositar no interior da casa.

A grande vantagem deste método sobre os aquecedores tradicionais é que enquanto nestes últimos uma unidade de energia transforma-se numa unidade de calor, nas bombas de calor uma unidade de energia pode transformar-se em mais de seis unidades de calor. Efectivamente, dependendo da qualidade do aparelho em causa, é fácil encontrar no mercado bombas de calor que são cinco vezes mais eficientes que um aquecedor tradicional.

Qual é a contrapartida?... Tem de haver um lado negro, não?... Não, na verdade não há lado negro. As bombas de calor (por exemplo ares condicionados utilizados para aquecimento) são significativamente mais caros de instalar e manter do que um aquecedor eléctrico simples. No entanto, não são necessariamente mais caros de instalar que uma lareira ou uma salamandra. E como vantagens são mais fáceis e baratos de manter, energeticamente muito mais eficientes, menos poluentes, menos perigosos e ligam-se e desligam-se premindo um botão.

-----------------------------

Quinto e último ponto: what's the point?...

As lareiras e salamandras são aparentemente mais simples, mais naturais e mais agradáveis... Mas sê-lo-ão mesmo?...

Na verdade, suspeito fortemente que dentro de cada homo sapiens existe um pirómano. Nós aparentemente gostamos do fogo. E gostamos de gostar do fogo. Por exemplo, rejeitamos o cheiro de muitos fumos, mas aprendemos a gostar do cheiro do fumo da lareira, mesmo que nos faça mal à saúde. Gostamos da cor das chamas, entre o vermelho e o amarelo, gostamos do dançar das chamas, acarinhamos a ideia nos agregarmos em torno de um pequeno sol (mesmo que o sol funcione de forma muito diferente).

E é assim que ao longo da vida tenho encontrado pessoas que, quando confrontadas com os dados que atrás exponho, tentam justificar perante si próprias e os outros a sua opção pelo aquecimento através de uma lareira ou uma salamandra. Mas não deviam precisar de grandes esforços, porque a justificação é simples: nós optamos pelas lareiras e pelas salamandras porque gostamos do fogo! Não é porque são mais baratas, mais simples, mais seguras, mais amigas do ambiente ou seja o que for. É porque nós gostamos do fogo.

Dito isto, eu acredito que devemos ser responsáveis pela nossa casa, num sentido lato, e assim devemos informar-nos sobre as coisas e a partir daí tomarmos as decisões que acharmos mais convenientes.

Entre elas está sempre também a opção de construir casas com melhor isolamento e com permutadores de calor ar-ar, vestir roupa mais quente, beber líquidos quentes e ser menos sedentário. Mesmo que eu próprio, para escrever este texto, tenha de ter estado sentado, parado, durante umas horas...


quinta-feira, 12 de dezembro de 2019

É assim na vida...


Gostávamos muito de doce de framboesa
e deram-nos um prato com mais doce de framboesa
do que era costume
mas
a nossa criada e a nossa tia-avó no doce de framboesa
para nosso bem
porque estávamos doentes
esconderam colheres do remédio
que sabia mal
o doce de framboesa não sabia à mesma coisa
e tinha fiapos brancos
isso aconteceu-nos uma vez e chegou
nunca mais demos pulos por ir haver
doce de framboesa à sobremesa
nunca mais demos pulos nenhuns
não podemos dizer
como o remédio da nossa infância sabia mal!
como era doce o doce de framboesa da nossa infância!
ao descobrir a mistura
do doce de framboesa com o remédio
ficámos calados
depois ouvimos falar da entropia
aprendemos que não se separa de graça
o doce de framboesa do remédio misturados
é assim nos livros
é assim nas infâncias
e os livros são como as infâncias
que são como as pombinhas da Catrina
uma é minha
outra é tua
outra é de outra pessoa

Adília Lopes
1988
in Obra, Mariposa Azul, 2000