No Natal os pais fazem questão de transmitir aos seus filhos a ideia do Pai Natal. É uma ideia rebuscada. O Pai Natal é um personagem que vive na imaginação colectiva de milhões de pais, mas que estes têm dificuldade em situar de modo concreto. Falta uma bíblia que unifique, ou um sistema de certificação ISO9000 que standardize para todos a história do Pai Natal.
De facto, apesar dos pais acarinharem muito esta ideia, eles não são capazes de dizer, senão para eles próprios pelo menos de forma coerente no seu colectivo, de onde é que ele vem, onde mora, quem são os seus pais, que idade tem, o que é que representa, como é que actua... As poucas características unificadoras nesta história são algo como: é um ser que só existe no Natal, já que durante o resto do ano ninguém se lembra da sua existência, é velho, é homem, tem barba branca, não é magro, vem de um local qualquer frio e mais perto do Árctico e distribui presentes. É basicamente isto. E é melhor não entrar em detalhes sobre a sua função de distribuição de presentes, a única função partilhada neste imaginário colectivo, porque senão a coisa descamba: quantos presentes distribui, se é só para as crianças ou para toda a gente, onde é que vai buscar os presentes, onde é que os entrega... tudo temas de discórdia.
Apesar da ideia do Pai Natal ser assim uma coisa de contornos gelatinosos, muitos pais esforçam-se imenso para garantir que os seus filhos acreditem nessa ideia. Fazem então coisas que não repetem em mais ocasião alguma durante o ano: brincam com os filhos ao faz de conta, vestem roupas propositadamente idiotas, entram em casa pela janela, contam histórias...
No final, ficam fascinados com o modo como os seus filhos acreditam no Pai Natal. Ficam deliciados! Descrevem às visitas as provas que possuem dessa crença dos seus filhos, cheios de orgulho!...
E isto é tudo um pouco espantoso, quando se repara bem. Na verdade, os filhos nunca têm problema em acreditar em histórias fantásticas. Pegam num pau e de repente já é uma espada, pegam numa bola de ténis e é uma cabeça, em pedrinhas e são pães, num livro aos quadradinhos e são os animais que falam, vêm um filme e ficam logo a acreditar nalgum personagem exótico que existe sabe-se lá onde.
Ainda menos difícil é fazer os filhos acreditar em qualquer coisa que os pais lhes digam. Se os pais lhes falarem da existência do João Pestana, que vem atirar areia aos olhos das crianças quando começa a ser tarde, e elas começam então a esfregar os olhos e a bocejar, as crianças acreditam. Se lhes contarem que há por aí um Homem do Saco que pega nas meninas e meninos que andam perdidos na rua, longe dos pais, e os levam consigo dentro do saco para sei lá onde, elas acreditam.
Muito para além disso, se os pais disserem aos filhos que o mundo é plano, que Deus (qualquer que seja) existe, que o melhor clube do mundo é o Barcelona, que o melhor na vida é estar calado e continuar a trabalhar, que a felicidade é casar e ter casa e carro e filhos e um bom emprego e um bom nome, os filhos vão acreditar em tudo, sem pestanejar. Porque os filhos são assim, ingénuos, vêm ao mundo pouco apetrechados para os jogos manhosos dos adultos... E nesse sentido até é bom que os adultos os iniciem nessas andanças, se não queremos que as crianças sejam ingénuas a vida toda e continuem a acreditar em coisas que os prejudicam a vida toda.
Portanto, qual é o espanto de as crianças acreditarem no Pai Natal?... E qual é a beleza disso?... É belo que as crianças acreditem no Homem do Saco quando os adultos lhes garantem que esse personagem existe?... Então porque é que acreditar no Pai Natal é belo?... Será pelas ideias lindas que acompanham essa crença?... Quais?... Que as crianças bem comportadas recebem mais presentes que as mal comportadas?... A sério?...
Todo o fenómeno pode ser entendido se percebermos que as crianças são, em boa verdade os pais.
Fui a esse manancial de informação mal amanhada que é a Internet à procura de exemplos de textos que atribuam importância à crença no Pai Natal. Desafio-vos a fazerem o mesmo e a relerem esses textos na perspectiva de que os pais é que são as crianças. Tudo ficará mais claro, prometo!
Esbarrei logo num texto que se intitula “7 razões pelas quais acreditar no Pai Natal beneficia os seus filhos”. Vejamos então quais são essas sete razões:
- Boas Memórias. Acreditar no Pai Natal cria boas memórias e permite depois reviver essas boas memórias. Bom... isto é uma treta! Muitas crianças apanham um susto de morte quando vêem pela primeira vez um grande personagem barbudo e barrigudo a fazer de Pai Natal. Quem tem as boas memórias guardadas são os pais. E são eles que gostam de as reviver. E, de resto, se as boas memórias do Natal são a presença da figura do Pai Natal, isso diz alguma coisa acerca da riqueza do Natal desses pais.
- Imaginações mais fortes. Pois... para os pais. Os pais, coitadinhos, é que atrofiaram a máquina da imaginação, e tentam atabalhoadamente exercitá-la no Natal, inventando histórias para tentar conciliar as extremidades inconciliáveis dessa narrativa. Os filhos, por seu turno, nunca tiveram dificuldade em imaginar. Os pais é que, infelizmente (e digo isto com sentimento), nunca foram capazes de acompanhar os filhos nas suas viagens surreais.
- Tradição. E lá vamos nós para a treta da conversa acerca da importância das tradições... Vamos tentar sintetizar: existem ritos, actividades com regras definidas que se repetem de forma previsível no tempo e numa qualquer comunidade. Esses ritos dão às pessoas uma sensação de pertença, de sentido, blá blá blá. O que quem fala destas coisas parece esquecer sistematicamente é que ritos há muitos e para todos os gostos, que é quase impossível viver sem os ter, e que eles não são necessariamente bons ou maus em si mesmos. Dependendo no nosso juízo, alguns podem ser bons e outros maus. E, mais do que isso, um ritual que é extinto é quase sempre substituído por outro qualquer. As crianças são livros abertos. Ainda não foram iniciadas em quaisquer ritos. E portanto irão receber dos pais e da comunidade aquilo que os pais e a comunidade lhes quiserem dar. E é assim que irão criar a sua ideia própria acerca das “tradições”, que se não forem umas, serão outras. No momento em que são crianças, o Pai Natal não é para eles tradição alguma. O Pai Natal só é uma tradição para os pais.
- Motivação para bom comportamento. Se a motivação das crianças para se comportarem bem é poderem receber prémios no final, mal andamos em termos de formação de valores. Porque, para quem ainda não se apercebeu do efeito dos prémios, o valor que eles transmitem é de que vale tudo, desde que se consiga o prémio, e que aquilo que se faz no entretanto não tem valor em si mesmo, só o prémio tem valor em si mesmo. Neste ponto não se trata de os pais serem as crianças, trata-se de os pais serem educadores medíocres, muitas vezes exaustos de energia, de recursos e de fundamentos.
- Desenvolvimento de uma postura crítica. Diz-se que as crianças vão tender a testar a história, para tentar descobrir a verdade... Bom, isso em parte não é verdade, e em parte é irrelevante. As perguntas surgem naturalmente na cabeça das crianças quando partes da história parecem não encaixar com o conhecimento que elas têm da realidade. Se elas começam a imaginar o Pai Natal a voar num trenó e depois reparam que os trenós não voam... então formulam uma questão. Se os amigos da escola lhe dizem que o Pai Natal não existe, então formulam uma dúvida. Mas se não existir motivo para duvidarem, continuarão a acreditar tranquilamente durante a vida toda. Tal como os adultos acreditam que o dinheiro é o produto do seu trabalho (mesmo que neste caso os adultos tenham algumas razões para duvidar... mas os adultos são muito bons a ignorar razões). Por outro lado, é irrelevante o desenvolvimento do pensamento crítico das crianças a tentar descobrir a verdade acerca do Pai Natal, porque isso é apenas um episódio e as crianças desenvolvem efectivamente o seu pensamento crítico numa série infindável de episódios novos todos os dias. Novamente, parece-me que o que está em causa para os pais aqui é serem eles próprios a jogar o jogo do gato e do rato, o jogo de conseguir responder às dúvidas das crianças mantendo a sua crença durante o máximo tempo possível! Quase como se existisse um troféu para os pais que conseguem manter o segredo (ou a mentira) até os filhos serem adultos!
- Fortalecimento (ou lá como se traduz “empowerment”) das crianças. Diz-se que as crianças que entretanto percebem a treta acerca do Pai Natal passam a fazer parte da equipa dos pais, com a responsabilidade de manter o mito nos que ainda acreditam. É claro que os pais é que ficam felizes de colherem os frutos de anos e anos de tanto esforço: finalmente conseguiram criar um ser igual a eles, que irá engrossar a sua equipa!
- Enfatizar a alegria de dar. Bom, isto é simplesmente uma mentira e uma estupidez. Aquilo que é dado no Natal é-o independentemente da crença ou não no Pai Natal. Não conheço família alguma onde as coisas que são dadas no Natal mudem no momento em que as crianças deixam de acreditar no Pai Natal. A estupidez deste ponto é que o Pai Natal, ao centrar em si mesmo a glória da dádiva, retira essa glória a todas as pessoas que efectivamente a merecem!
Há que desculpar os pais pela sua falta de destreza a brincar com os filhos e a criar um imaginário colectivo de um mundo melhor... para não referir a sua inabilidade em lutar por isso... Mas este último ponto é aquele onde encontro mais dificuldade em desculpar a sua atitude. De facto, a magia do Natal, se existir, está no querermos bem uns aos outros, no acreditarmos na paz, está na dádiva não apenas material, mas do nosso tempo, do nosso calor, da nossa atenção (mesmo que depois haja o resto do ano...).
Tenho uma entrada no meu blogue dedicada ao disco de vinil “Os operários do Natal”. Todas as suas músicas nos contam, preto no branco, como as pessoas à nossa volta se dedicam e entregam o seu amor uns aos outros. Essa é a beleza do Natal!... E os pais, em vez de assumirem e transmitirem isso mesmo aos seus filhos, como a coisa mais bela de que somos capazes, preferem fazer de conta que não foram eles, afinal eles são os sacanas do costume, e foi tudo obra desse personagem enigmático chamado Pai Natal.
A terminar, gostaria de deixar esta questão: porque é que as crianças, depois de descobrirem que foram enganadas durante tantos anos, adoptam os mesmos comportamentos que os pais e fazem o mesmo aos seus filhos?... Soa-vos a alguma coisa?...