à palavra alento.
Entre as respirações, os pensamentos, os sentimentos, o calor e os movimentos do nosso corpo... o que é que nos move?
Não sei o que nos move. Cada um terá porventura os seus motivos, e talvez nem sequer deles tenha total consciência.
Mas tenho fé que a fé, tal como as utopias, serve para caminhar. Há quem diga que move montanhas... mas se servir para nos levantar do sofá, já será bem bom!
Um conjunto articulado de crenças pode ser uma boa receita para nos pôr a mexer: quando sentimos que algo não está bem, ou que poderia estar melhor de outro modo, e acreditamos que existe esse outro modo, e acreditamos que conseguimos lá chegar se fizermos isto ou aquilo.
Infelizmente, a maioria das pessoas que encontro na vida mexe-se pouco. Quando o martelo lhes acerta nos dedos, dão imediatamente um energético salto. Mas na ausência do martelo, ou dos dedos, ou de órgãos sensitivos aprumados... o marasmo.
Que bom é, portanto, quando encontro, quando encontramos, alguém que tem energia e faz e acontece, com alegria, porque acredita!
Mas... e quando aquilo em que se acredita é afinal uma grande treta?...
São as pessoas que acreditam que vão recuperar daquela doença de que ninguém recupera, o pequeno empresário que acredita que vai ficar rico (ainda que isso não me pareça um objectivo muito belo), o atleta que acredita que vai vencer os jogos olímpicos, e tantos tantos outros.
É claro que os filmes de Hollywood retratam precisamete o herói, aquele que acreditava num oceano inteiro de descrença, e que no final, quando já nem os espectadores acreditam, lá surge dos escombros físicos ou emocionais de alguma coisa para garantir o seu sonho primordial. É claro que nós próprios gostamos de ficar agarrados à história do tipo que conseguiu... mesmo que tenhamos de esquecer a lista infindável dos que não conseguiram, mesmo acreditando até ao fim.
Acima de tudo, há aquelas pessoas lindas que acreditam num mundo melhor, e as que acreditam que o mundo muda com cada pequeno gesto. Digo "lindas" com uma grande dose de narcisismo, porque me incluo nesse grupo, ou talvez apenas porque considero que isso e essas pessoas são mesmo lindas.
Mas... e se a fé num mundo melhor não passar de uma enorme treta?...
(Bom, se acreditarmos que um mundo melhor é um computador em cada secretária, como o Bill Gaitas, então voilá, ele está a concretizar-se a cada dia que passa! E também se acreditarmos que um mundo melhor é um volante nas mãos de cada um ou uma piscina em cada quintal.)
A mim, o que me deu ânimo para escrever este artigo, foi a conjugação de duas coisas. A primeira é o fenómeno mundial do abrandamento económico em resultado da pandemia do coronavírus. Este abrandamento, entre muitos efeitos que produziu, teve enormes benefícios "ambientais". Coloco a palavra ambientais entre aspas porque estou a copiar o termo que muitos usam, mesmo que não saiba bem ao que se refere. Entre ambientalistas que promovem relvados verdinhos e ambientadores que deixam tudo a cheirar a limpo... acho que a natureza e a vida vão sempre sofrer!
O ar de muitas cidades tornou-se mais limpo, queimou-se menos combustíveis fósseis, consumiram-se menos recursos naturais, produziu-se e consumiu-se menos plástico, fez-se menos ruído, etc. E talvez, com todo este processo, algumas pessoas tenham percebido que afinal nem sempre mais é melhor. Pelo menos eu tenho fé que assim seja!
Muitas pessoas que se preocupam com esta amálgama de questões chamada "ambiente" ou "natureza" adquiriram então uma tremenda fé numa melhoria significativa da situação à escala planetária, em resultado do dito abrandamento económico.
Infelizmente, a inércia de um super-petroleiro não se altera facilmente. As espécies de seres vivos que foram extintas não ressuscitam, as florestas ardidas ou desmatadas não voltam a albergar a mesma diversidade, o gelo nas regiões polares não aumenta, o dióxido de carbono na atmosfera não diminui, só porque a economia abrandou durante uns meses. Os dados estão aí para prová-lo, e podem ir à procura deles, se quiserem ficar deprimidos.
O mesmo pode ser dito acerca das questões sociais, políticas e económicas. Muitas pessoas viram na pandemia uma oportunidade para acordar, para identificar melhor os verdadeiros problemas, para tornar possível a crença na mudança e na solidariedade... E, no entanto, também os factos nos indicam que iremos sair desta crise com mais capitalismo, mais dívida, mais individualismo, mais medo.
E isso conduz-me à segunda causa que me motivou a escrever este artigo: um conjunto de afirmações recentemente proferidas por Yanis Varoufakis, uma pessoa cujas ideias económicas e políticas me parecem valiosas. Dizia ele (aqui):
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"momentos de verdade" são uma ficção. A verdade cresce de forma orgânica. Epifanias são uma ilusão. Uma ilusão que as nossas mentes fabricam para explicar a nossa falha, ao não sermos capazes de reconhecer o óbvio um pouco mais cedo.
Como as epifanias, a teoria acerca da bifurcação na estrada [que nos faz acreditar que a nossa situação actual foi determinada pela opção tomada nesse único instante] é uma mentira conveniente. A verdade é que nós enfrentamos bifurcações na estrada todos os dias das nossas vidas. Todos os dias nós desperdiçamos oportunidades para alterar o curso da história... e depois sabes o que fazemos para nos consolarmos? Nós procuramos no passado um desses momentos fulcrais e tentamos minimizar a nossa culpa dizendo "ah, foi nesse momento que errámos!" Não, pessoal, nós não aproveitámos oportunidades todos os dias, todas as horas, a todos os instantes!
Portanto não vamos desperdiçar o "momento de verdade" de hoje, de amanhã e do dia seguinte.
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Toda esta questão, sobre aquilo em que acreditamos e o modo como isso nos dá força ou não para agir em prol de algo melhor, e sobre a ingenuidade de muitas das nossas crenças e o desânimo que resulta quando o descobrimos, pode ser resolvida, no meu entender, com moral. Se não gostam de moral e preferem ética, então chamem-lhe o que quiserem.
Fiz uma apologia da fé, agora faço uma apologia da moral... acho que não consigo ser muito mais espiritual do que isto!
Como eu vejo as coisas, o modo habitual como as crenças conduzem a acção é através do incentivo de atingir um benefício futuro. Investimos hoje para recuperarmos amanhã. Semeamos para depois colhermos, e todas as analogias do género.
E há uma diferença profunda e essencial entre agir com a expectativa de um ganho futuro e agir com a crença de que é a acção correcta. Mudar de um móbil para o outro é abandonar uma perspectiva utilitarista, pragmática, calculista e até maquiavélica do mundo, e abraçar uma perspectiva integrada, equilibrada, justa.
Além disso, é não fazer depender a nossa motivação das nossas crenças e de um futuro incerto, mas tão somente dos nossos juízos de valor.
Não deixamos de atirar papéis para o chão porque acreditamos que vamos atingir um mundo sem papéis no chão, e não deixamos de esmurrar a pessoa que nos irrita porque acreditamos que vamos atingir um mundo sem murros. Não deitamos papéis para o chão porque é o que achamos mais correcto. Não esmurramos as pessoas que nos irritam porque é o que achamos mais correcto.
Como alguém dizia, eu combato os nazis não porque vou conseguir vencê-los, mas porque eles são nazis.
Colocando as coisas nestes termos evidenciamos um pouco um outro aspecto desta motivação moral: é que ela deixa de se basear numa "racionalidade", entendida à maneira dos economistas, ou seja, numa expectativa de um ganho, e pode até conduzir-nos a situações de perda inexorável, como quem luta contra a maré. No entanto, isto que acabei de dizer não é válido, uma vez que corresponde à tentativa de analisar a vantagem pessoal de uma conduta com base num padrão de referência que não é o dessa pessoa. Dito doutro modo, a vantagem de quem luta contra os nazis porque eles são nazis não é a de que irá conseguir vencê-los (isso pode acontecer ou não), a vantagem é que já está a combatê-los. Tão somente.
Ou, como dizia Sophia,
"porque os outros calculam mas tu não"
(do seu poema "porque")
A minha fé é de que, afinal, e parafraseando isto, tudo depende largamente do refinamento da nossa capacidade de julgamento moral. Um refinamento que permita, por exemplo, separar o trigo do joio nos modos polidos ("lamentamos, mas... sinceros votos de...") com que se despede um trabalhador, de cujo salário depende o alimento.