É claro que os seres humanos se comem uns aos outros diariamente e de muitas formas. Mas deixemos isso de lado e concentremo-nos na versão estrita da coisa mais comum: mastigar e engolir bifes de vaca ou filetes de peixe.
Cada cabeça sua sentença. Todos são livres de pensar, de sentir e de opinar sobre este assunto (e todos os outros), mas naturalmente as coisas tornam-se mais difíceis quando se tenta encontrar um padrão que se considere "correcto" para conduzir a nossa vida ou para conduzir a vida de todos.
E talvez a discussão possa então começar precisamente por aí, pela separação entre aquilo que é factual e aquilo que é ético ou moral. Será que existe moral sem sistema nervoso que a pense e sinta?... Para quem acredita na existência de um ou de vários deuses, possivelmente a resposta será afirmativa. No entanto, isso parece-me uma batota, porque nesse caso o deus ou os deuses estão lá precisamente a fazer as vezes de sistema nervoso pensante e senciente.
De facto, é possível sentir um grande alívio de alma quando se observa a natureza, quer nos seus eventos isolados, quer nos seus ciclos, quer no longo prazo, acreditando em algo como "as coisas são como deviam ser" ou "tudo está no seu lugar" ou "a natureza sabe o que faz"... que é tudo o mesmo que dizer que nós mesmos não sentimos necessidade de adicionar à nossa experiência qualquer juízo de valor. Quando a leoa mata o impala, o máximo que podemos dizer é "coitadinho!", mas entendemos que é a natureza, e é mesmo assim...
A moral só surge quando nós pensamos nela e a sentimos, quando fazemos juízos de valor acerca do mundo, quando tentamos separar o que achamos que está correcto daquilo que achamos que está incorrecto.Logo a seguir surgem os conflitos entre os seres humanos, talvez mais uma das características únicas da nossa espécie, motivados pelas diferentes perspectivas sobre "a moral verdadeira". Nós não guardamos a nossa moral só para nós, nem nos cingimos a querer saber como é a moral do outro. Em vez disso nós queremos que os outros adoptem a nossa própria versão de moral. E isso, em boa verdade, faz todo o sentido. Porque os nossos juízos de valor são sempre conduzidos pela nossa razão e pela nossa emoção, e a sua aplicação, ao jeito de um filtro, àquilo que nos chega através dos sentidos, desperta inevitavelmente em nós mais pensamentos e emoções que nos podem ser agradáveis ou desagradáveis. Posto de um modo simples, se nós consideramos incorrecto atirar um papel para o chão, ser-nos-á difícil aceitar que outra pessoa atire um papel para o chão, só porque o "sistema moral" dessa pessoa é diferente do nosso e já está! Em vez disso, sentimo-nos mal. Não gostamos. Pensamos que está errado. E ou porque sentimos que temos uma mensagem de verdade a transmitir, ou apenas porque queremos evitar o nosso próprio desgosto, sentimo-nos impelidos a evangelizar o outro com a nossa versão da "moral verdadeira".
Com muita consciência pós-moderna de que, afinal, cada um tem direito à sua moral, parece-me que temos cada vez mais a tendência de evitarmos esses ímpetos evangelistas. No entanto, conforme tenho referido muitas vezes em muitos outros contextos, o meu juízo de valor sobre esse assunto diz-me que isso é um erro. Porque no momento em que deixamos de debater com os outros as diferentes versões de moral, permitimos que surjam fossos entre as pessoas, que crescem sem limites, e que fragmentam a sociedade toda. O que vivemos no nosso mundo no dia de hoje, 24 de Janeiro de 2021, talvez não seja tão alheio assim a esse movimento de recuo para uma posição confortável de "cada um é que sabe de si" e de ausência de debate.
Isto tudo para dizer que cada pessoa terá a sua versão sobre se comer outros animais está certo ou está errado, que as tentativas de evangelização podem ser catastróficas, mas que a ausência de discussão também. E, portanto, eu vou tentar dar o meu pequeno contributo para a discussão, sendo que, à partida, não tenho uma opinião bem formada sobre isto, e talvez a própria escrita do texto me ajude a iluminar alguma coisa no meu espírito.
Comecemos então pelo início. No início era o nada. Pronto. Depois veio o verbo?...
A certa altura surgiu a vida. Mas o que é a vida?... Tenho a impressão de que toda a gente sabe o que é a vida, mas que se quisermos ir ao detalhe, na verdade ninguém sabe o que é a vida!
Na escola aprendemos que um ser vivo é um ser que nasce, cresce, vive (!), e morre. Isso parece-me uma definição idiota. Há muitas coisas que nascem, crescem, vivem e morrem, como os edifícios, e não são seres vivos. Podemos então adicionar outros requisitos... Por exemplo, um ser vivo deverá ser capaz de produzir cópias de si próprio. Mas há muitos objectos capazes de produzir réplicas de si próprios que não são seres vivos!...
Sem querer entrar mais a fundo nesta questão, remeto para um texto que escrevi no passado, onde afirmo que a vida, dadas as condições físicas e químicas apropriadas, não é um milagre, antes é inevitável.
À micro-escala, um vírus é um conjunto de átomos que deambula na fronteira daquilo que se pode considerar um ser vivo, sendo que há, por entre os estudiosos, quem considere que os vírus são seres vivos, e quem considere que não são.
Imaginemos agora que uma molécula incorpora outra molécula na sua própria constituição, passando as duas moléculas a ser uma terceira molécula, diferentes das originais. Podemos dizer então que uma molécula comeu a outra?... Ou será que devemos dizer que a outra é que comeu a uma?... Quem é que comeu quem?...
No contexto das moléculas, "comer" é equivalente a uma reacção química. E no contexto da construção de uma moral acerca do que se deve ou não deve comer, creio que ninguém irá emitir juízos de valor acerca do ser correcto ou não ser correcto existir uma reacção química.
Assim, creio que não existirão objecções morais à ingestão de vitaminas na forma de comprimidos (e vamos imaginar que os comprimidos caíram do céu, por um momento).
Um pequeno aparte: se nós somos constituídos de matéria, de átomos organizados em moléculas, e se quando ingerimos vitamina C ela passa a circular no nosso organismo, reagindo aqui e acolá, e desse modo transformando-o, será que somos nós que comemos a vitamina, ou será que é a vitamina que nos come a nós?...
A partir daqui, os dados estão finalmente lançados para a discussão. Porque a partir de moléculas simples, podemos avançar para os vírus. E se ninguém levanta objecções acerca da ingestão de moléculas simples, provavelmente poucos levantarão objecções à ingestão de vírus.
As leveduras são seres vivos. Creio que sobre isso há um consenso. E suspeito que haverá também um consenso acerca da não objecção à ingestão de leveduras, pelo menos tentando olhar ao ponto de vista da levedura, porque se olharmos ao nosso ponto de vista então temos de ter algum cuidado com a levedura que ingerimos, se não queremos arranjar um problema de saúde.Podemos então seguir toda uma cadeia imaginária de seres, segundo os nossos padrões, cada vez mais complexos. Juntamos sensores que permitem "tocar" no meio envolvente. E outros que permitem "cheirar". E outros que permitem "ver". E quando estamos perante seres vivos que conseguem "ver" o mundo, aí começamos a pensar que esses seres também precisam de "processar" o mundo. Ou seja, além de o sentirem, também precisam de o pensar.
Mais uns passos à frente e estamos a chegar ao fim da linha, com mamíferos, golfinhos, primatas e nós mesmos: habitualmente, e apesar de sermos capazes de estupidezes impensáveis no reino dos fungos, colocamo-nos sempre no extremo superior da complexidade, da perfeição, da consciência.Se é então possível estabelecer uma cadeia contínua desde as vitaminas até aos seres humanos, atravessando no seu início essa distinção, mais difusa do que parece à primeira vista, entre seres vivos e seres não vivos... e se não vemos problema algum na ingestão de vitaminas e leveduras, mas vemos problema na ingestão de seres humanos (antropofagia), a questão que logicamente segue será: onde, ao longo dessa escala de complexificação crescente dos seres vivos, é que o nosso julgamento moral nos começa a fazer comichão?
Passemos agora para o extremo supostamente mais complexo. Porque é que quase todos os seres humanos (tanto quanto me apercebo) têm um inequívoco e muito forte sentido moral em relação à antropofagia?
Imaginemos o caso real de sobreviventes de um acidente de aviação que ficam perdidos no topo de uma montanha gelada, que estão rodeados de cadáveres e que não têm mais nada para comer. Será errado comerem carne dos cadáveres?... Bom... isso a mim não me choca muito... mas creio que muitos discordarão de mim. Há o "espírito" dos mortos, há os familiares das vítimas, há sei lá que outras considerações que se juntam num imbróglio complexo no qual não me quero meter agora.
Mas matar outro ser humano para o comer é algo que certamente parecerá a quase todos nós errado. Aqui não está apenas em causa o comer carne humana, mas também o tirar a vida a outro ser humano. No entanto, e novamente, a consideração de que tirar a vida a outro ser humano é errada é, ela própria, um juízo moral, sobre o qual, aliás, e infelizmente (digo eu), não existe consenso. Mas admitamos que sim...
Parece então que o problema não se centra tanto no acto de comer, mas sim no acto de tirar a vida, de matar.
Se consideramos incorrecto matar outros seres humanos, será que consideramos correcto matar macacos. Porque há quem tradicionalmente mate macacos para os comer.
Não sou perito em história, mas parece-me que desde tempos imemoriais os seres humanos se consideraram numa classe à parte dos outros seres vivos. No entanto, pelo menos ao longo dos últimos séculos, fomos percebendo que muitas características que julgávamos únicas em nós, afinal também eram partilhadas por outros seres. E então começou o que sempre me pareceu ser uma corrida na demanda do santo graal, daquela característica única que nos possa separar de todos os outros seres vivos. Uns disseram que era a consciência, outros que era a habilidade manual, outros que era sei lá o quê... E essa busca parece nunca acabar. Do mesmo modo que quando tiram alguma característica diferenciadora a um povo, logo ele se apressa a ir encontrar outra que a possa substituir, nem que seja a sua ascendência celta ou algo do género.
No entanto, aos meus olhos, nós fazemos parte de um contínuo. Entre nós e os outros seres vivos existem diferenças, claro que sim, tal como existem diferenças entre um pardal e um golfinho, mas essas diferenças são mais de grau, ao longo de uma mesma escala, do que propriamente diferenças radicais. Em algumas mitologias, alguns deuses deram aos seres humanos uma coisa especial que não deram a nenhum outro ser vivo. Mas cá em baixo, no mundo real, essa coisa especial sempre foi objecto de muito controvérsia e... se calhar... simplesmente não existe.
Portanto, o mesmo fundamento que podemos aplicar à questão de tirar a vida a um humano, para julgar esse acto como incorrecto, talvez também possamos aplicar à questão de tirar a vida a um orangotango ou a um chimpanzé.
Ou a um cão. Aqui, em Portugal, todos se escandalizam porque os asiáticos comem cães. Mas porquê?... Porque é que isso nos escandaliza?... Porque, culturalmente ou não apenas, estamos habituados a olhar para os cães como "nossos amigos", e fieis companheiros, e seres sensíveis, que pensam, que expressam emoções. Entretanto, nos países asiáticos, talvez as pessoas olhem para os cães como nós olhamos para os porcos. E, no entanto, é possível ter um porco como animal de estimação, tal como se tem um cão. Um porco também sente, também pensa, também expressa emoções. Veja-se por exemplo este documento, todo, ou apenas a página 19.
Portanto, e novamente, os seres vivos podem ser ordenados conforme a sua complexidade, ou consoante outra característica qualquer, sendo que (quase) todas elas variam ao longo de um contínuo. E se num extremo dessa escala nós nos chocamos com o tirar a vida e comer outros animais, e no outro extremo nem por isso, é porque algures pelo meio alguma coisa acontece que faz um clique cá dentro. O que será isso?
Para muitos, incluindo Carl Sagan e eu próprio, essa característica que avaliamos é a semelhança connosco. É a empatia, real ou imaginada, é aquilo que conseguimos reconhecer de nós próprios no outro ser que está à nossa frente.
O "direito à vida" não é, e nunca foi, para nós um direito universal. Nunca nos lembramos de escrever tratados e normas sobre o direito à vida das leveduras. O direito à vida é por nós considerado com maior ou menor gravidade precisamente em função das semelhanças que encontramos entre o outro e nós próprios. É assim quando avaliamos o direito à vida de cães, porcos ou peixes, mas também o é, feliz ou infelizmente, num tribunal dos EUA: se os elementos do juri forem capazes de reconhecer no réu muitas características que conhecem em si próprios, mais dificilmente o irão condenar.
Gostava, neste ponto, de acrescentar mais uma variável ao problema: a questão da alimentação humana enquanto actividade económica.
De facto, lá para trás neste texto, assumi que o saco de vitaminas tinha caído do céu. Mas na verdade, nenhum alimento cai do céu, pelo menos em sentido figurado. Se o nosso juízo moral abarca questões sobre tirar a vida a outros seres vivos, também me parece que devia abranger questões sobre a qualidade da vida de outros seres vivos, a começar pela qualidade de vida dos próprios seres humanos. E isso remete para considerações sobre os modos como as economias se organizam para produzir e comercializar os produtos alimentares. Essa é uma questão muito complexa em si mesma, e portanto vou deixá-la de parte, pelo menos por agora.
Há depois o maior ou menor impacto ecológico que a produção de alimentos tem. Se tudo tem um impacto, nem tudo é igual: uma plantação de vacas causa um impacto diferente de um conjunto de pescadores com cana sentados nas rochas à beira-mar. Novamente, isto também é um assunto em si mesmo...
Há ainda a questão de saber que vida levam os animais até ao momento em que os matamos para os comer: serão vidas livres ou subjugadas? isso far-lhes-á mossa? sentirão dor?...
Finalmente, há as nossas considerações mais antropo e egocêntricas: nós precisamos de comer, sempre fizemos assim, e gostamos.
Portanto, assumindo que queremos fazer aquilo a que estamos habituados, queremos comer aquilo que nos apela mais aos olhos e ao paladar, queremos preservar os equilíbrios ecológicos existentes, queremos respeitar a vida e a morte dos outros seres vivos... claramente temos aqui um enorme conflito de interesses.
Num assunto onde os conflitos de interesses são inerentes a cada um de nós, não deve ser surpresa alguma que não exista sequer uma sombra de consenso global.
O que fazer então?
Bom, certamente antes de começarmos a tentar evangelizar quem quer que seja com o nosso código pessoal de conduta moral, talvez fosse melhor tentarmos resolver os conflitos internos que nós próprios temos. Eu tenho esse conflito de interesses. Eu quero poder existir alterando a vida de todos os seres humanos, mas não alterando a vida de qualquer outro ser vivo!...
O compromisso que tento encontrar inclui o seguinte:
- diminuir o consumo de animais
- ordenar os seres vivos pela capacidade que eu lhes reconheço de sentir e pensar (reconhecendo que é um método pouco preciso!), e diminuir mais fortemente o consumo dos animais que considero mais sencientes e pensantes
- preferir, na medida do possível (o que geralmente é na medida da carteira) os alimentos (animais ou vegetais), cujos processos de fabrico e comercialização impliquem os menores impactos ambientais e os menores sofrimentos para os animais, e também que sejam o mais justos possível em termos económicos (o que basicamente se pode resumir a analisar para onde vai o dinheiro que eu pago na compra dos alimentos: para o bolso de um ricaço ou para os bolsos dos trabalhadores?)
- como exemplo: prefiro caçar o meu próprio peixe no mar, porque os peixes (pelo menos alguns) estão na minha escala pessoal abaixo das galinhas, porque sei que não há desperdícios no processo, porque o impacto ecológico do que faço é pequeno, porque os peixes vivem livres até ao momento da captura, porque quando os caço tenho o cuidado de os matar o mais rapidamente possível...
- não aderir a práticas que me parecem completamente alheias às considerações que acabo de tecer, mas...
- não ser completamente inflexível no sentido de ofender os outros nas suas crenças, nos seus padrões morais, nos seus costumes
- e nesse sentido, não tentar evangelizar os outros acerca do que considero mais ou menos correcto, sobretudo quando eu me sinto um assassino.
Resolver estas questões de uma forma melhor, que nos deixe mais confortáveis a todos, parece-me que terá de envolver algumas mudanças muito radicais ao nível do funcionamento da economia global e das cabeças das pessoas. Também as novas tecnologias (incluindo as "bio") podem ser chamadas a intervir, embora isso no meu ver seja uma parcela das questões económicas.
Se há alguma coisa neste assunto que eu defendo sem hesitação, é que não podemos nunca ficar agarrados a uma maneira de fazer as coisas, justificando-a por si mesma, porque sim, porque sempre foi assim. Todas as melhorias implicam mudança.
Finalmente, e voltando ao princípio, defendo que estas questões devem ser mais debatidas. Não numa tentativa de encontrar "a moral verdadeira" ou de impor um ponto de vista sobre os outros, mas precisamente numa tentativa de crescimento interior e de coesão social. Já nos bastam os discursos de ódio incentivadores de clivagens!