(uma autocrítica)
Para quê falar de liberdade se não somos capazes de
reconhecer as nossas prisões ou os nossos carcereiros?
1ª Parte
Ai, que vem aí o "dia da liberdade"... e não é um
qualquer, são cinquenta anos, ai, ai, que temos de comemorar como deve ser,
ainda mais agora que isto está tão cheio de gente que quer voltar ao passado!
O medo do passado restringe-me o futuro! Estou farto desse
passado e desta ausência de futuro! Estou farto deste presente envenenado, uma
revolução que não revolveu nada, um cravo que serve para tudo na lapela de toda
a gente.
Queres saber o que é a liberdade? Eu digo-te: ontem não se
podia e agora pode-se. Pronto, já está. E queres saber porque é que temos de
lutar pela liberdade? Eu digo-te: porque se não ainda arranjam maneira de não
se poder outra vez. Perguntas o que significa "lutar pela liberdade"?
É andar com cravos, cantar músicas que falem da liberdade e denunciar os que
querem que isto volte a ser como era dantes.
E agora, que vem aí o "dia da liberdade", o que é
que vamos fazer? Lutar pela liberdade! E como são cinquenta anos, vamos lutar
mais ainda! Vamos andar com ainda mais cravos, cantar ainda mais músicas e
denunciar ainda mais os que querem andar para trás!
Pronto. Já está!
2ª Parte
- Sim... mas agora pergunto-te eu: para que queres tu a liberdade?
- Para poder dizer o que quero e não ir presa.
- Como o quê?
- Como "viva a liberdade!" ou como "abaixo o
fascismo!".
- Tu és livre?
- Sou.
- E o que fazes tu com a tua liberdade, para além de
celebrares os dias da liberdade?
- Eu vivo, como toda a gente.
- O que é que isso quer dizer?
- Sei lá... Trabalho, divirto-me no tempo livre, ou tento
divertir-me... Vou viajar de vez em quando, ouço música, já li mais...
- E o que é que querias fazer que sentes que não podes?
- Queria poder voar como o super-homem!
- E coisas mais mundanas?
- Eh pá... queria poder trocar de carro, que o meu já está
muito velho e só me tem dado chatices. Na verdade eu preferia não necessitar de
carro. Até por causa do ambiente... Mas para isso teria de ir morar no centro
da cidade, perto de onde trabalho, e as rendas estão muito caras.
- Era isso que tu querias, ir morar no centro da cidade?
- Sim. Assim não só não ia precisar de carro como ia ter
mais tempo livre, porque não teria de fazer as viagens... Ah, e também teria
mais dinheiro, porque sustentar um carro é sempre uma despesa.
- E o que é que gostarias de poder fazer com esse tempo
extra e esse dinheiro extra?
- Eh pá, sei lá... ir beber umas cervejas com umas amigas!
Mas isso ia ser difícil, pensando bem... É que elas têm sempre a vida muito
ocupada. E se calhar também não têm dinheiro para essas coisas... Olha, o que
eu gostava mesmo era de ir para outro país... Não digo ter uma cabana, porque
isso de amor e uma cabana... mas ter uma casinha pequena mas com tudo o que é
preciso... E ter tempo para poder contemplar... para poder escrever.
- Gostavas de poder escrever?
- Sim. Acho que sim... Nunca tive... mas gostava de
experimentar. Bem sei que também não se escreve bem assim do pé para a mão, mas
enfim, gostava de tentar.
- E então porque é que não o fazes?
- Porque não tenho dinheiro para isso. Preciso de trabalhar.
Era preciso dinheiro para comprar uma casa e para viver sem ter de trabalhar.
- Gostavas de poder não trabalhar?
- Eh pá... acho que isso é o sonho de qualquer pessoa, não?...
Não, pensando melhor, acho que há tipos que gostam mesmo de trabalhar... parece
que são doentes! Mas eu não, eu preferia não ter de trabalhar.
- Não acreditas que o trabalho é fundamental para manter as
pessoas saudáveis, por exemplo em termos sociais, mas também em relação à sua
auto-estima?
- Talvez... não sei, eu nunca estive muito tempo sem
trabalhar... mas gostava de experimentar! Ia ser só comer, beber, apanhar sol,
passear, sexo, uma maravilha!
- Como um verdadeiro animal, portanto?
- Mais nada!... Ah, mas esqueci-me de outra coisa muito
importante: é que para poder aproveitar a vida é preciso ter saúde, não basta o
tempo e o dinheiro. Isso limita um pouco a escolha dos sítios onde viver,
porque não há acesso a bons cuidados de saúde em todo o lado. E isso é
importante quando uma tipa já começa a ficar entradota!
- E sentes que só podias concretizar o teu sonho noutro
país?
- Eu gostava de experimentar, mas se calhar não tinha
obrigatoriamente de ser noutro país. Se bem que aqui as casas estão caríssimas
e o serviço nacional de saúde também já teve melhores dias. Mas, enfim, é tudo
uma questão de dinheiro, não é? Se tiveres dinheiro compras a casa e se
precisares de um médico compras o médico e já está.
- Mas sentes-te livre então?
- Sim. Posso falar, posso sair do país e voltar a entrar,
posso sair à rua e reunir-me com os amigos...
- Mas se não tiveres dinheiro, não consegues concretizar os
teus sonhos.
- Sim, mas isso só depende de mim.
3ª Parte
A discussão filosófica sobre, acerca e no perímetro da
liberdade já fez correr rios de tinta. Quantos outros rios correram das canetas
dos poetas? E das canetas dos romancistas que sistematicamente confrontaram a
angústia de um coração desejoso ou de um espírito livre com a necessidade de
adaptação a um determinado código de conduta?
Quem pouco quer, satisfaz-se com o pouco que tem.
Para quem quer um pouco mais, temos aqui o último modelo da gaiola dourada!
O escravo que não reconhece a sua condição, sente-se livre e
agradece cada refeição. Não apenas isso, mas irá reagir contra os seus irmãos
que lutam contra a escravatura, atacando o sistema que lhe fornece as
refeições. E se algum dia reconhecer a sua condição, talvez nem aí se junte aos
seus irmãos. Talvez prefira alhear-se e repetir para si mesmo e para os outros
que a ignorância é uma bênção.
A administração de
doses regulares de ignorância é o melhor método para limitar as aspirações de
liberdade. Ou, melhor dizendo, para manter as aspirações de liberdade dentro de
um patamar que podemos considerar "responsável".
De que liberdade falamos nós então? A liberdade de podermos
dizer o que nos apetece, mesmo que isso não sirva para nada? A liberdade de
poder ganhar algum dinheiro se formos melhores que todos os outros na corrida
pseudo-meritocrática? A liberdade de um dia podermos, se tivermos dinheiro,
comprar uma casa perto do trabalho para não termos de andar de carro?
Que porra de liberdade é esta de que as pessoas falam
afinal?
Falam de dinheiro, de como a sua falta restringe a liberdade
e de como a sua abundância aumenta a liberdade. Mas não fazem ideia o que é o
dinheiro! E nunca trataram de saber!
Falam de liberdade de expressão, mas a única coisa que lhes
sai da boca para fora é uma versão mastigada daquilo que ouviram do comentador
do noticiário da hora do almoço, misturado com o que disse o amigo e o chefe lá
na empresa.
Falam de liberdade como um atributo pessoal, de cada um, e
não um atributo do sistema que a todos abarca. E quando falam do sistema
imaginam uns tipos influentes e corruptos que têm o poder sobre isto tudo, mas
não fazem ideia de como o "isto tudo" funciona, nem de como é que
viemos aqui parar, nem do modo como isto pode ser diferente.
Apregoam a liberdade tanto quanto afirmam do fundo das suas
certezas que é necessário ter exércitos para garantir a paz, é necessário
trabalhar para ganhar dinheiro, é necessária a moeda única para manter a
economia, é necessário pagar a dívida, é necessário tudo e mais alguma coisa
que identifica univocamente o estilo de vida que as pessoas já têm e o sistema
que o enquadra.
Nadamos em oceanos inteiros da mais profunda ignorância.
Ignorância histórica, económica, física, social, ecológica.
Passámos anos e décadas inteiras a julgar que "não
penses, segue os teus sentimentos e as tuas emoções" era um bom lema para
conduzir a vida das pessoas e levá-las à felicidade, ou pelo menos era algo
inócuo, que não fazia mal, até que acordamos agora num intenso "eu sinto
que os outros são os culpados da minha insatisfação e vou mostrar-lhes como é
que é" e já é tarde para dizer "pensa, tens de pensar, e tens de
pensar também acerca dos teus sentimentos e das tuas emoções".
Agora os sentimentos e as emoções baseados na mais profunda
parvoíce e ignorância já tomaram de assalto muitas almas.
E nós temos mais medo do que nunca que o passado volte e
deixemos de poder falar.
4º Parte
Entretidos entre o cravo na mão, o "viva a
liberdade" e o medo das proibições do passado, esquecemo-nos de pensar
noutros futuros. Não os indagamos. Ficamo-nos pelo aqui e agora.
Vamos pela vida fora a alta velocidade olhando sempre e apenas para o
espelho retrovisor para aferir se está tudo bem. Achamos que vemos mais do que
os outros, porque conseguimos ver até lááááá atrás, enquanto os outros estão
entretidos com os botões do tabliê. A alta velocidade gritamos
"liberdade" e hasteamos bandeiras.
Só nos esquecemos de olhar para a frente, perscrutarmos a
paisagem, escolhermos o destino. E, já agora, de analisarmos como funciona o
veículo em que circulamos, para averiguar se algum dia conseguirá chegar lá. A liberdade é uma chatice! Dá imenso trabalho!
Afinal é preciso combater o medo não apenas nos outros.
(e sim, claro, viva a liberdade! e o conhecimento e o pensamento e a fraternidade!)
https://youtu.be/mvZXQ9nAfZw?si=1DQzwQB71YBUStud