25 de Maio de 2024, Praça Velha, Angra do Heroísmo.
Afirmação: Palestina livre!
Resposta: vai trabalhar!
Interessante! Merecia dissecar as sinapses à procura das relações, das origens dos impulsos... Será do ADN? Será da educação? Será do que se comeu na última refeição?
Serão as crenças, a religião, a filiação partidária? Será o medo?
Tais diferenças de mundivisão não se conciliam facilmente. No entanto, não posso deixar de dar a minha opinião. Porque a treta de que no meio é que está a virtude é apenas mais uma muleta para quem não se quer comprometer com nada e prefere continuar amigo de toda a gente, tal pandemia que afecta a população da ilha Terceira, embora infelizmente não exclusivamente.
Organizar uma manifestação dá trabalho. Há cartazes, megafones e outros materiais a serem acartados, há as deslocações, há a publicidade prévia, há a informação às autoridades, há o tempo gasto pelos manifestantes ao sol ou à chuva, há a exposição, a tal, a tão temida afirmação perante a modorra do estado normal das coisas, da alternância da permanência, o negócio habitual.
E, como em todos os trabalhos, há quem goste. Eu não gosto. Não me dirijo à Praça Velha para me manifestar pela paz e pela humanidade em todo o mundo cheio de alegria. Tenho, muito literalmente, mais que fazer. Tenho o tempo contado para as actividades que me permitem viver, e sobretudo sobreviver. E tenho uma tristeza profunda de saber que há situações neste planeta que são tão aberrantes que me obrigam a fazer este tipo de esforços no sentido de chamar a atenção dos indiferentes e de, nesse sentido, juntar mais vozes ao protesto, e com isso pressionar os coniventes a alterarem as suas condutas.
Não me dá prazer nenhum! É uma obrigação de consciência! E cada minuto que dedico a este tipo de actividades, como a própria escrita deste texto, é um minuto que deixo de dedicar às outras coisas que preenchem a minha vida.
Assim, quando alguém responde às palavras de ordem de quem apela à paz com um "vai trabalhar!", não pode estar a ser literal ou completo, uma vez que a manifestação é, em si mesma, um trabalho. Possivelmente o que estará em causa é um determinado tipo de trabalho. Suspeito, por exemplo, que o autor dessa afirmação não a dirigiria do mesmo modo a um Bill Gates ou outro qualquer oligarca deste planeta, que amealha milhões fazendo apenas o que lhe apetece, quando lhe apetece, e invariavelmente através de ordens a outras pessoas que são quem, essas sim, acaba por fazer alguma coisa. Para o bom senso que impera por aqui e por aí, esses oligarcas são grandes trabalhadores! Tal como o rei João V poderá dizer depois "eu construí o convento de Mafra", sem nunca ter assentado uma pedra, porque o fazer ou não fazer, e o mérito daquilo que se faz, mede-se tudo apenas e só pelo poder que se tem e pelo dinheiro que se faz.
De que forma então é que um trabalho do costume, sério, honesto, ordeiro, sempre-às-ordens, e possivelmente mal remunerado, pode contribuir para a paz na Palestina?
Será que quem brada "vai trabalhar!" coloca nesse tal determinado tipo de trabalho a origem de toda a "ordem e progresso" que há no mundo, por contraposição a todo o caos e retrocesso, que terá origem em actividades extra?...
Possivelmente, de acordo com essa mundivisão, a culpa dos palestinianos é serem palestinianos. Se eles se esforçassem por renascer com outra língua, outra cultura, outra religião, outras roupas, outro modo de viver, talvez até outra fisionomia, e se assim renascidos se dedicassem ao trabalhinho honesto e agradecido às ordens de quem já deu provas de saber o que está a fazer na vida (ou seja, de um oligarca), talvez assim não tivesse havido necessidade desta confusão toda! Malditos palestinianos!...
Que maçada, portanto, isso de as pessoas quererem ser livres, de quererem ser elas próprias, de não estarem às ordens dos outros! Que aborrecimento ter de passear na Praça Velha a ouvir os gritos de ordem de gente aflita, em vez dos risinhos alegres e suaves de crianças bem comportadas por entre os barulhos de motores de alta cilindrada!
O que nos vale é que há sempre uns senhores engravatados em gabinetes distantes a tratar de tudo por nós (referência a FMI, José Mário Branco), a policiar, e a patrocinar a ordem e o progresso. Assim falaria o autor do "vai trabalhar!".
Os autores do "Palestina livre!", nos quais me insiro, talvez fossem da opinião que a liberdade vale um pouco mais do que esse tipo de ordem ou esse tipo de progresso. Afinal, até os militares que nos têm dado muitos tipos de ordem e de progresso ao longo da história adoptam como lema "antes morrer livres do que em paz sujeitos".
Finalmente, gostaria de relembrar que quase todos os manifestantes pela paz na Palestina, que são milhões no mundo inteiro, dão do seu tempo e da sua energia, expondo-se aos julgamentos alheios, pelo bem de terceiros. É muito fácil comprar um quilo de arroz no supermercado e dá-lo a uma organização de apoio aos pobrezinhos, e com isso receber os aplausos tácitos de todos, mas é muito mais difícil dar o corpo a um manifesto a bem de terceiros que afronta a paz podre em que se vive. Devia haver mais respeito por isso.