Circula numa "rede social" um artigo acerca da aparente confusão que uma determinada cena pertencente ao espectáculo de abertura dos jogos olímpicos de Paris terá gerado. Aparentemente a cena era um retrato da mitologia grega que terá sido confundida com a última ceia de Jesus Cristo, e as diferenças terão suscitado críticas em muitas pessoas.
O artigo remata salientando "a importância de ler".
Eu não me posso orgulhar da minha ignorância relativamente a estes assuntos. Melhor fora que soubesse os detalhes de todas as mitologias, incluindo a grega antiga e a cristã. Mas não sei.
Julgo saber, no entanto, que "a importância de ler" é brandida a torto e a direito em muitos contextos, incluindo o contexto de tentar vincar a ignorância alheia, mas é pouco esmiuçada.
Talvez comer seja mais importante do que ler, proposição que deixo à consideração de quem queira cogitar sobre o assunto. Por que será então que raramente ouvimos falar da "importância de comer", assim mesmo, tout court?... Talvez porque todos saibamos que comer é importante, mas também todos saibamos que não basta comer muito, é sobretudo preciso comer bem.
E na leitura é o mesmo: não basta ler muito, é preciso ler bem.
Com a devida falta de respeito, ler mitologias é para mim muito comparável a ler "o senhor dos anéis". Ambos são "cultura", na minha definição jocosa de cultura, que afirma que ela é tudo o que é capaz de suster uma conversa com outras pessoas. Milhões e milhões de pessoas leram ou viram ou souberam por terceiros das histórias dos senhores e dos anéis, e deixo à consideração dos mais zelosos listar de que modo é que esse conhecimento moldou a vida das pessoas.
Ler bem é saber retirar do alimento o que ele tem de melhor. Mas ler bem será talvez, acima de tudo, escolher bem o alimento.
Eu bem sei que pode ser polémico, mas não posso deixar de afirmar que ler a Constituição da República Portuguesa me parece mais importante do que ler Os Maias. Ler, saboreando bem o alimento, interpretando-o correctamente. Mas, se insistem que ler Os Maias é mais importante, que tal depois de ler Os Maias ler a CRP? Ou será que antes de ler a CRP devemos ler Os Maias, Os Pescadores, As Sandálias do Pescador, Os Lusíadas, Levantados do Chão, e a restante lista de milhares e milhares de importantíssimos livros já escritos assim mais ou menos no mesmo género?
Se estamos de acordo que o saber não ocupa lugar, talvez possamos estar de acordo que a sua aquisição requer tempo. A meu ver é necessário hierarquizar, um pouco que seja, a importância dos diversos saberes. As vidas de todos nós, por nossa vontade ou contra ela, são dominadas pela necessidade de obter dinheiro para adquirir os bens e serviços de que necessitamos, incluindo livros, são dominados pelo petróleo, pela electricidade, pelos automóveis, pelos ansiolíticos, pelas relações sociais, pelo sol e pela gravidade, a atmosfera e as alterações climáticas, a biodiversidade e a falta dela, as guerras, os impostos, os meios de "comunicação social", a política, etc. A meu ver, as vidas de todos nós não são dominadas pelos deuses, embora nós passemos muito do nosso tempo a pensar e a falar sobre isso. E se não temos tempo para adquirir conhecimento aprofundado acerca de tudo, inclusivamente porque gastamos a maior parte do nosso tempo a dormir e a arranjar sustento, talvez fosse bom incluir na lista de livros a ler alguns sobre política, economia, sociologia, física, biologia, matemática, história, e todas as outras áreas do saber mais científico e mais prático.
Ler pode ser importante por muitos motivos, e também pelo simples acto da leitura. Mas não nos detenhamos aí. Se queremos brandir chavões contra a ignorância dos outros, pensemos um pouco na nossa própria ignorância acerca do mundo que nos rodeia. Está a ler isto num computador ou num telemóvel? Sabe como funcionam esses aparelhos? Sabe quem os construiu e em que condições? Não seria tempo de acrescentar à literatura da mesa de cabeceira um livrito sobre esses assuntos?
Mais leitura:
https://irresponsabilidadeilimitada.blogspot.com/2013/06/ignorar-nao-e-nada-bonito.html