domingo, 28 de julho de 2024

A importância de ler...

 


Circula numa "rede social" um artigo acerca da aparente confusão que uma determinada cena pertencente ao espectáculo de abertura dos jogos olímpicos de Paris terá gerado. Aparentemente a cena era um retrato da mitologia grega que terá sido confundida com a última ceia de Jesus Cristo, e as diferenças terão suscitado críticas em muitas pessoas.

O artigo remata salientando "a importância de ler".

Eu não me posso orgulhar da minha ignorância relativamente a estes assuntos. Melhor fora que soubesse os detalhes de todas as mitologias, incluindo a grega antiga e a cristã. Mas não sei.

Julgo saber, no entanto, que "a importância de ler" é brandida a torto e a direito em muitos contextos, incluindo o contexto de tentar vincar a ignorância alheia, mas é pouco esmiuçada.

Talvez comer seja mais importante do que ler, proposição que deixo à consideração de quem queira cogitar sobre o assunto. Por que será então que raramente ouvimos falar da "importância de comer", assim mesmo, tout court?... Talvez porque todos saibamos que comer é importante, mas também todos saibamos que não basta comer muito, é sobretudo preciso comer bem.

E na leitura é o mesmo: não basta ler muito, é preciso ler bem.

Com a devida falta de respeito, ler mitologias é para mim muito comparável a ler "o senhor dos anéis". Ambos são "cultura", na minha definição jocosa de cultura, que afirma que ela é tudo o que é capaz de suster uma conversa com outras pessoas. Milhões e milhões de pessoas leram ou viram ou souberam por terceiros das histórias dos senhores e dos anéis, e deixo à consideração dos mais zelosos listar de que modo é que esse conhecimento moldou a vida das pessoas.

Ler bem é saber retirar do alimento o que ele tem de melhor. Mas ler bem será talvez, acima de tudo, escolher bem o alimento.

Eu bem sei que pode ser polémico, mas não posso deixar de afirmar que ler a Constituição da República Portuguesa me parece mais importante do que ler Os Maias. Ler, saboreando bem o alimento, interpretando-o correctamente. Mas, se insistem que ler Os Maias é mais importante, que tal depois de ler Os Maias ler a CRP? Ou será que antes de ler a CRP devemos ler Os Maias, Os Pescadores, As Sandálias do Pescador, Os Lusíadas, Levantados do Chão, e a restante lista de milhares e milhares de importantíssimos livros já escritos assim mais ou menos no mesmo género?

Se estamos de acordo que o saber não ocupa lugar, talvez possamos estar de acordo que a sua aquisição requer tempo. A meu ver é necessário hierarquizar, um pouco que seja, a importância dos diversos saberes. As vidas de todos nós, por nossa vontade ou contra ela, são dominadas pela necessidade de obter dinheiro para adquirir os bens e serviços de que necessitamos, incluindo livros, são dominados pelo petróleo, pela electricidade, pelos automóveis, pelos ansiolíticos, pelas relações sociais, pelo sol e pela gravidade, a atmosfera e as alterações climáticas, a biodiversidade e a falta dela, as guerras, os impostos, os meios de "comunicação social", a política, etc. A meu ver, as vidas de todos nós não são dominadas pelos deuses, embora nós passemos muito do nosso tempo a pensar e a falar sobre isso. E se não temos tempo para adquirir conhecimento aprofundado acerca de tudo, inclusivamente porque gastamos a maior parte do nosso tempo a dormir e a arranjar sustento, talvez fosse bom incluir na lista de livros a ler alguns sobre política, economia, sociologia, física, biologia, matemática, história, e todas as outras áreas do saber mais científico e mais prático.

Ler pode ser importante por muitos motivos, e também pelo simples acto da leitura. Mas não nos detenhamos aí. Se queremos brandir chavões contra a ignorância dos outros, pensemos um pouco na nossa própria ignorância acerca do mundo que nos rodeia. Está a ler isto num computador ou num telemóvel? Sabe como funcionam esses aparelhos? Sabe quem os construiu e em que condições? Não seria tempo de acrescentar à literatura da mesa de cabeceira um livrito sobre esses assuntos?

 

Mais leitura:

https://irresponsabilidadeilimitada.blogspot.com/2013/06/ignorar-nao-e-nada-bonito.html

sábado, 27 de julho de 2024

Os interesses das classes trabalhadoras, desde 1974...

No programa do Movimento das Forças Armadas (MFA), de 26 de Abril de 1974, disponível aqui, podia ler-se, no seu ponto 6:


Ora, desde então, a favor das classes mais desfavorecidas, e tendo como pano de fundo o aumento global do PIB per capita, a evolução do salário mínimo (Remuneração Mínima Mensal Garantida) em Portugal foi a que se pode ver neste gráfico (€, a preços constantes de 2016):

Fontes: Banco de Portugal, Direcção Geral da Administração e do Emprego Público


Ou seja, em termos reais, só em 2017 é que o salário mínimo ultrapassou o de 1974, e enquanto o PIB per capita aumentou 114% entre 1974 e 2023, o salário mínimo aumentou apenas 21%.

 

A razão para isto devia ser evidente: é que é muito mais fácil aumentar os rendimentos dos ricos do que aumentar os dos pobres, mesmo que estes trabalhem mais do que aqueles. Toda a gente sabe disso.

E assim, cantando e rindo, todos nos congratulamos com os magníficos 50 anos de liberdade e continuamos a ignorar os valores de Abril.