Foi o que ganhou há pouco tempo um dermatologista no hospital de Santa Maria, por um dia de trabalho. Chama-se Miguel Alpalhão e tem 33 anos de idade. O que é que isto tem de errado?
O que tem de errado é a nossa inveja, certo?
O Miguel estudou medicina e, aparentemente, os seus colegas consideram-no brilhante. É, se assim quisermos, um Cristiano Ronaldo da remoção de sinais da pele. O Cristiano Ronaldo ganha milhões, e não parece haver muita gente preocupada ou importunada com isso!
O que é que há de errado em uma pessoa estudar precisamente aquela área que sabe que terá um elevado retorno financeiro, ser muito bom nisso e conseguir ser bem remunerado?
Podemos estender esta questão ao mercado, seja de que produto, serviço ou ser humano for: se a procura é alta e a oferta é baixa, o preço sobe.
Se todos aceitam economias de mercado e Cristianos Ronaldos, como explicar este sururu em torno do dermatologista bem pago?
Bom... comecemos por fazer uma comparação. Em Portugal, o salário mediano é de cerca de mil euros por mês. Isso não chega a cinquenta euros por dia. Como o Dr. Miguel ganhou 51 mil euros, isso dá para lá de 1100 vezes mais do que alguém que recebe um salário mediano. Ou seja, em apenas um dia de trabalho, este dermatologista ganhou tanto como um trabalhador mediano em 3 anos de trabalho.
Será justo?
Ah, mas o Dr. Miguel é dermatologista! Não podemos comparar isso com o trabalho de um lixeiro!
Ai não? Porque não?...
O Dr. Miguel é inteligente, saudável, e teve condições para se formar em medicina. Será que o trabalhador mal pago não queria também formar-se em medicina com as mesmas condições do Miguel? Terá o Dr. Miguel trabalhado mais para o conseguir?... Eu suspeito que ainda o Dr. Miguel estudava geografia no banco da escola secundária e o lixeiro já andava a trabalhar para ajudar nas contas lá da sua casa.
Não seria de dotar este país de condições para que todas as pessoas pudessem ser Cristianos Ronaldos das suas actividades?
Imaginemos então que o Dr. Miguel se apresenta ao trabalho no hospital de Santa Maria, e ao seu lado tem centenas de outros Dr. Miguel a apresentarem-se para o mesmo. Quando chega ao seu gabinete, o Dr. Miguel atende outro Dr. Miguel, que é tão sabedor de dermatologia como o primeiro. Nestas circunstâncias, seria plausível o Dr. Miguel receber cinquenta e um mil euros num dia de trabalho? Talvez não.
Mas não há muitos como ele. E portanto devemos premiar... o quê? O que é que estamos verdadeiramente a premiar? A sorte?... Não me venham novamente com a treta de que estamos a premiar o esforço, o empenho, a coragem, a dedicação, porque há milhões de pessoas que têm tudo isso em doses iguais ou superiores e nunca receberam um salário acima do mediano.
Mas vamos ainda um passito mais além. Prémios? Porquê? Porque é que precisamos de premiar em dinheiro o que quer que seja? Na escola, o melhor aluno é premiado com diplomas, cerimónias, honrarias e dinheiro. Porquê? Ser o melhor aluno não será já prémio suficiente? Não estará o prémio a ajudar os bons alunos a serem ainda melhores e os piores a serem ainda piores? Ou será que o prémio tem de existir para servir de incentivo a todos os alunos para se esforçarem mais? Mas, se assim for, já sabemos que isso nunca resulta, porque os alunos, por mais estúpidos que sejam, são suficientemente inteligentes para perceber à partida quem é que tem e quem é que não tem condições para chegar ao prémio. À partida. Porque é, novamente, uma questão de condições iniciais. De resto, é gente assim que queremos formar? Gente cuja motivação para o empenho é o prémio? Isso devia dar muito que pensar numa sociedade que ao mesmo tempo afirma recorrentemente a sua crise de valores.
O Miguel não teve dúvidas: escolheu dermatologia porque queria ter uma vida boa. E, pelos vistos, está a consegui-la, pelo menos do ponto de vista do dinheiro.
Eu arrisco-me a dizer que quem acha que uma pessoa ganhar 1100 vezes mais do que outra não tem nada de errado tem um problema muito sério no seu juízo moral. E isto, infelizmente, é o que acontece com imensas pessoas. É uma falta de noção de justiça que me repugna profundamente. E, por associação, uma falta de solidariedade e de empatia. E, finalmente, e ainda por associação, uma falta de humanidade. Arrisco-me, portanto, a dizer que quem é assim, é menos humano.
E isso começará logo pelo Dr. Miguel. Ele faz o que faz com plena consciência. Não foi uma sorte grande que lhe saiu uma vez quando ele menos contava. Ele trabalhou dez sábados no hospital de Santa Maria e fez 400 mil euros. E enquanto houver oportunidade de continuar a facturar, não tenho dúvidas que o Dr. Miguel lá estará, na linha da frente, a bem... da sua carteira.
A moralidade de tantos nós parece que não vai além do "se não fosse eu era outro!".
Mas é bem pior do que isso.
O Cristiano Ronaldo recebe milhões. Mas quem lhe paga os milhões são as empresas privadas, que gerem o seu dinheiro como bem entendem. E essas empresas obtêm o seu rendimento de aplicações financeiras, negócios privados paralelos, direitos de transmissão televisiva ou outros, quotas e bilhetes comprados pelos adeptos, etc. As pessoas que contribuem para estes fluxos não o fazem por obrigação. Fazem-no por prazer, por diversão, para se distraírem das chatices quotidianas, para virtualmente matarem o adversário e exorcizarem os seus males espirituais. Tudo bem... mesmo que possa estar tudo mal.
O Dr. Miguel Alpalhão recebe dinheiro que resulta dos impostos que são sobretudo contribuições dos cidadãos. Estas contribuições são obrigatórias. São impostos. De cada vez que alguém vai comprar arroz ao supermercado, deixa lá um quanto em IVA. Não precisa de ser rico. Basta ter fome. Ou estar a contribuir para o banco alimentar da fome de outro. Bem ou mal, foi o que todos nós, cidadãos eleitores, decidimos fazer: criar leis que nos obrigam a pagar estes impostos de forma a podermos ter serviços de qualidade que são prestados a todos com alguma equidade e em áreas consideradas fundamentais, como os transportes, a justiça, a educação ou a saúde.
Eu, quando quis uma consulta de dermatologia, mandaram-me passear. O que, aliás, é o que acontece no sistema de saúde se eu tiver um problema intestinal crónico, se tiver artrose, se tiver problemas de audição, de visão, de dentes... Eu quero acreditar que o sistema nacional de saúde (SNS) estará lá se eu partir uma perna ou se precisar de fazer hemodiálise... Nem sei se acredito bem!... Mas também já entendi que tudo o que não seja uma questão de vida ou de morte, tudo o que seja uma questão de ir levando, com mais ou menos sofrimento, isso eles deixam-me tratar por minha conta.
Acabei por ir ao privado, como todos nós fazemos, não é? E, no privado, o dermatologista enviou-me para o público para fazer uma biópsia, cujos resultados foram discutidos de volta ao seu gabinete privado. Conhecem este tipo de procedimento, não conhecem?
O SNS tem muitos problemas. Cada vez mais. Um deles é que não presta serviços de saúde adequados à população. Em vez disso, presta serviços de doença, que só recebe quem está mesmo, mesmo, mesmo a precisar, e cobra taxas moderadoras para os prevaricadores não irem divertir-se a entupir os hospitais com casos menores que podiam simplesmente sofrer em silêncio nas suas casas. As cáries dentárias não são identificadas precocemente em consultas de rotina. Os problemas de articulações não são previstos a partir de exames anuais. Enfim, vai-se a correr atrás do dano, depois de ele ter aparecido, de a pessoa ter sofrido o suficiente para ser considerado um caso atendível no SNS, e depois de o caso ter piorado dois anos, na maturação da fila de espera para a consulta ou para a intervenção cirúrgica.
Nem toda a gente que trabalha no SNS tem o olho para o negócio do Dr. Miguel. Há muita gente que lá trabalha que se distrai com coisas um pouco mais humanas e está verdadeiramente interessada em melhorar a qualidade de vida dos outros. Há gente solidária, empática, verdadeiramente empenhada não apenas em resolver os casos de doença, mas sobretudo em garantir saúde às pessoas. Há gente que está disposta a dar o corpo ao manifesto, às vezes sem receber mais por isso.
Infelizmente, as pessoas assim não são suficientes para as necessidades da população portuguesa. Infelizmente também, os edifícios, o equipamento, os consumíveis, não são suficientes para que a população tenha serviços de saúde adequados e de qualidade, que sejam muito mais preventivos e não apenas curativos.
Infelizmente, há gente que nos explica, desde há muito tempo, que isso é assim no SNS, como é assim nas estradas, nos tribunais, nas escolas e em tantas outras instituições públicas, porque não há dinheiro.
Infelizmente, a população acreditou nesses senhores que nos dizem, desde há décadas, que não há dinheiro.
Não há dinheiro, mas o Cristiano Ronaldo nunca deixou de receber milhões. Os bancos foram resgatados. Os gestores das instituições públicas que são tratadas como empresas continuam a receber milhões. A tipa que vai ou veio da TAP recebeu a sua indemnização de quinhentos mil. Os juros da dívida dão milhares de milhões de euros por ano aos credores que estão sentados algures a beber um suco e a pensar na próxima consulta com o Dr. Miguel. Até aquelas duas receberam medicamentos de um milhão de euros, milhão que foi direitinho para as empresas farmacêuticas, as mesmas que lucraram muitos mais milhões na altura da Covid. Ao mesmo tempo, e tudo sem dinheiro, surgiram colégios privados por todo o lado, e hospitais como cogumelos. Hospitais frequentados certamente por doutores Miguel, quer enquanto prestadores de serviço, quer enquanto clientes.
Há dinheiro. Muito. Sempre houve. Há dinheiro no Estado e há muito mais dinheiro nos bolsos de alguns que têm muito mais que o Dr. Miguel.
Mas, sob o pretexto de não haver dinheiro, os serviços públicos foram esquartejados, minguados, fundidos, encerrados, racionalizados... enfim, foram desprovidos dos meios materiais ou humanos que lhes permitiam prestar um bom serviço.
Eis então que chegaram as gestões ao estilo privado para resolver os problemas das instituições públicas!
Todos sabemos que o problema das instituições públicas não é a falta de investimento, mas sim o facto de serem públicas. Sendo públicas, por inerência, são frequentadas por trabalhadores preguiçosos, e isso inclui também os seus directores. Ou seja, se é público, é mal gerido! E é por isso mesmo que uma gestão ao estilo privado resolve tudo, porque também é do conhecimento geral, sem precisar de qualquer demonstração, que o que é privado é melhor gerido do que o público. Por isso, contratam-se gestores que ganham rios de dinheiro, o tal dinheiro que nos tentam dizer que não há, para criarem mecanismos de gestão dos preguiçosos. Não se investe mais. Não se dotam as instituições de mais recursos. Não se dá melhores condições para que todos possam ter mais gosto e vontade de participar activamente na resolução dos problemas. Em vez disso, ah solução milagrosa, tiram-se da gaveta prémios de produtividade e mecanismos burocráticos para poder medir essa produtividade. Ou seja, espreme-se muito mais o mesmo pessoal, com os mesmos equipamentos, dentro dos mesmos edifícios. O que, claro está, deixa todos os trabalhadores das instituições públicas, e também dos hospitais, muito satisfeitos e com vontade de colaborarem num team building pró-activo com fringe benefits.
O mau serviço público, não surpreendentemente, mantém-se. As filas nos hospitais, não surpreendentemente, mantêm-se.
Mas eis que os super gestores, muito bem pagos porque mais ninguém consegue fazer o seu trabalho, e isso é que é justo, se lembram de contratar super médicos! Mas ah, bolas!, a porcaria da burocracia e das regras dos sistemas públicos, que são sempre um empecilho... Aquelas regras que dizem, por exemplo, que tem de haver um concurso público quando se compra alguma coisa... que tentam dar um pouco de transparência à forma como se gasta o dinheiro que é de todos nós... essas malditas regras!... também é por isso que o privado é muito mais eficiente!, porque podemos gastar o dinheiro à vontade, sem dar satisfações a ninguém, o que torna tudo muito mais rápido!...
Os super gestores inventam então novas regras. Horários super com pagamentos super para atrair os super médicos.
No processo, os centros de saúde que só têm dermatologista às segundas e quintas, e que podiam ter dermatologista todos os dias, terão de esperar por melhores dias, porque cinquenta mil por dia são só para o Dr. Miguel, porque ele é mil vezes melhor que os outros, e só não atende mil vezes mais pacientes por dia porque não quer, ou porque os equipamentos do público são antiquados.
No final, os hospitais, e tudo o que é público, serão mal geridos, consciente e propositadamente, até que todos tenhamos percebido e interiorizado que não podemos contar com eles para nada. Entretanto, mesmo do outro lado da rua, ou até dentro do mesmo recinto do hospital, as luzes de neon da nova clínica privada esperam por nós, oferecendo-nos o último grito da moda em cuidados com que você nunca sonhou.
O que está mal com um médico que ganha num só dia o que tantos outros ganham em 3 anos de trabalho, é não apenas a estatura moral desse médico, mas a estatura moral de toda a população, a forma como quem tem o poder político gere deliberadamente as coisas para o abismo, e a forma como a maioria dos eleitores, contra os seus próprios interesses, em vez de perceberem isso e sancionarem, aplaudem e dão ainda mais força para que o problema continue. Claro!, dirão eles: afinal o problema não é a má gestão do público e o dinheiro que é mal gasto como acabamos de verificar?... Acabe-se então com o que é público! Acabe-se com a mama do Estado!
Enfim, são demasiadas coisas erradas numa só.
(ver notícia sobre este caso aqui)