No passado dia 4 de Julho houve festa. O pretexto era o meu aniversário que todos os anos cisma em repetir-se no dia 29 de Junho (mesmo quando calha num domingo!). Houve discurso. E se houvesse mais paciência, minha e da minha audiência, o discurso teria sido mais parecido com o que de seguida aqui vai. Foi uma versão reduzida. Mas o essencial ficou dito. E significava isto:
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Obrigado.
Obrigado porque estou feliz, porque estão hoje aqui comigo. Mas não só por isso.
Queria aproveitar a vossa presença para vos pregar um sermão sobre a história da minha felicidade. Ora bem... a minha felicidade foi-se construindo desde muito cedo. Devia ter uns três anitos quando tive os meus primeiros episódios de otite. Pelo menos é assim que me lembro deles. E bolas que dói!... Furei os tímpanos à custa das infecções, e assim começaram as minhas maleitas de otorrino que fizeram com que hoje não ouça lá muito bem. O interessante é que tenho dificuldade em ouvir os sons de menor intensidade, e assim às vezes não percebo o que as pessoas dizem, mas também que me custa suportar os sons de maior intensidade!
Mais ou menos na mesma altura tive um episódio em que ia morrendo afogado. Não sabia nadar, e numa brincadeira estúpida a atravessar uma ponte de tábuas de madeira molhadas escorreguei e caí ao rio Mondego em Penacova. Ainda hoje me recordo da sensação... Nem deu para ter medo... Apenas estava entretido a chapinhar e a ir acima e abaixo de água sem saber que a morte estava mesmo ali ao lado. Valeu-me o meu irmão e um grupo de jovens que lá nadava perto.
Aos sete anos, se bem me lembro, apanhei hepatite A. Passei um mês inteiro na cama. Lembro-me bem do cheiro ao desinfectante Detol que tudo tinha. O meu quarto transformado em enfermaria. Todos os pratos e talheres a cheirar a Detol, toda a comida sem gordura, caso contrário vomitá-la-ia imediatamente como aconteceu várias vezes, e a cheirar a Detol... Quando voltei à escola percebi que tinha perdido a numeração romana! Sem dúvida um dos maiores choques da minha vida!
Uma actividade recorrente lá na minha rua, onde passava a maior parte do tempo livre, era a gozação. Gozar os outros, picá-los, sujeitá-los, expô-los... tudo actividades que se praticavam em abundância entre todos e a qualquer instante. Eu era, de um grupo que ao todo deveria ter umas vinte pessoas, dos mais novos, senão mesmo o mais novo. Estão a imaginar o festim que isso deu, não? Lembro-me de ter ido comprar electricidade em pó, brincadeira que resultou extraordinariamente bem com a conivência do senhor Saraiva, o senhor da mercearia lá do sítio. Lembro-me de ter ido entregar a pedra de afiar agulhas. Enfim, de tantas outras coisas que podem imaginar e que eu não vou referir aqui para não me humilhar mais do que já me humilharam na altura.
Pois depois do episódio da hepatite, que como sabem ataca o fígado e tem como consequência perturbações graves no sistema digestivo, sendo uma delas as crises de enjoo, eu ganhei um leque de produtos alimentares especiais, cuja simples referência era capaz de me deixar profundamente enjoado. Um desses produtos era um gelado que então existia, o corneto de tangerina. Bastava pensar no dito e ficava enjoado. Era claramente um enjoadinho! Agora podem imaginar o que é que aconteceu lá na rua quando todos souberam desse pequeno pormenor?... Bem, o meu mal-estar era de tal ordem que uma vez passei-me dos carretos, apanhei todo o tipo de pedras que consegui do chão e metralhei o meu agressor com toda a raiva que tinha dentro! Esse agressor, que num instante passou a vítima, foi o Tiago, a quem desde já peço desculpa pelo meu mau feitiozinho, mas que terá de compreender que enjoar uma pessoa dias a fio também não é coisa muito certa de se fazer!... O que vale é que a minha pontaria era tão boa que não me lembro de lhe ter acertado uma única pedra! Ah, a minha memória também já não é o que era!...
Mas a tortura da gozação ao elemento mais novo lá da rua era muito mais do que isto. Muito mais mesmo. Graças ao senhor faziam mesmo gato sapato de mim e gozavam-me a cada esquina, a cada oportunidade. É verdade que eu usava roupas estranhas. A minha combinação preferida, hoje, era a dos calções com galochas com t-shirt e com um enorme cachecol de lã com que ia para a escola. A verdade é que o cachecol era óptimo para as brincadeiras. Mas estão a ver a gozação que aquilo deu... Depois era o meu cabelo cortado à tigela, de onde adquiri a alcunha de “tigelinha”, era o facto de tudo quanto dissesse respeito a raparigas me passar ao lado (era homossexual, pelos vistos), etc, etc. Muito bom na construção da minha felicidade.
Já na adolescência tive a oportunidade de passar por uma apendicite aguda, com direito a toque rectal e a corte dos pêlos púbicos, o que é muito bom porque, como alguns devem saber, quando eles voltam a crescer dão cá uma comichão!... E é um pouco inconveniente coçar os tomates em público, certo?
Depois fui atropelado. Tinha juntado dinheiro ao longo de muito tempo e estava disposto a adquirir uma bicicleta na loja que existia na Avenida da Boavista, quase a chegar à rotunda (sabiam que a rotunda da Boavista não se chama rotunda da Boavista mas sim Praça Mouzinho de Albuquerque? E já agora, a rotunda do Castelo do Queijo também não se chama rotunda do Castelo do Queijo mas sim Praça Gonçalves Zarco? E que o Castelo do Queijo não se chama Castelo do Queijo mas sim Forte São Francisco Xavier? E que a Boavista é uma zona de contornos muito pouco definidos e que nem sequer é freguesia?...). Fui de eléctrico, e ao sair atravessei-lhe pela frente em corrida, o que é uma atitude muito sensata, uma vez que não permite ver quem vem lá. E quem vinha lá era um carro lançado a 60 km/h que me deu um encontrão de quarto ou quinto grau! Hoje lembro-me da sensação: uma pancada forte, quente, tudo escuro e depois apaguei. Quando voltei a acordar estava estendido no meio do asfalto já com um grupo de pessoas à minha volta e outras tantas a chegar. Voltei a mim muito rapidamente e enquanto me punha de pé e as pessoas me diziam “ó meu filho vê lá se partiste alguma coisa”, “ai que tens de ir ao hospital”, “estás bem?” eu só dizia “a minha carteira? onde está a minha carteira?”. Deram-me a carteira e lá fui eu a cambalear em direcção à loja das bicicletas. Mas os sujeitos não me deixaram. Tive mesmo de ir ao hospital. Felizmente, e apesar de ter amassado o pára-choques e o capôt e partido o farolim do automóvel, não tinha nada de grave. Arranquei uns pedacitos de carne aqui e ali e fiquei com dores mais além, mas nada que não passasse em poucas semanas. O medo de sair à rua por causa dos automóveis, esse durou mais algumas semanas a passar.
Alguns anos mais tarde tive uma infecção na boca. Era de tal ordem que eu tinha dificuldade em engolir o que quer que fosse. A dieta passou a ser integralmente líquida e toda administrada por palhinha. Mas eventualmente a coisa evoluiu de tal forma que eu não conseguia mesmo engolir o que quer que fosse, nem com anestésico! Nem a própria saliva. E foi aí no auge da doença, que a minha namorada me resolveu fazer uma visita. Estava eu lá em cima no quarto quando ela bate aqui à porta com um bolo para o menino doente. Um bolo?... Mas!?!?... Era eu no quarto, com uma caixa de plástico no chão para onde escorria a saliva que eu não conseguia engolir e era a família toda lá em baixo, à mesa, a comer o bolo para o menino doente! :)
Depois de um ou dois dias sem comer nem beber praticamente nada a minha mãe levou-me ao hospital onde tive mais um episódio daqueles. Enfiaram-me um tubo pelo nariz, bem até ao fundo, que eu depois fui engolindo até ele ficar bem no meio do esófago. Depois trouxeram-me uma tigela de leite morno que me administraram pelo nariz! E que sensação tão estranha... O estômago a encher com o leite, e a boca sem sentir nada!...
Mais ou menos na mesma altura constatei que um dos meus testículos era bem maior do que o outro. O trauma das assimetrias! Comuniquei a descoberta à minha mãe, com a devida preocupação, porque com as jóias da coroa não se brinca! A minha mãe encaminhou-me para o especialista do assunto lá no hospital. E esse foi mais um dos momentos altos que muito contribuíram para a minha felicidade. O senhor doutor pediu-me para me despir e me sentar na maca de pernas abertas. Enquanto ele colocava as suas luvas de latex, a notícia que o filho da senhora doutora estava ali espalhou-se pelo hospital. Assim que o senhor doutor começou a apalpar-me os testículos começaram a chegar os primeiros curiosos. Pouco depois lá estava eu, pernas escarrapachadas, o senhor doutor a apalpar-me os tomates, e uma comitiva de homens e mulheres de todas as idades a assistir ao espectáculo do filho da senhora doutora!
Depois fui operado ao nariz. A anestesia, que incluiu quantidades nada negligenciáveis de cocaína, foi à risca para a complexidade da operação, e lembro-me da sensação de me endireitarem o septo do nariz. Endireitar significa antes de mais nada entortar. Mas não vou avançar com pormenores. Quando finalmente acordei da operação, completamente grogue, a primeira coisa que fiz foi vomitar uma grande quantidade de sangue. Mas o mais engraçado foi o período de convalescença. Com dois tubos espetados no nariz e a cara inchadíssima, não poderia ter ficado mais parecido com um porco, com uma tomada logo em cima da boca. E tinha que tomar antibióticos. Todos os dias, em braços alternados, uma injecção enorme de uma bomba antibiótica qualquer.
Enfim, muitos outros episódios ao longo da minha vida contribuíram para a minha felicidade.
Hoje tenho uma unha do pé negra, o que é uma verdadeira tragédia, tenho um ombro que está há mais de seis meses a recuperar de uma luxação, tenho má oclusão dos maxilares e consequente estalido de cada vez que abro e fecho a boca, tenho dentes tortos e com abfracção, tenho os primeiros sinais de vista cansada, e quem sabe de cérebro cansado?, tenho um intestino que se irrita muito facilmente e que produz biogás a um ritmo alucinante, tenho alergias brutais no nariz, tenho o sono incrivelmente ligeiro, tenho ligeiras dores em algumas articulações, tenho uma incrível falta de flexibilidade no corpo, tenho o meu reduzido espólio espalhado por quatro casas de norte ao sul do país, tenho um automóvel velhinho e avariado... Mas sobretudo, hoje não tenho televisor! E isso certamente contribui bastante para a minha felicidade!
A verdade é que estou feliz! Aliás, bem mais do que isso, a verdade é que sinto que sou feliz. E desculpem-me se a minha felicidade, em tempos de crise, vos soar a uma afronta.
Sou feliz porque apesar de tudo tenho saúde, tenho a cabeça e os sentidos bem despertos, tenho muitos sítios onde dormir, tenho roupa para vestir, tenho comida para comer. Tenho condições para viver. Em resumo, tenho vida. E tenho tudo o que se consegue fazer com isso.
Mas sou também feliz porque para além de ter vida, tenho tido vontade, energia, perseverança, espírito de sacrifício e tudo o mais que é necessário para ultrapassar os desafios que eu próprio me coloco e também as barreiras que me surgem sem eu querer ou esperar.
E sou ainda mais feliz porque tive a sorte, e quem sabe o saber jogar, de ter um pai assim, de quem herdei a paixão, os sentimentos à flor da pele, o calor da luta; uma mãe assim, de quem herdei a delicadeza e essa grande virtude que é não nos perdermos no vazio e na solidão; porque tive a sorte de ter um pai e uma mãe de quem herdei esta cabeça que não pára; porque tive a sorte de ter amigos como vós, de quem aprendi tanto, paciência para vos aturar :) e sobretudo tolerância.
Sou feliz por ter tido a sorte de ter amigos como vós com quem pude viver, trocar e receber tempo, energia, medos, frustrações, alegrias. Amigos que me ensinaram a amar e a ser quem sou.
Obrigado por isso.
Hoje sou feliz e sinto-me feliz porque me conheço melhor, porque me faço melhor, porque conheço melhor o mundo e porque o tento fazer melhor. Sou feliz porque gosto do cheiro do incenso e sei que o incenso não é um pauzinho que arde mas sim uma planta. Sou feliz porque sei que Portugal nunca produziu tanto na sua história como hoje produz...
E isto da economia introduz o último capítulo da história da minha felicidade.
Há pouco tempo publiquei no meu blogue uma mensagem acerca dos números do produto interno bruto (PIB) português. Os números são produzidos pelo Instituto Nacional de Estatística (INE), um organismo sob a tutela da administração central, tanto quanto julgo saber. E se assim é, e se os números nem sequer são favoráveis ao discurso do governo, então eu tenho bons motivos para acreditar nesses números, ou no que eles parecem revelar. E o que eles revelam é precisamente aquilo que acabei de afirmar: que nunca na história Portugal produziu tanto como produz hoje. Está bem, talvez tenha sido capaz de produzir um pouco mais em 2008 do que em 2009. Mas em geral, nós produzimos hoje mais 30% do que produzíamos em 1995. E isto é, tanto quanto nos é possível dizer, um facto!
Mas então se assim é, afinal onde é que está a crise?
Bom, a verdade é que há muita gente com muito pouco dinheiro e com dificuldades sérias em conseguir manter os consumos básicos do dia-a-dia. É verdade que o desemprego é hoje muito superior ao que era em 1995. Mas então, se também é verdade que em termos médios hoje produzimos muito mais, a consequência necessária é que tem de haver muita gente que está muito melhor na vida hoje do que estava no passado. Ou seja, as desigualdades aumentaram muito.
Mas voltando à minha pergunta: onde está a crise? Há sem dúvida muitas crises individuais. Há pessoas que, como disse, têm dificuldade em garantir condições básicas para uma vida digna: alimentação, vestuário, habitação... Mas apesar de tudo as pessoas que assim sentem a crise são uma minoria quando comparadas com todas as demais.
Para além dessas pessoas, há sem dúvida muitas outras que neste preciso momento não se sentem nada bem, por motivos económicos e não só, apesar de terem garantidas essas condições mínimas para uma vida digna.
A crise é subjectiva. O sofrimento de não poder usufruir de um iate pode ser tão grande como o de não poder comprar livros de estudo para os filhos. Quem somos nós para julgarmos o sofrimento de outra pessoa? O sentimento de crise é subjectivo. A crise é o mal-estar. A crise é subjectiva. A crise está dentro de cada um de nós.
E é este o momento em que eu tenho de dizer:
irmãos... dai as mãos... orai comigo!
Mas para lá dessas crises que as pessoas sentem à sua maneira, eu sinto que há uma crise mais profunda que nos afecta a todos. Fala-se muito de uma “crise de valores”. Pois... deve ser dos valores da bolsa! O único valor que aparentemente está em vigor, e já não é de agora, é o dinheiro. Esse valor nunca esteve melhor!
Ai as cunhas que pouca vergonha e tal... Mas se alguém tem um amigo numa situação que o pode ajudar e não utiliza essa relação para conseguir mais dinheiro é um lorpa. E ai os pobres, coitadinhos e tal... Mas se algum empresário paga mais aos seus trabalhadores quando pode pagar menos é um lorpa. Ai estes ladrões, que nunca houve tanta ladroagem e tal... Mas se alguém encontrar uma carteira e não a esvaziar primeiro antes de a devolver é um lorpa.
Vistas as coisas ao contrário, a justificação de que alguma acção ou omissão permite obter um rendimento superior parece válida em todas as circunstâncias. Esse é o único valor que eu vejo que anda aí em força. E se assim é, como é que se pode falar em crise de valores? Não há crise de valores nenhuma! Não há é valores, o que é diferente!
Às vezes até parece que as pessoas todas têm esses valores da honestidade, da humildade, da lealdade, da transparência, da justiça, da solidariedade e o que mais for bem dentro de si, bem presentes, e que são os outros que não os têm e/ou que não permitem que nós façamos as coisas da maneira correcta. São os outros. São sempre os outros. Tal como aquele inquérito à agressividade na condução, em que quase toda a gente responde que os outros são muito agressivos quando conduzem... Alguma coisa não bate certo, certo?...
Bom, para mim a crise é só uma e resume-se nisto: nós, cada um de nós, vivemos fechados cá dentro da nossa cabeça, esquecendo que dentro da cabeça que está imediatamente ao nosso lado está outra pessoa com quem podemos partilhar tanto. A vida é hoje muito mais complexa do que era porventura há uns séculos atrás. De alguma forma esta vida mais complexa fez-nos acreditar que há muitas vidas possíveis e que não se cruzam. No entanto, eu defendo que, apesar de não conhecermos as mesmas coisas e apesar de não termos de gostar das mesmas coisas, temos e podemos querer-nos bem uns aos outros.
Dizia o José Mário Branco numa das suas letras “já vivemos tão juntos e tão sós, que da vida perdemos o sentido”.
A crise é acreditarmos tão firmemente que isto não pode ser de outra forma. Que a economia não pode ser de outra forma. Que a vida dos outros não pode ser de outra forma. Que a nossa vida não pode ser de outra forma. É a ideia de que já não há nada por fazer, a não ser prosseguir com o que já existe, e o vazio que daí resulta. É a falta de sentido que isto tudo faz.
A crise é a falta de sentido.
Em contraponto, Sophia de Mello Breyner dizia:
Apesar das ruínas e da morte
Onde sempre acabou cada ilusão
A força dos meus sonhos é tão forte
Que de tudo renasce a exaltação
E nunca as minhas mãos ficam vazias
Há muito por fazer, há sim. E há sentido para as coisas. A felicidade é o nexo e o sentido.
A minha felicidade é o sentido que não me falta.
Quero-vos bem.
Desculpem qualquer coisinha.
Obrigado por estarem aí, por me darem sentido, por me fazerem feliz!
AWF, discursado em versão resumida a 4 de Julho, escrito em versão definitiva a 10 de Julho.
segunda-feira, 12 de julho de 2010
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......Ainda estou a aplaudir..
ResponderEliminarObrigada por tudo.
Dinha Minhau.
E que a felicidade esteja sempre contigo meu querido.
ResponderEliminarTenho muito orgulho por te ter como amigo.
Inês