terça-feira, 24 de agosto de 2010

Destas formas de amar - parte 1...

Destas formas de amar todas... Umas mais à esquerda, outras mais intensas, umas mais caseiras, outras como uma montra de uma loja no Natal...

Porque é que amar tem de doer?

O que é ser “cool”? Cool é o tipo impassível, que parece estar sempre acima de tudo o que se desenrola ao seu redor. Acima, ao lado, tanto faz... noutro universo. Há muitas formas de ser cool. Uma delas é estar simplesmente distraído. O carro dirige-se a uma velocidade assombrosa para o nosso sujeito cool. Está-se mesmo a ver que vai causar muitos danos. Mas o nosso sujeito cool continua entretido a palitar os dentes com uma palha qualquer arrancada do chão uns minutos antes. Trinca, mastiga, faz movimentos com os lábios... Que esplendoroso que sou... Ah!... Que belo dia este!... E o carro sempre a andar, a direito ou a torto, na sua direcção...

Outra forma de ser cool é ser simplesmente imbecil. Ignorar causas e consequências quando elas estão escarrapachadas mesmo à frente do seu nariz... Algo muito próprio de um crocodilo, por exemplo... Saber que o inimigo tem uma arma apontada à sua cabeça, mas esquecer-se que ela até pode ser disparada e que possivelmente isso irá provocar algum mal-estar...

Ou então ser egoísta. Esta é a forma mais admirável de se ser cool. Porque se tem a possibilidade de pensar e sentir um pouco, de se ser solidário, preocupado e responsável, mas em vez disso opta-se pela estratégia do “que é que eu tenho a ver com isso?”. Não querer saber é muito mais sofisticado e tem muito mais estilo do que um não poder saber porque se está distraído ou não se sabe pensar com dois dedos de testa. Imaginemos o herói de Hollywood que num cenário de verdadeira catástrofe se está a marimbar para tudo o que ocorre à sua volta...

“Cool” significa frio em inglês. É cool o tipo que é frio, isto é, que não sente. Assim um pouco como um calhau à sombra. Ou como o nosso crocodilo, animal de sangue frio, sempre cool, misteriosamente mesmo quando se deita ao sol. Um animal cem por cento cool.

Porque é que um tipo cool há-de mover um dedo para o que quer que seja? Na realidade, se levarmos as coisas ao limite, o tipo cool não há-de mover dedo algum. Há-de permanecer sempre cool no seu lugar, com um sorriso no canto da boca, e a mesma palha já sobre-mascada e a parecer um monte de baba unido por um fio castanho, até ao seu juízo final. Nesse momento ele irá encarar a própria morte com o mesmo sorriso no canto da boca. E será ainda esse sorriso que ele apresentará ao São Pedro às portas do céu, ciente que ninguém o poderá acusar de pecado por acção... Talvez um pouquito por omissão, vá lá... Mas também se tiver de ir para o inferno, isso não é nada que apoquente um tipo verdadeiramente cool.

Na verdade, a emoção tem um papel fundamental na acção de um indivíduo. Estão bem documentados casos de pessoas com distúrbios mentais que afectam sobretudo as emoções, embora deixando as respectivas capacidades técnicas intactas, e que se transformam em pessoas completamente inertes, vegetais autênticos, porque perante situações concretas não são capazes de tomar uma decisão sobre agir ou não agir, ou acerca da forma como agir.

Acerca disto eu costumo utilizar o exemplo do sujeito que se passeia num jardim romântico, daqueles com caminhos em desenhos muito pouco rectilíneos, normalmente ladeados por canteiros ou sebes de algum tipo de arbusto. Eventualmente o sujeito poderá deparar-se com uma bifurcação do caminho em que segue, com os dois caminhos resultantes perfeitamente simétricos e voltando a unir-se alguns metros mais adiante. Como é que o sujeito decide qual dos dois caminhos tomar?

Numa tal situação, um ser perfeitamente racional, qual computador com pernas, resolvendo passos de algoritmos a cada passo do caminho, poderia empancar. Bom... talvez se resolvesse a situação saindo e voltando a entrar!...

As emoções são fundamentais para as decisões, para as opções, e por essa via são também fundamentais à acção. E se assim é, então o indivíduo perfeitamente cool, frio, insensível, terá sérias dificuldades em agir. O que também está certo, uma vez que se coaduna muito bem com o seu estatuto de cool, o tipo que mantém o sorriso no canto da boca mesmo quando o prédio onde está ameaça ruir em pleno terramoto. Nunca ninguém saberá se o tipo era um cool com pinta ou um cool idiota, mas enfim!...

Quando se sente, a coisa muda de figura. Sentir, ter emoções, é gostar e desgostar, é querer e não querer, é o contrário de ser impassível. Uma pessoa que gosta, não pode ficar indiferente quando o objecto desse sentimento se modifica. Gostar é ter sangue a fluir, é ter rubores e suores nos sítios e nos momentos mais inoportunos. É coração, é vermelho, é calor. Quem sente e quem gosta, verdadeiramente, não pode ser cool. Uma mãe cool perante o seu filho deveria ser internada de imediato!

Sentir muito, gostar muito, querer muito não implica apenas coisas boas. Uma consequência negativa é, por exemplo, a interferência desses fortes sentimentos no pensamento racional clarividente. E pouco será necessário dizer a este respeito, pois acredito que todos já passaram por, ou já foram testemunhas de, situações aflitivas em que a aflição comprometeu um potencial melhor rumo para os acontecimentos.

Outra consequência negativa de querer muito é a possibilidade de não ver esse sentimento correspondido. Em quase todas as coisas que uma pessoa quer muito há um conjunto de factores dos quais apenas uma pequena parte depende principalmente (já nem digo exclusivamente) do sujeito desse querer. Queremos que o Olhanense ganhe o campeonato, que o PIB aumente, que o nosso filho tenha boas notas na escola, que o trânsito esteja bom amanhã de manhã, que não chova, que os tomates não sejam atacados pelos bichos, uma promoção no trabalho, ganhar a lotaria, etc., etc., etc. E sempre que queremos algo que não depende de nós corremos o risco de ficarmos desiludidos, de perdermos a ilusão de alcançarmos a coisa querida.

Conforme algumas religiões o afirmam, o desejo é a fonte do sofrimento.

Então, qual é a solução? Bom, é bastante evidente que se o desejo é a fonte do sofrimento, para não sofrer basta não desejar, isto é, ser cool. Ser cool é, portanto, o caminho para o não sofrimento. Infelizmente, ser cool é também o caminho para o não prazer. E também, digo eu, para uma existência mais idiota, porque mais desprovida de sentido. Creio que Buddha terá sido muito cool... e não sei se isso é muito abonatório... Mas vá, temos de inserir as coisas no seu contexto histórico se queremos compreender o seu total significado. Buddha viveu alguns séculos antes do outro... como é que ele se chama?... o... o... o Cristo! E bom, nessa altura a vida não devia ser muito fácil, sobretudo para quem houvesse encarnado noutro ser que não um sujeito poderoso. Não admira, nesse contexto, que deixar de ter grandes prazeres fosse um preço razoável a pagar para deixar de ter grandes sofrimentos.

Quem advoga, no entanto, que na sociedade actual o melhor caminho para ser feliz é deixar de querer coisas (não necessariamente para nós próprios), é porque leva uma vida mesmo infeliz, ou então porque não está a ver bem o cenário todo. Certamente a minha opinião é bem diferente.

Eu acredito que a felicidade se adquire sobretudo pelo sentido que conseguimos atribuir à vida, como um todo, e a cada pequena parcela que a constitui na medida em que possa estar de acordo com o sentido mais geral.

Ora racionalmente, tanto quanto julgo saber, é difícil de fixar um sentido para a vida. Quererão porventura ajudar-me a explicar qual o sentido de os átomos do meu corpo se terem agrupado e em conjunto decidirem começar a escrever sobre este assunto?...

O sentido das coisas e da vida, o rumo que lhe damos, depende das nossas emoções, depende daquilo que queremos para o mundo que nos rodeia e para nós próprios.

Afirmo, portanto, que a felicidade depende do sentido e que o sentido depende da nossa vontade. Afirmo em simultâneo que a vontade é a fonte do sofrimento. E para que não julguem que endoideci de vez, afirmo o conjunto destas duas afirmações, isto é, que o sofrimento faz parte da felicidade. Isto é, não há solução para a intenção de querer ser feliz sem sofrer e é um beco sem saída pretender que a felicidade se alcança evitando o sofrimento. Evitando o sofrimento evita-se também a felicidade.

A meu ver só temos uma dimensão ao longo da qual nos podemos tentar posicionar: é a dimensão que tem num extremo a segurança e no outro extremo a assunção do risco. Creio que o posicionamento ao longo desta dimensão, mais para um lado ou mais para o outro, depende principalmente da dimensão dos nossos medos e da nossa capacidade para os ultrapassar (e não eliminar), isto é, do nosso espírito de sacrifício, da nossa capacidade para suportar a dor, da nossa entrega (ao conhecido e ao desconhecido).

Dizendo o mesmo de outra forma, defendo que devemos assumir tantos riscos (de preferência que não sejam riscos idiotas, ou seja, com probabilidades reduzidíssimas de sucesso, e isto remete para a discussão sobre a nossa capacidade de discernimento, o que ocuparia toda uma outra palestra) quanto o nosso espírito de sacrifício o permitir. Penso que a felicidade depende disso. A felicidade depende de assumirmos riscos, de querermos coisas, de nos sujeitarmos às consequências menos positivas que daí possam advir. Se queremos ser felizes temos de querer muitas coisas, de nós e dos outros e do mundo, para nós e para os outros e para o mundo.

Amar é querer muito. Amar é fonte incerta de felicidade e de tristeza. Não tem de ser de uma ou de outra forma. Mas é um risco que se corre.

Valerá a pena? O que fazer quando dá em sofrimento?... Tema para um próximo capítulo.


AWF, Lisboa, 23 de Agosto de 2010

1 comentário: