sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Há quatro anos era assim...

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2006.

32 anos.

E a mesma sensação de vazio.

Esta mesma sensação de estar só.

Nem amigo, nem companheiro, nem camarada.

Nem quem nos compreenda, nos aceite e nos apoie,

nem mestre que nos guie nesta falta de sentido.

Segui, pelos meus próprios passos

e pela minha própria vontade

o meu próprio caminho.

Ninguém me disse para vir por aqui.

Ninguém me mandou para longe.

Bem pelo contrário.

Fui eu que quis vir.

Porquê?

Olho em volta. É escuro.

É escuro por cima e a toda a volta.

A lama que me prende os pés é também escura e fria.

Nela estou de pé, descalço, perdido e só.

Cheguei aqui caminhando confiante

de peito feito e cabeça levantada,

certo de descobrir novos caminhos,

certo de fazer novos caminhos,

de os deixar para quem vier.

Conduziram-me sempre os meus sonhos

e a esperança de chegar ao outro lado.

Dizia bem alto para todos ouvirem

que o caminho podia ser duro,

mas só aceitando o sofrimento se podia chegar ao outro lado.

E dizia que no outro lado a vida era melhor.

E agora é tudo escuro.

Quando paro e olho em volta

é tudo escuro e frio.

E estou só.

Nem as minhas pegadas as posso ver

que a lama já as recobriu.

Não há mesmo caminho.

Nem para trás, nem para diante.

Ninguém veio comigo.

E agora já ninguém pode seguir as minhas pegadas.

Aqui onde me encontro,

só eu mesmo me posso preencher.

A fonte imensa que sempre senti em mim

e que julgava ser para os outros, para todos,

não é afinal para mais ninguém,

a corrente imensa que de mim brota

e que me faz mover nesta existência autista.

Às vezes voo para longe. Voo. Vou para longe do meu corpo

e deste lamaçal. Vou à procura.

O desperdício da corrente que de mim brota

directamente para a lama,

a água cristalina que num instante se torna suja,

dá-me às vezes forças de procurar quem a queira.

Vou à procura de quem dela queira, de quem dela necessite.

E voo para o dia. E encontro gente atarefada.

Gente que parece saber bem o que quer e como o conseguir.

Correm daqui para acolá, são sérios, fazem coisas importantes

e assumem as suas responsabilidades. Vestem-se a rigor, acordam a horas,

fazem como é suposto e garantem que os outros também fazem como eles supõem.

Conhecem os perigos da subida do preço do petróleo,

das flutuações nos mercados de futuros,

da baixa taxa de natalidade,

da imigração clandestina,

do défice orçamental,

dos incêndios,

da falta de qualificação,

da sustentabilidade do sistema de saúde público,

da queda de granizo e dos acidentes de viação.

Protegem-se bem. Casam. Trabalham. Têm filhos. Trabalham. Investem.

Protegem-se com seguros, airbags, pprs, portas blindadas, currículos fantásticos.

E aparentemente estão bem.

Não fosse eu ver bem para lá das aparências

e tudo o resto me surpreenderia.

Surpreender-me-ia como me querem

quando suspeitam o que cá dentro tenho para lhes dar.

Como querem o meu ombro, o meu ouvido,

o meu braço forte e o afago da minha mão.

Como querem a minha corrida de um lado para o outro,

como me querem dentro da sua corrida

e a correr ao seu lado.

Mas não me surpreende.

E dou. Dou-me a quem mais me quer.

O ombro, o ouvido, o braço forte.

E quando depois do meu esforço,

quantas vezes exausto,

me retiro,

o que fica para quem fica é apenas a minha retirada.

Do que dei, daquilo que sentia dentro de mim a querer sair,

do esforço do meu voo, da minha procura e da minha entrega,

o que fica é um pouco da muita água antes cristalina

agora protegida com E-224

dos medos de quem a guarda.

E quando me retiro, cansado,

todos perguntam “porquê?”, “para onde?”…

Para dentro de mim. Para os meus sonhos.

Para o caminho que sozinho construo.

Querem vir?...

Não, não querem.

Zangam-se comigo por os deixar.

Olho em volta.

Tudo escuro e frio.

Ninguém.

Olho para o chão.

A água outrora límpida agora barrenta e misturada com a lama.

“Que diferença faz?” – pergunto a mim mesmo.

Aqui ao menos é livre.

Mas não é como eu a queria.

Nem aqui nem lá, por onde às vezes voo.

Eu queria a minha fonte ininterrupta

a matar a sede num mundo mais justo

a correr nos regatos de um mundo mais calmo

a mover os moinhos dum mundo mais limpo

a encher de energia um mundo mais alegre

a repartir-se nos regos dum mundo mais solidário

a encher os lagos dum mundo mais belo

e

nas suas superfícies espelhadas

a reflectir caras de pessoas mais fortes.

“Que diferença faz?... Ao menos aqui é livre…”

32 anos. E a mesma sensação de vazio.

Vou embora!

Estou farto!

Levanto voo como posso e vou.

Vou à procura de outro eu.

Compro um cachecol da selecção das quinas,

vou até à beira mar,

vejo televisão,

como pizza,

acelero na estrada,

durmo pouco,

e trabalho,

e bebo,

e trabalho,

e vou aos encontros,

e cumprimento as pessoas

no trabalho,

e vou às compras

e cumprimento as pessoas

que trabalham.

A minha roupa, cuidado! O meu cabelo, a minha pele… Cuidado com o bronzeado à trolha! O meu carro, sujo?... O curso em cinco anos, se faz favor!

Ignoro as bombas na palestina,

ignoro quem me insulta no trânsito,

ignoro quem me conta como foge aos impostos

e vibro com a selecção,

grito “Viva Portugal!”

e corro atrás das promoções

gasto dinheiro,

ganho dinheiro

gasto dinheiro,

ganho dinheiro,

troco o meu tempo por coisas e coisinhas,

troco o meu esforço pelo mundo dos outros,

vendo-me, com tudo o que tenho, por um pedaço de nada.

Vazio?...

Prefiro gostar de mim.

Na minha lama tenho mais tempo. E gosto mais de mim.

Sofro, é certo.

Mas de que me adianta voar, se eu mesmo

nunca deixarei de me acompanhar nos meus próprios voos?


AWF, Valongo, 4 de Julho de 2006

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