quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Sobre o Outono e outras coisas... mas no fundo, sobre os afectos.

(retirado sem autorização daqui)

[...no último sábado...]

Hoje é sábado. O dia... é sábado! Acordei com mais vagar, comi com mais vagar, lavei-me com mais vagar, com mais vagar e mais despreocupação me vesti. Não fui ao Porto. Não fui passear. Fui ao supermercado. Queria pão, fruta, aquelas coisas do costume que costumam acabar depressa nas casas das pessoas.

Escolhia fruta. As escolhas do costume: as maçãs mais pequeninas são mais baratas, as pêras, as uvas mais feias, que ainda têm aspecto de ser uvas normais... E de repente, mesmo em frente dos meus olhos, uma grande travessa cromada com diospiros a desfazerem-se em pasta vermelha e doce, aquilo que eles são quando estão bem maduros e que os torna atractivos para quem deles gosta e repugnantes para os demais.

Desfaziam-se de maduros, e eram quatro vezes mais caros que as pêras ou as maçãs... mas tinha de levar uns quantos. Há coisas que têm de ser. E para mim têm de ser estes pequenos pormenores que, mesmo com alguma artificialidade propositadamente esquecida, me fazem sentir que ainda estou minimamente ligado à terra, às plantas e aos bichos, às estações, ao fluir cíclico, cíclico e não linear, do tempo. Tinha de comprar os diospiros. O Outono está deveras aí! E teria sido esse o primeiro sinal, se não fossem a chuvada e a ventania dos últimos dias... e as romãs.

As romãs também são uma marca das estações, um símbolo do Outono. Também têm de ser. Mas comparar diospiros a romãs é como comparar papoilas a proteas. A romã é dura, resistente. O diospiro é daqueles frutos que exige uma grande bandeja cromada para recolher os pingos doces que vão caindo... Que quando está verde é intragável e quando está maduro desfaz-se logo. E depois, saco dentro, balança, caixa registadora, transporte, casa, abre-se o saco, e já estão todos desfigurados dos maus-tratos que sofreram. Os diospiros, tal como as papoilas, fazem-se respeitar!

Peguei num diospiro moribundo, passei-o rapidamente num fio de água, levei-o à boca. Os diospiros maduros sorvem-se. Comer diospiro sem nos lambuzarmos é como olharmos para flores através da vidraça. E no momento em que ia tocar no diospiro lembrei-me da minha tia.

A minha tia morreu há quatro anos. Quando era bebé ela ajudou a tratar de mim. Quando já andava, ela tratou de mim. Quando já andava na escola, ela ainda tratava de mim. Não teve filhos, e tratou de mim como se fora seu filho, até à idade em que somos adultos, e nos sentimos inibidos de dizer que precisamos de alguém que trate de nós. Como ela própria também precisava que tratassem dela. Mas só percebi isso mais tarde. E então comecei a tratar dela também. Devagarinho para começar e aos poucos com mais vagar.

Até que um dia começou a falhar-lhe a memória e eu comecei a ouvir as mesmas histórias uma e outra vez. Até que perdi a conta às vezes que ouvia as mesmas coisas. Até que ela começou a esquecer-se do vocabulário mais complexo, e começou a ter dificuldade em pronunciar as palavras com mais sílabas. Até que tudo o resto, num decrescendo constante que lhe tirou a capacidade de se compreender a si própria. Até ao fim.

E eu, que durante tantos anos recebi dela os seus cuidados, passei a ser actor de outros cuidados. Nunca tantos como o meu tio. Eu estava com ela algumas horas por semana. Ele viveu a vida toda, toda mesmo, ao seu lado. E ele, que recebia dela tantos mimos que o impediam de saber tratar de si, aprendeu a gerir o seu próprio dinheiro e a comprar os medicamentos para ela, aprendeu a cozinhar e a alimentá-la diariamente, aprendeu a ser dono e senhor da sua própria vida e da sua companheira. Tanta coisa mudou nele. E ele a mudar coisas. Vendeu a roulotte, comprou um carro mais alto, no qual a minha tia entrasse e saísse mais facilmente. Trocou a banheira por um grande duche sem o inconveniente de ter de saltar o muro para entrar lá dentro. Fez o que sentia que tinha de fazer. Eu fiz o que senti que podia fazer.

Ouvi-lhe as histórias com paciência. Com vagar. Uma e outra vez, bem mais do que uma e outra história. À medida que o tempo e a doença iam consumindo as suas ideias, as histórias foram sendo filtradas. Foram sobrando algumas histórias. Podemos dizer que sobraram as mais importantes, sem saber no entanto o que estamos a dizer. Seria preciso compreender o cérebro e a memória como ninguém compreende para saber porque umas coisas marcam ou perduram mais do que outras. Mas à falta de melhor, ficam-nos os factos e as interpretações que cada um pode fazer deles.

Todas as histórias eram do seu passado, da forma como os acontecimentos da sua vida a tinham marcado. Ouvi muitas vezes a história de como ela trabalhava a entregar chapéus, daqueles chapéus que se faziam antigamente, por medida, e que eram depois entregues ao seu novo dono numa caixa toda bonita com o formato externo do chapéu. De como um dia foi atropelada e as caixas e os chapéus voaram todos pelo ar, e de como o seu patrão lhe deu um copo de água com açúcar para a reconfortar. E como aquele copo de água com açúcar e aquele gesto tão simples lhe ficaram gravados na memória!...

Ouvi tantas vezes a história de como ela tinha de tratar da limpeza da casa dos pais, onde vivia, juntamente com os dois irmãos. E de como também limpava a casa de uma tia dela. E de como um dia essa tia lhe permitiu que tomasse um banho de imersão na banheira lá de casa. E que bem que lhe soube esse simples banho de água quente numa banheira digna, apropriada. E como nunca mais se esqueceu disso.

Ouvi-lhe muitas outras histórias. De coisas boas e más. E é difícil dizer se eram mais as coisas boas ou as más, porque em todas as histórias más parecia haver sempre um pormenor bom que transformava tudo.

Uma das histórias que ouvi mais vezes foi a de como um dia o seu pai, que sempre foi muito negligente, e que sempre a negligenciou mais a ela do que a outras pessoas, sabendo que ela gostava, lhe levou diospiros. E como ela descrevia a delícia que foi para ela receber aquele embrulho de jornal, com diospiros dentro!... Quantas vezes lhe ouvi dizer, sempre com a mesma emoção “ai, que bem que me soube!”.

E assim, tal como nunca me esquecerei da minha avó materna a mostrar-me as flores a explicar-me como a cor verde, ao contrário do que julgamos, liga bem com todas as outras cores, também nunca me esquecerei da minha tia, todos os Outonos, na época dos diospiros maduros. E nunca me esquecerei de como até ao fim, pela senilidade mais profunda adentro, lhe ficaram sempre as memórias destas coisas tão simples, destes simples gestos de afecto que todos podemos ter a qualquer instante por alguém e que podem transformar a sua vida de uma forma mais radical do que suporíamos.

(...porque o quadrado da hipotenusa
é igual a já não sei quê dos catetos.
A traça do passado é tão confusa,
mas tão límpida a lembrança dos afectos...

Sérgio Godinho)

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