Sensações e sentimentos que me deixou esta peça de teatro...
Trabalho. Nos dias que correm até parece que isso é uma sorte. Mas tenho os tostões contados. Há muitos pior do que eu, mas a verdade é que a minha vida é contadinha, e no fim de contas parece que corro e não saio do sítio... Parece que o progresso se traduziu numa espécie de tapete rolante, como os que existem nos ginásios, colocado sob os nossos pés: a nossa vida é mais sofisticada, mas com menos sentido...
Enfim, o dinheiro não me chega para a sede de cultura que tenho. Esta sede, ironicamente ou não, é também o resultado do frenesim do progresso. Daquilo a que chamam progresso. E dá-me vontade de ler livrarias inteiras, de estar em todos os locais ao mesmo tempo a assistir e a participar em tudo o que acontece à minha volta. E não posso.
Vim para Lisboa trabalhar. Sou do Porto. O Porto tem coisas boas e coisas más. Eu preferia viver noutro sítio, mas certamente nunca em Lisboa. Lisboa também tem ainda mais coisas boas e mais coisas más que o Porto. Vim para aqui atrás do trabalho... mas sinto-me em trânsito, entre o passado e o futuro, entre o Porto e outro sítio qualquer que há-de vir.
Mas Lisboa também tem coisas boas. E se tenho de gramar as coisas más, o melhor é aproveitar também as boas. Uma delas é a grande oferta cultural, a grande quantidade de coisas a acontecer todos os dias à nossa volta... e uma rede de bibliotecas públicas bastante razoável. Tornei-me frequentador dessas bibliotecas. Aconselho vivamente. Um cada vez mais raro exemplo de serviço público bem prestado à população...
De entre as coisas todas que se vão passando à nossa volta, há uma série delas que são gratuitas. Aprendi, nos anos em que estudava no Porto e tinha de viver com 200 euros por mês, a construir agendas de eventos gratuitos que iam ocorrendo na cidade. Eventos de tudo, porque não quero e não creio que a alma seja pequena, mesmo que esta causalidade possa (ou não) ser ao contrário.
Vim para Lisboa e apliquei o mesmo método à ainda maior oferta. Tenho uma folha de cálculo que me dá a possibilidade de optar, todos os dias, por três, quatro, cinco ou até dez eventos alternativos, todos gratuitos. Já divulguei tais folhas de cálculo, mas sinceramente sinto vontade de deixar de o fazer. Uma das razões para isso é que sinto que estou, ou posso estar, a minar as fontes de rendimento de artistas que bem precisam dele. Mas por outro lado, se as coisas não forem divulgadas, nem sequer as pessoas se habituam a desalapar o rabiote do sofá e a sair de casa...
Enfim, a verdade é que nestes meandros acabei por ganhar bilhetes para ir assistir a esta peça de teatro cujo título é "Vitória", pelo grupo Teatro dos Aloés, em exibição nos Recreios da Amadora.
Fui sem saber ao que ia. E saí de lá encantado!
E, já agora, como isto de ir sem saber ao que se vai e sair de lá encantado é uma coisa que me acontece não raras vezes, fica aqui o conselho: desalapem o rabiote do sofá e saiam de casa... E já agora, vão onde nunca foram, façam o que nunca fizeram, não deixem que a alma definhe.
À entrada, e com a devida antecedência relativamente à hora de início do espectáculo, dirigi-me ao "foyer" (não se arranjava um nome português para isto?) com vontade de tomar um chá: descobri que já havia uma chaleira com chá.
- Quanto é? - perguntei.
- Não é nada! - respondeu-me uma rapariga simpática do outro lado do balcão.
- Hummm... de camomila... Isto às tantas vai-me fazer dormir?...
- Não! A peça não é para dormir! - garantiu-me.
É uma peça num acto, com três personagens, todas muito principais. Três actuações muitíssimo boas e um enredo, que aparentemente simples, nos prende à cadeira e nos espreme como se fôssemos esponjas a libertar emoções... A encenação... bom, a encenação permitiu isto tudo sem sequer pensarmos nela. Muito bom mesmo.
Emocionei-me. Claro que me emocionei! Emociono-me com coisas muito menores... Mas se o digo assim é porque foi visível, é porque me saltou cá para fora.
Eu cresci com cenas de pais bêbedos a espancar mulheres e filhos, mansões cheias de história e de dinheiro, tráfico de droga, obras de caridade, campo, cidade, ricos, pobres, cultos, ignorantes, tudo e mais alguma coisa. Felizmente tive a sorte de saber, julgo eu, retirar as lições destas coisas todas.
Convivi, mesmo que só às vezes, mesmo que maioritariamente à distância, mas desde sempre, com as questões sociais bicudas do Zimbabwe e da África do Sul. Tinha família por lá. E tive direito a sermões sobre como não me devia nunca casar com uma preta e coisas do género.
Quando me calhou de ir trabalhar para o Zimbabwe vi-me confrontado com uma situação caricata e ao mesmo tempo muito triste: para além de todo o pessoal da empresa (o meu chefe também, claro) ser preto e de isso não ligar bem com o espírito colonialista dos meus familiares, vi-me obrigado a escolher se ia conviver com brancos ou com pretos. Certo era que assim que optasse por uns, seria ostracizado pelos outros.
Certamente Athol Fugard escreveu a sua peça num caldo pós-apartheid que continha isto tudo e muito mais, mas que, penso eu, tal como toda a parvalheira que encontrei e continuo a encontrar ao longo da vida, pode ser reduzido a uma essência: a capacidade (ou falta dela) de nos interessarmos pelos outros, de comunicarmos, de sermos solidários, em vez de nos fecharmos no nosso pequeno mundo e nos nossos problemas pessoais.
Num instantinho estavam ali resumidas a luta e a angústia que me acompanham desde há tantos anos...
Parabéns e obrigado a toda a equipa por isso.
Teatro "Vitória", até 27 de Março nos Recreios da Amadora, às 21:30, pela companhia "Teatro dos Aloés".
Texto do encenador José Peixoto acerca da peça (os negritos são meus):
"Para vencer o medo
Nasci no tempo do medo. Havia a guerra. Não sabia ainda ler, mas nas revistas que folheava havia sempre fotografias de corpos amontoados, de mortos, de feridos. Cheirava a morte.
Havia jovens que iam cumprir um dever que não sabiam muito bem qual era e que não voltavam mais.
Cresci no tempo em que as pessoas por medo não diziam o que sentiam o que sentiam ou pensavam. Era o tempo do fascismo.
Ainda não tinha feito 20 anos e numa praça de Lisboa encostaram-me uma metralhadora à barriga gritando que me fosse embora e tive medo.
Depois vestiram-me uma farda e mandaram-me para a guerra também. E via no rosto dos que comigo estavam que havia medo.
Com tanto medo e injustiça à nossa volta fomos aprendendo a fazer o exercício da alma que nos dava a força, a coragem e a ousadia de vencer o medo e lutar pela justiça e por um mundo em que os seres humanos olhassem para os seres humanos como seres humanos.
Um dia chegou a revolução e com ela a esperança ou a certeza de mudar o mundo e não se ouviu falar mais de medo.
Depois chegou a "crise" e as pessoas começaram a sentir outra vez o medo de perder o emprego, de perder as reformas e os benefícios sociais e começaram a calar-se como antigamente.
E o teatro também se calou com medo de perder o apoio, e a fingir que não era nada com ele começou a pensar em fazer rir muito o público, que queria divertir-se muito para esquecer a crise. E deixou de tentar pensar ou avaliar de onde vinham as crises.
Houve um tempo em que podia dizer aos meus filhos "Estuda e torna-te sábio que terás um belo trabalho à tua espera". Hoje não posso dizer nada disso sem mentir.
Houve um tempo em que me foi possível garantir um trabalho e até mudar de profissão, o que hoje não posso garantir aos meus filhos.
Parece que perdemos a esperança num mundo melhor e ganhámos o medo de o mundo se tornar ainda pior.
E para não enganar os meus filhos e não lhes legar um mundo pior do que aquele que herdei dos meus pais, nem ser cúmplice deste estado de coisas, tenho de olhar a realidade de frente e mostrá-la com toda a crueza, toda a verdade e toda a violência que nos impuseram. E pensar que a luta não terminou e que a minha segurança é frágil se não lutar também pela segurança dos outros.
Não me interessa o mundo da concorrência, da competitividade e da trapaça, nem viver num país com medo.
Resta-me a certeza de que o mundo pode ser diferente, as pessoas solidárias, fraternas, ajudando-se umas às outras e partilhando o que a vida tem de bom. Não temos que desconfiar uns dos outros.
E por isso vos proponho este teatro, nesta assembleia onde tudo pode ser partilhado e avaliado, discutindo convosco os caminhos da mudança na busca de um mundo onde valha a pena viver. Um mundo que possa legar aos meus filhos sem me envergonhar da minha própria vida e do que nela fiz.
Alfornelos, 1 de Março de 2011"
As crises vêm-nos das entranhas. Devíamos tentar compreender isso, em vez de passar a vida a complicar e a fazer de conta... Faço minhas, com a licença que acredito que ele me dá, as palavras do José Peixoto.
Ficámos muito sensibilizados com a sua história de vida (que eventualmente poderia dar uma reflexão sob a forma teatral...)bem como com o espaço que reservou ao nosso espectáculo. Gostaríamos de ter muitos espectadores assim. Seria bom podermos trocar impressões sobre a actualidade, oportunidade e eficácia de espectáculos desta natureza.Gostaríamos igualmente de o incluir na nossa lista de convidados.
ResponderEliminarSaudações e até breve
Pelo Teatro dos Aloés, José Peixoto