segunda-feira, 11 de abril de 2011

Uma costela orgulhosamente popular...

...(e os dedos lambidos de a esburgar)

Todos têm um lado negro.
O truque, dizem alguns, está em escondê-lo!
O meu truque, belo truque, está em mostrá-lo.
Querem poemas mal feitos?
Todos os que tenho. Não sei quantos são.
Querem desenhos infantis?
Todos os que fiz.
O meu andar, sempre corcovado,
o meu dedo, sempre no nariz,
o meu falar, sempre norteado,
que querer parecer de outro lado
foi coisa que nunca quis.

E a lista das desgraças estende-se sem fim:
o vestuário mal aprumado,
o vocabulário mal adaptado
ao contexto, ao que se espera de mim...
Os orifícios do organismo mal fechados,
os rodriguinhos do meu fado todos desafinados,
a barriga muito mal encolhida,
a camisa encharcada a meio da subida...
Vou trocá-la depois do banho, claro que sim!
E vou atirá-la para um canto, para onde estiver virado,
com a certeza de deixar tudo muito bem desarrumado...

Mas é assim que eu sou! Eu sou mesmo assim!

Vou tentando e o que me sai, sai,
sem filtros, máscaras, maquilhagens,
jogos de cintura, duplas personalidades,
trocas de casacas ou selecções de roupagens
que são artes, para alguns,
mas para mim banalidades.

Que a minha arte é outra.
Eu não me quero distinguir.
Distinguir do quê?
Dos outros?
Para quê?...
Ser diferente...
andar para a frente, sempre a fugir
o nariz ao alto e o estilo em riste,
o olho à frente e a mente insiste
em ficar p’ra trás e em inquirir:
“e os meus passos: quem os vai seguir?”

À minha volta vejo gente,
muita gente,
perita no armanço aos cágados,
verborreando versos que não entende,
papagueando tipos que não intui,
filosofando ideias que não constrói,
calcorreando ruas que nem eu sei,
sem saber ao certo aonde vai.

Gente indiferente à outra gente,
gente que só fica contente
quando sente cócegas no umbigo
e os planetas e as estrelas e o sol nascente
demonstram inequivocamente
que tudo no universo tem a ver consigo.

A minha arte é outra bem diferente!
Eu não quero ir atrás ou ir à frente!

Eu quero ser eu!
Nem mais, nem menos.
O eu corcunda que tenho sempre sido,
que deita tudo cá para fora sem grande cuidado,
porque dessa lista de desgraças ao comprido,
se alguma coisa se tem aproveitado
é que eu sou exactamente como todos nós:
tento, tento, tento, em busca de um sentido,
amo, ainda amo, apesar de tanto ter sofrido,
e deixo um rasto de imundice, que já não apago,
porque o que interessa é o esforço investido
em chegar às pessoas, as que tenho unido
contra a mesquinhez que as tem separado.

O que conta é a outra gente que tenho encontrado.

Outra gente, gente como eu,
com o lado negro todo escancarado,
de carne e osso, amor descontrolado,
e ideias fervilhantes num caldo mal alinhavado...

Eu não quero ir atrás ou à frente.
Eu quero ir de braço dado,
ao lado dessa outra gente!


AWF, Lisboa, 9 de Abril de 2011

(Inspirado numa passagem da autobiografia de Mário Dionísio onde ele diz “Uma visão do mundo alheia a toda a espe­rança, que a versalhada que fazia bem deixaria ver, se, com louvável e oportuna sensatez, a não tivesse rasgado.”. Ideia reforçada mais adiante “Mas, quando não se chega ao que se quer (alguma vez se chega ao que se quer?), agarrar num pano bem embebido em aguarrás e esfregar, esfregar até raspar, que alívio e que liber­tação!”. Esta arte de pintarmos de nós uma determinada imagem, de deixarmos de nós só aquilo que, no momento em que partirmos, nos parecer a melhor parte. Deixando ao futuro uma imagem falsa de nós. Ajudando à construção de mitos... Mas, se o autor faz uma triagem, identificando por sua conta as obras que considera piores, e afirmando a existência desses insucessos, então é porque não está empenhado em construir um mito!... Então nesse caso, está a fazer o quê? A substituir-se aos outros no seu julgamento? A prestar um serviço de auto-limpeza em prol da comunidade e das gerações vindouras? Será arte? Será simples vaidade? Será isso tudo?... Eu, ao contrário, prefiro ser verdadeiro e mostrar-me como sou e como fui, como fui de uma coisa à outra. E isso nunca me impediu de me julgar a mim próprio e muito menos impediu os outros de me julgarem também, e de agirem em conformidade com o seu julgamento. E isto, esta verdade que afronta a diplomacia e a hipocrisia dos bons costumes, constitui a minha costela popular mas também iconoclasta, e o meu repúdio pelo pendorzinho aristocratizante dos que querem ser melhor sozinhos, isto é, dos que querem ser os melhores, esquecendo os outros como se para eles nunca tivesse existido esperança. E assim, plenamente consciente, logo o mesmo Mário se redime “É para este género de atitudes que se inventou um dia a palavra «estupidez», bem sei. Mas é mal sem remédio. Aliás, nunca se consegue apagar tu­do. Da própria obra destruída, do que nela resiste (um dia nos arrepelaremos por não podermos re­cuperá-la), uma outra está nascendo logo, inespera­da, irresistível, chegue ou não ao fim, já tanto faz.”.)

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